quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Europa: de utopia a pesadelo?


O comentário de há dias atrás de Miguel Sousa Tavares na SIC é um bom ponto de partida. Podia haver vários, tantas têm sido, nos últimos meses, as notícias que adensam o dia-a-dia europeu e os horizontes da União Europeia. Mas este comentário que evoca a Europa como “a maior, a melhor, a mais atraente utopia política” do nosso tempo é um excelente referente. 

Vale a pena ouvi-lo e meditar uns minutos, retendo as suas palavras:


Já em 2009, no final de dois mandatos no Parlamento Europeu, ouvi, nos corredores, um comentário entre jovens que me marcou e nunca mais esqueci: “The EU, what a magnificent concept!” (“A UE, que conceito magnífico!”).

Era um grupo de jovens, multinacional, produto do que chamo a “geração ERASMUS”. Respiravam frescura e optimismo, energia e confiança. Conversavam sobre a União Europeia e, repudiando o clima de crise que, já então, era sensível,  remate unânime da conversa foi aquela interjeição do “magnificent concept” que é esta Europa em construção foi o. 

Este comentário vem-se sempre à memória quando ouço – e corroboro – os comentários constantes sobre as actuais lideranças tacanhas, fechadas ou medíocres, sem a visão e a determinação fundadora de Adenauer, Schuman ou De Gasperi, ou sequer a envergadura de grandes estadistas europeus de Helmut Kohl, Mitterand, Delors, Willy Brandt, Schmidt, Delors. É dramático – e pode tornar-se trágico – que as lideranças actuais, encerradas em pequenas agendas focadas, centradas nos calculismos eleitorais nacionais estão a erodir, desacreditar e desmantelar o processo europeu. E esses calculismos são, aliás, tudo o indica, totalmente inúteis, senão contraproducentes. Fraca gente! 

Pior que isso, atentando contra o presente dos europeus e contra a esperança daqueles jovens, esses líderes destroem e impedem a respiração daquele “sonho europeu” que, à semelhança do tão mítico, quanto espantosamente real “american dream”, é o cimento e a alavanca indispensável para alimentar e construir a Europa contemporânea e do futuro. 

Várias vezes, ao longo do meu último mandato no Parlamento Europeu, vendo emergir preocupações medíocres, falta de visão democrática europeia e lideranças tão pedantes e cheias de si, quanto ausentes de densidade e projecto real, veio-me ao espírito a assombração de que o processo de integração europeia, que começou no rescaldo de uma guerra terrível, pudesse vir a terminar, afinal, noutra. 

Seria uma pesada e terrível ironia da História que a Europa, que laboriosamente se construiu na ressaca da II Grande Guerra e, por isso, se inspirou crucialmente na Paz (além da Liberdade e Prosperidade), viesse a querer provar outra vez essa mesma catástrofe por ter passado a beber de novo exactamente do mesmo veneno: egoísmo e divisão. 

Quando muitos negam, de modo simplista, a simples possibilidade desse risco, eu sempre dizia – e digo: lembrem-se da Jugoslávia. 

A crise da Jugoslávia o que foi, afinal? Foi uma federação supranacional que se desagregou. E a crise da Jugoslávia, como foi? Foi como sabemos. Lembremos que, um ano antes daquela desgraça terrível, que desenterrou à escala própria, os piores horrores de 1939/45, toda a gente desdenhava de que uma só bala pudesse ser disparada entre os que durante décadas tinham vivido em comum. Mas… foi o que foi… 

Ao longo dos dois últimos anos, a assombração jugoslava tem vindo, de modo recorrente, ao meu espírito, diante do agravar contínuo da crise do euro e dos sinais gravíssimos que não cessam de se acumular. Ao mesmo tempo, a pergunta: e, perante isto, o que fazem os dirigentes? Nada!!?? 

Hoje, de manhã, estremeci ao ler o apelo do ministro dos Negócios Estrangeiros polaco. Gostei da gravidade – e sobretudo da oportunidade – do seu apelo. Mas a mesma assombração jugoslava, que me tem inquietado desde há anos, lá aparece. E muito bem. 

A Europa não é somente o “sonho europeu”, que tem que abraçar de novo, sob pena de morrer. Nem é só a Liberdade, ou a Democracia (já doente), ou a Prosperidade (já tão abalada). É também e, diria, sobretudo, a Paz. Importa nunca o esquecer. Sobretudo os que realmente não querem voltar a provar da guerra. 



