quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Estratégia, táctica e controvérsias

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José António Girão, hoje saído no jornal i.
O simples facto de o governo PS ser suportado na prática pelo BE e PCP, partidos ideologicamente bem distintos, faz com que esta coligação revista características tipicamente tácticas, dada a impossibilidade estratégica de objectivos comuns.


Estratégia, táctica e controvérsias

A tendência para a controvérsia é seguramente um dos aspectos mais característicos da natureza humana e da vida em sociedade. Unanimidade só por milagre. E, como estes não abundam, a conclusão é óbvia... Isto não significa, porém, que toda a controvérsia possa ser seriamente considerada. As regras do bom senso, da racionalidade e da ética circunscrevem aquela ao domínio da admissibilidade.

A área das ciências sociais é particularmente propícia a controvérsias. Desde logo, porque elas têm como objecto o indivíduo, na multiplicidade das suas relações individuais e colectivas, a que personalidades e vivências distintas conferem sensibilidades, sentimentos e visões não coincidentes. A estas, acrescem subjectividades valorativas, tudo se traduzindo numa diversidade de opiniões, por vezes conflituantes. É este conjunto que torna o quadro analítico e decisional nesta área bem distinto do prevalecente nas ditas ciências exactas.

Estas considerações são particularmente relevantes no contexto da governação e da formulação política e ajudam-nos a clarificar muitas das controvérsias e conflitos que de há muito vimos assistindo na avaliação da situação presentemente vivida em Portugal. Neste contexto, é paradigmática a contradição existente entre os que proclamam o sucesso das actuais políticas, em larga medida com base nos resultados económicos a que vimos assistindo, e os que consideram que estes são fundamentalmente consequência do desempenho económico extremamente favorável verificado a nível global. Em síntese, para uns, a actual retoma do País resulta basicamente de uma situação conjuntural favorável e não de medidas assentes na estratégia reformista de que o país carece e sem as quais o processo de modernização e desenvolvimento não será sustentável. Para outros, nomeadamente afectos ao Governo, trata-se de um conjunto de medidas que estão provando a sua eficácia e reconhecidas externamente como viáveis e susceptíveis mesmo de serem exportadas.
A conveniente clarificação da dita controvérsia requer ter presente os aspectos essenciais do conceito de estratégia. Com efeito, esta não é mais do que um plano de acção para alcançar os objectivos decorrentes do desígnio consensualmente definido, o qual deverá igualmente explicitar a métrica de avaliação dos resultados. A estratégia deve, assim, orientar o processo de decisão, fornecendo os princípios orientadores para a tomada de decisões e a afectação dos recursos que tornam possível alcançar os objectivos, tendo em conta que se trata de uma realidade dinâmica de longo prazo. Ao citar-se a célebre frase de Keynes, de que no longo prazo estaremos todos mortos, é preciso igualmente ter consciência de que é no longo prazo que se consubstancia o futuro... A estratégia não deverá, pois, ser confundida com o desígnio (ou missão) e muito menos com a táctica, isto é, com acções específicas visando a implementação da estratégia definida, ou vista como um somatório de acções conjunturais (ou pontuais) não integradas numa estratégia.
Em conclusão, toda a estratégia implica acção (táctica), mas acções (tácticas) não integradas numa estratégia não permitem alcançar o desígnio; mais facilmente conduzem a resultados contraditórios e divergentes dos objectivos. É à estratégia que compete orientar a utilização dos recursos, no quadro das escolhas políticas definidas; trata-se de uma escolha de meios com vista a alcançar os objectivos politicamente estabelecidos, com vista à concretização do desígnio consensualmente estabelecido. Por sua vez, é à política que compete definir os fins (ou objectivos) com base nos valores ou ideologias defendidos. A estratégia é uma ciência da escolha dos meios mais eficazes para atingir os objectivos, independentemente de qualquer referência a ideologias. Estas informam as escolhas políticas, enquanto doutrina dos fins a alcançar. 
Com base nas considerações anteriores, é fácil concluir que a mencionada controvérsia é basicamente resultante de um conjunto de acções que se revelaram eficazes, assentes na gestão de uma conjuntura internacional favorável, mas de natureza táctica, que o Governo e seus apoiantes pretendem apresentar e ver aceites como uma estratégia alternativa de crescimento viável. Que não se trata de uma verdadeira estratégia é óbvio, por várias ordens de razão, entre as quais:

1. Não visarem as acções um conjunto de objectivos consensualmente definidos e prioritários. Aliás, o simples facto de o governo PS ser suportado na prática pelo BE e PCP, partidos ideologicamente bem distintos, faz com que esta coligação revista características tipicamente tácticas, dada a impossibilidade estratégica de objectivos comuns.

2. Entre os objectivos anunciados não figuram alguns dos essenciais, tais como a reforma do sistema eleitoral, por forma a possibilitar maior representatividade e assegurar que os eleitos se sintam responsáveis perante os eleitores. De igual modo, continua sem se materializar a ambicionada reforma do sistema judicial, tantas vezes anunciada e até já objecto de acordos interpartidários.

3. No campo económico, muitos dos objectivos proclamados são contraditórios ou conflituantes, como sucede com o objectivo de redução da dívida pública e a evolução (presumível) da despesa pública, sem que concomitantemente seja expressa a intenção de proceder a uma urgente reforma fiscal. Sintomático, aliás, desta incongruência é o facto de partidos da “geringonça” continuarem a falar da necessidade de uma restruturação da dívida, sem nos informarem da táctica a utilizar e respectivos custos, incluindo reputacionais.

Em resumo, mais de quatro décadas após a “revolução dos cravos”, é altura de nos libertarmos das controvérsias vigentes e reconhecermos humildemente a realidade dos factos, passando a empenhadamente dedicar todo o nosso esforço na definição da estratégia, visando as reformas que duradouramente determinarão o nosso maior bem-estar colectivo. Pensarmos estar no caminho do paraíso, não ajuda...

José António GIRÃO
Professor da FE/UNL
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.


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