sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

A falsa querela dos feriados religiosos


Neste debate dos feriados, alguns têm ensaiado uma querela religiosa, sugerindo que o Governo não teria razão em querer sacrificar de forma paritária dois feriados civis e dois religiosos. Nomeadamente, em sectores defensores do 5 de Outubro, ouviram-se vozes "republicanas" mais radicais, no sentido de que «devia-se tirar mais feriados à Igreja», uma vez que «somos um Estado laico», assim preservando todos os feriados civis. Algumas destas vozes são, correcta ou incorrectamente, associadas à maçonaria. Exemplos mais extremistas desta linha de intervenção encontram-se em posições recentes da Associação Ateísta Portuguesa e da Associação República e Laicidade.

Estas posições traduzem muita ignorância, além do seu evidente radicalismo. Não preciso sequer de invocar a Concordata, revista há bem poucos anos, que regula as relações do Estado português com a Santa Sé. Nem tão-pouco vou insistir no facto político conhecido de o tratamento absolutamente paritário no destino e celebração quer de feriados civis, quer dos religiosos ser um consenso político tácito nestas discussões em Portugal, como é bem ilustrado pelo debate da proposta de Resolução 136/XI das duas deputadas independentes do PS, na Legislatura anterior. 

Poderia antes chamar a atenção para o facto de a relação entre feriados civis e religiosos, em Portugal, ser paritária: fifty-fifty. Temos 6 feriados religiosos, a que se acrescentou recentemente a Páscoa, sempre ao domingo. E temos 6 feriados civis. Além destes, o dia 1 de Janeiro, que é "misto": tanto civil, como religioso.

Mas o principal é ter presente que normal seria ter um número de feriados religiosos superior ao de feriados civis. A razão é histórica e é simples. Não tem nada de clericalismo, nem de particular obediência religiosa - é pura constatação social: os dias feriados resultam de grandes festividades populares da comunidade e estas eram, pela tradição das comunidades cristãs, festas religiosas. Aliás, algumas delas corresponderam, de algum modo, à cristianização de festas pagãs pré-cristãs.

Em Portugal, esse número largamente superior de feriados correspondentes a datas religiosas só não se verifica, diversamente de outros países, pela razão de que a República, em 1910, os aboliu a todos de um golpe, interrompendo abruptamente a tradição histórica: nessa altura, sobreviveram apenas o 25 de Dezembro e o 1 de Janeiro, renomeados como "Dia da Família" e "Dia da Fraternidade Universal", respectivamente. A República teve, aliás, muito poucos feriados nacionais: cinco, no total.

A observação de outros países europeus mostra como é mais frequente a prevalência do número de feriados religiosos sobre feriados civis. Na Suécia, em 11 feriados nacionais, 8 são religiosos, 2 civis e 1 "misto" (1 de Janeiro). Na Dinamarca, em 11 feriados nacionais, 9 são religiosos, 1 civil e 1 "misto" (1 de Janeiro). Na Irlanda, em 9 feriados nacionais, 4 são religiosos, 4 civis e 1 "misto" (1 de Janeiro). Na Holanda, em 10 feriados nacionais, 6 são religiosos, 3 civis e 1 "misto" (1 de Janeiro). No Luxemburgo, em 11 feriados nacionais, 7 são religiosos, 3 civis e 1 "misto" (1 de Janeiro). Na Itália, em 11 feriados nacionais, 7 são religiosos, 3 civis e 1 "misto" (1 de Janeiro). Em Espanha, em 10 feriados nacionais, 6 são religiosos, 3 civis e 1 "misto" (1 de Janeiro). Na Grécia, em 12 feriados nacionais, 7 são religiosos, 4 civis e 1 "misto" (1 de Janeiro). Na Inglaterra, em 8 feriados nacionais, 4 são religiosos, 3 civis e 1 "misto" (1 de Janeiro). E, mesmo na França secularíssima, depois da Revolução Francesa e da querela que levou à Lei de 1905, em 11 feriados nacionais, 6 são religiosos, 4 civis e 1 "misto" (1 de Janeiro).

De resto, também o domingo, dia de descanso semanal, tem origem cristã e, portanto, religiosa.  A própria palavra "domingo", nas línguas latinas, provém de dominicus, significando "dia do Senhor" (Dominus).

A tentativa de abrir guerra contra os feriados religiosos não revela só extremismo. Mostra também falta de cultura e ignorância histórica. E estupidez, digo eu.

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