Está anunciado que a chancelarina alemã, Angela Merkel, fará um importante discurso sobre a Europa na próxima sexta-feira. O que dirá Merkel, desta vez? O egoísmo que tem sido o seu costume, inspirando sempre medidas fracas e retardatárias? Ou, finalmente, um golpe de asa corajoso, ousado e empreendedor, reconstruindo a esperança da Europa, Casa Comum? 

É triste que a Europa que, para tornar a guerra impossível, começou pela inteligência prática de pôr em comum o Carvão e o Aço, as matérias-primas do belicismo, esteja a revisitar os fantasmas negros da guerra por não saber pôr em comum e gerir em comum uma moeda e as suas consequências.

Eleições para o Porto: quem se acusa?

Correm notícias de atarefada movimentação política e agitação já de candidaturas para a Câmara Municipal do Porto em 2013. A notícia do jornal PÚBLICO no passado 24 de Novembro é apenas um ténue sinal do muito que corre e se comenta, no quadro conhecido: estarmos perante o último mandato de Rui Rio. Ou seja, abriu-se a "sucessão".

Cabe lembrar que Rui Rio não é apenas assunto interno do PSD. A Câmara é liderada, desde 2001, por uma coligação PSD/CDS. 

Creio, por isso, que seria bom as bases e simpatizantes do CDS, bem como as estruturas, prepararem e alinharem a sua vontade, projectos e aspirações para esse novo tempo eleitoral. É muito importante que, no CDS, se afirme uma grande visão de futuro, com marca própria, para o Porto-cidade e, a partir do Porto-cidade, para a região de que é pólo de referência e para o país também. É preciso libertar, a partir do CDS, a grande ambição política, social e económica dos portuenses, num projecto de fôlego, mobilizando também protagonistas de prestígio e novos quadros. O Porto é demasiado importante para poder resumir-se a uma pequena engenharia do PSD e adjacências.

As eleições municipais de 2013 travar-se-ão, aliás, provavelmente, já no quadro de uma nova legislação eleitoral. Daqui, resultarão novas oportunidades de afirmação de projectos próprios e autónomos, sem pôr a causa a maioria final. Mas, mesmo que venha a convir-se na renovação de uma coligação pré-eleitoral (em que o CDS foi sempre leal), faz toda a diferença ter já um projecto próprio definido e apetrechado ou ir apenas de atrelado.

Este é um tempo novo de construção para o CDS e os portuenses.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Euronews: contra o apagão


[Hoje sai, no Público, este meu artigo. Para quem não tenha acesso ao jornal online, aqui fica o texto.]



Ando inquieto com o possível fim da emissão portuguesa do Euronews. Não pode ser. 

Já em 2002-03, o destino desse serviço andou tremido. Nessa altura, agi nalgumas frentes a partir da posição de deputado ao Parlamento Europeu. E, por várias diligências, minhas e doutros, os problemas resolveram-se: o futuro ficou assegurado no que é o figurino actual.

Hoje, a RTP garante o canal por dois instrumentos: um, a quotização como accionista em 338 mil euros anuais, com direitos de utilização integral do Euronews; outro, um contrato de produção em português, no valor de 1,66 milhões de euros por ano. É este acordo que estará em risco com a falada reestruturação da RTP: diz-se que o canal acaba em Janeiro de 2013, com denúncia até Julho de 2012. 

Não pode ser. A lesão aos interesses do português como língua internacional seria de tal ordem que não acredito que isso aconteça. O que está em causa? Três coisas: a nossa língua; a Europa e a ideia que fazemos dela; e o serviço público.

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Em primeiro lugar, a língua. Não podemos dizer que o português é a "terceira língua europeia mais falada no mundo" e, depois, apagá-la por inteiro do ecrã no único canal europeu. O apagão do português do Euronews colocar-nos-ia não na segunda, mas na terceira divisão da competição linguística europeia, atrás, pelo menos, de 12 outras línguas: cairíamos de 3º para 13º.

Imaginemos o Euronews emitindo o Presidente da República a presidir ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, no passado dia 9 de Novembro: falou em português e referiu-se à nossa língua. E imagine-se que nós poderíamos ouvi-lo em inglês, em espanhol, em alemão, em francês, em italiano, em romeno, até em russo, em árabe, em turco ou em farsi, mas... não em português! Quando Cavaco recordou que somos a "terceira língua europeia", qualquer espectador desinformado acharia que estaria a mentir ou a brincar. 

Segundo, a Europa. Que ideia fazemos dela e de Portugal na Europa? Saímos da União Europeia? Já desistimos da Europa? Então que sentido faz que deixássemos desaparecer a nossa língua do único projecto europeu de notícias, transnacional e comum, um canal oficioso da União Europeia? Que sentido faz destruir o uso do português nessa alameda central, quando por aí passam interesses e valores estratégicos da nossa afirmação na Europa e no mundo, bem como da lusofonia e da sua percepção global? O apagão no Euronews ajudaria a afundar-nos na periferia e na irrelevância.

Terceiro, o serviço público. A consolidação global do português como grande língua internacional é, sem dúvida, uma missão de serviço público - e de primeira linha. Está adequadamente confiada à RTP, estação de serviço público. Não é ela que paga, somos nós que pagamos. E pagamos bem através da RTP, porque, sendo do meio, é o instrumento público mais adequado para agir no projecto comum Euronews, dele extraindo todas as virtualidades - o que, de resto, bem pode ser melhorado. Mas qualquer outro organismo (como o sugerido Instituto Camões) ou departamento, que fosse escolhido para canalizar a comparticipação portuguesa, andaria perdido e seria um estranho no meio, porque estrangeiro à arte. Ou seja, a cooperação com o Euronews está muito bem confiada à RTP - tem é que ser bem feita, com exigência, critério e propósito estratégico.

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O Euronews cresceu muito, desde a criação em 1993. Quando da minha última intervenção em 2002-03, já chegava a 125 milhões de lares em 78 países. Hoje, é recebido em 256 milhões de lares em 155 países - duplicou! E há ainda o portal Internet, também em português. Por aqui, avaliamos bem o dano colossal à nossa língua, como língua global, que resultaria do apagão no Euronews. Só o serviço televisivo em português é, hoje, recebido em 98 milhões de lares em todo o mundo. Tem 800 mil espectadores diários só em Portugal, mais do que a CNN, a Sky ou a BBC no cabo. E há, acima de tudo, os países da CPLP e outros a que chega e pode chegar. 

Compreendo o aperto em que o país vive; e as medidas de rigor a que a RTP não é excepção. Apoio isso. Mas não pode dizer-se que, prevendo a RTP dispensar 300 pessoas, não há como manter o Euronews. Decidir o fim deste canal corresponderia a subir os dispensados para 333 - são 33 no canal europeu em português.

A austeridade e o rigor têm que ser compatíveis com a preservação de interesses estratégicos do país. Exige-se essa finura. E a nossa língua, língua internacional de comunicação, é um deles - e dos principais. Por isso, confio no fim da resposta a uma pergunta parlamentar minha: "O Governo, conforme assumido no seu programa, assegurará e privilegiará a difusão da língua portuguesa no mundo, independentemente do medium." 

Importa garantir que a RTP siga no circuito e tentar negociar melhor com a gestão do Euronews e a Comissão Europeia, pondo em cima da mesa os precedentes do espanhol, do árabe ou do farsi. Mas, se isto não se conseguir e for mesmo impossível assegurar a contribuição financeira via RTP, há que buscar alternativas, como a convocação dos operadores de cabo ao financiamento da produção do canal que também distribuem - mesmo repercutindo o custo nos subscritores, só custaria 75 cêntimos por ano por cliente.

Há que evitar um desenlace totalmente inaceitável: o apagão do português do Euronews. Ninguém pode conformar-se com tal destino. Antes pelo contrário: o caminho é a crescente afirmação e circulação da nossa língua como grande língua internacional.

[ Ler no Público online ou em papel ]

Maldita matemática

Está por aí estabelecido que um dia feriado, em Portugal, custa 37 milhões de euros, o mesmo se passando com as "pontes" e tolerâncias de ponto de dia inteiro. As mesmas contas se fizeram para a tolerância de ponto de meio dia (20 milhões de euros) ou para a guerrilha verbal contra a visita do Papa.

Sendo assim, por que diabo se calculou que o dia de greve geral custaria ao país quase 20 vezes mais? Porquê ali 37 milhões por dia e, aqui, mais de 750 milhões de euros, ou, não sendo total, cerca de 500 milhões?

Quem explica esta matemática? 

domingo, 27 de novembro de 2011

Património mundial do nosso coração




Ando com as emoções em sobressalto neste dia em que a UNESCO reconheceu o nosso fado como Património Cultural Imaterial da Humanidades. Porquê? Por causa desse pronome: “nosso”.

Bailam-me na memória, no ouvido e no coração, ecos de Amália – claro! – Carlos Zel, João Ferreira Rosa, Teresa de Noronha, Vicente da Câmara, Maria da Fé, Rodrigo, Frei Hermano, Cristina Branco, João Braga, Carminho, Camané, Kátia Guerreiro, Hermínia Silva, Carlos do Carmo, Mariza, António Zambujo, e tantos outros.

Sirvo-me de um post de Pedro Correia – Talvez o mais belo fado de sempre – para ilustrar com o mesmo vídeo os meus pensamentos.


“A Gaivota”, imortalizada pela Amália, não é o mais belo fado, porque não há só um “mais belo”. É, sem dúvida, um dos mais belos - que são muitos. Seria, graças a Deus, interminável a lista de todos os mais belos.

Muito do que faz a beleza única do fado é a extraordinária pluralidade de variantes, de estilos, de géneros, de vozes, de poetas, de sentimentos, de cor, de sonoridades – e tudo sempre naquele registo único que nos atravessa e marca a alma. Fado não é só dor ou saudade. O fado é dor e riso, saudade e presença, partida e chegada, alegria e lágrima, zanga e ternura, proximidade e distância, olhar e cegueira, sonho e realismo, brincadeira e luto, terra e Deus, festa e sofrimento, ansiedade e repouso, correria e descanso, velho e criança. O fado é a nossa vida.

Nas letras do fado, rivalizando com os que escreveram sobretudo para fadistas, cruzam-se muitos dos nossos maiores poetas: Pedro Homem de Mello, David Mourão-Ferreira, Camões, Alexandre O’Neill, Manuel Alegre, Ary dos Santos, Cesário Verde, José Régio, Pessoa, Sophia.. tantos outros. O que faz bem do fado uma obra de arte completa: a música, o poema, a cor e a luz, a voz, o corpo, a alma.

O fado é Portugal no mundo. É o nosso olhar e sentir de portugueses, de uma forma tão propriamente nossa como essa única guitarra portuguesa. É certamente por isso que, desde por volta do meio-dia de hoje, as lágrimas espreitaram-me várias vezes. Estou feliz!

Obrigado à Câmara Municipal de Lisboa. Obrigado ao Museu do Fado. Obrigado ao Carlos do Carmo, à Mariza, ao Rui Vieira Nery e a todos os que trabalharam com eles, pelo que fizeram e conseguiram para todos nós.

Como nós andamos precisados destas coisas que nos enchem a alma, que nos fortalecem o ânimo e o amor-próprio, que nos rasgam o futuro a partir das nossas raízes.

sábado, 26 de novembro de 2011

A facturinha

Ontem e hoje, foi notícia de destaque a resposta do Ministério das Finanças a uma pergunta do deputado comunista Honório Novo, a respeito dos encargos com o financiamento de 78 mil milhões de euros recebidos da troika. Junto aqui, por todas, a notícia do "Dinheiro Vivo": Portugal vai pagar à 'troika' até 2026.

O Governo esteve muito bem em ser absolutamente transparente na resposta ao deputado do PCP. Nada a esconder.

Por aqueles 78 mil milhões de "ajuda", vamos ter de pagar 113 mil milhões distribuídos por 15 anos. Este é o custo - colossal - das políticas irresponsáveis que nos conduziram a uma situação de bancarrota - só estacámos na pré-bancarrota porque, na beirinha, fomos salvos do despenhamento no precipício pelo financiamento da troika.

Essas são as condições que tiveram que ser aceites; e que foram negociadas - convém lembrá-lo - ainda pelo governo socialista de José Sócrates. Agora, é cumprir. E conseguir sair do buraco em que fomos metidos.

Mas este elevado custo da assistência recebida cai mal, muito mal. E toda a gente, cidadão comum, o sente - e ressente - como demasiado elevado: 34 mil milhões em juros (!!!) e 655 milhões em comissões (!!!) é muito dinheiro.

É feio, muito feio, carregar em cima de quem é assistido por estar com a corda na garganta. Dir-se-á que... "é a vida". E é verdade: não deveríamos ter-nos deixado colocar nesta situação. Mas o sabor é muito amargo e vai agravar, na opinião pública, o já enorme desprestígio do sistema financeiro.

Cresce o sentimento de que importa criar condições políticas, a nível nacional, europeu e mundial, para pôr na ordem o sistema financeiro de uma vez por todas. As pessoas estão cada vez mais fartas deste sistema e têm a sensação de que é ele que arruina e, depois... cobra. Ninguém se vai esquecer.

Vamos pagar. Mas vamos lembrar-nos. Oxalá!

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A reforma do Poder Local e o seu debate - contributos



Infelizmente, não tenho podido participar nos debates abertos que o CDS tem organizado sobre a reforma da Administração Local, que foi anunciada e a que vai proceder-se. Tive pena, em especial, de não ter podido estar nas sessões de Lisboa, do Porto e do Montijo, que, pelos ecos que recebi, foram vivas e muito interessantes.

Hoje, estarei num debate no Porto, por ocasião dos 175 anos da freguesia de Lordelo do Ouro, e aí direi pela primeira vez, publicamente, as minhas observações principais neste momento, após o “Documento Verde da Reforma da Administração Local” que, em boa hora, o Governo pôs a debate público, na sequência das obrigações contraídas pelo Estado português no memorando subscrito com a UE e o FMI.

Tenho três observações principais ao Documento Verde:


  • Primeira, a Regionalização.
Penso que esta reforma não pode de todo ser bem feita, se não incluir também a superação definitiva da questão da Regionalização. Sabemos que está parada e, a meu ver, nunca mais daí sairá. Defensor que sempre fui – e sou – da descentralização regional, lamento tudo o que se passou; mas creio que importa reconhecer que, por factores vários, a Regionalização é um “gato morto”: nunca mais sairá do congelador constitucional e político em que se afundou.

A Regionalização é, porém, uma pendência constitucional e legislativa e a sua paralisação tem encravado e encrava a clarificação definitiva do patamar intermédio da Administração Pública, seja no que é de descentralizar, seja também no que fique apenas na esfera da desconcentração. Aqui, somos “um país adiado” há mais de 35 anos!

A verdade também é que as Regiões Administrativas estão previstas como autarquias locais. Ora, não é correcto avançar-se para uma reforma global da Administração Autárquica, esquecendo essa pendência e saltando ao lado dela – tanto mais que a reforma a empreender deverá potenciar a cooperação e interacção intermunicipal, ou seja, a um nível superior do quadro territorial actual dos Municípios.

O problema agrava-se, ainda, quando pomos em equação a necessidade urgente de dar mais fôlego, consistência e capacidade às Áreas Metropolitanas – sempre adiadas – ou às ainda muito indefinidas Comunidades Intermunicipais.

Não creio que seja possível rearrumar o quadro de competências e redefinir estes quadros territoriais municipais e intermunicipais, sem arrumar de vez a pendência da Regionalização. Ou então repetiremos, na arquitectura do Estado e da Administração Pública, o péssimo hábito das obras dos arruamentos e da praga dos “buracos”: feita a reconstrução de uma avenida e posto um tapete novo de alcatrão, logo vêm, meses depois, e cada um à sua vez, os buracos dos telefones e TV – porque se esqueceram da fibra óptica -, da EDP – porque os cabos de electricidade tinham que ser mudados – e da água – porque era preciso substituir manilhas ou condutas.

Além disso, a estabilização definitiva e duradoura do quadro das circunscrições territoriais intermédias ajuda o avanço coerente de outra reforma anunciada: a revisão da composição parlamentar com a possível reforma também dos círculos eleitorais.


  • Segunda, tenho as maiores reservas à ideia dos executivos homogéneos, isto é, de um só partido (ou coligação pré-eleitoral ou pós-eleitoral).

Não é só porque os executivos monocolores são contrários à tradição municipalista do país e apagam a discussão plural e crítica no próprio momento das tomadas de decisão. Mas é também porque esse sistema, deslocando para as Assembleias Municipais a totalidade da discussão contraditória e da fiscalização, será ineficiente e muito mais caro. Uma reforma nesse sentido iria favorecer uma deriva nefasta (a que já se assiste, aliás, e deveria ser contrariada) para a parlamentarização da vida local, replicando em cada Assembleia Municipal uma mini-Assembleia da República.

Os cidadãos nada ganham com isso. E pagarão o sistema muito mais caro. A multiplicação das reuniões das Assembleias Municipais aumentará exponencialmente os custos com senhas de presença e outros gastos, além de que alguns “deputados municipais” iriam exigir – e, aí, até razoavelmente – a sua profissionalização, sob pena de não conseguirem desempenhar capazmente as responsabilidades acrescidas de fiscalização.

Creio que o novo sistema, a definir, deve assegurar o poder claro da maioria – de um só partido vencedor ou da coligação vencedora ou maioritária pós-eleitoral – e estabelecer que só os seus vereadores poderão ter responsabilidades executivas, como é propósito correcto da reforma. Mas, ao mesmo tempo, é importante (e também mais barato) manter a oposição na Câmara, participando com um só vereador por partido, acima de um limiar mínimo de representatividade, e exercendo directamente o contraditório nas reuniões semanais de deliberação da Câmara. E há vários sistemas para o assegurar, sem prejudicar minimamente a coesão, a liderança e a clareza política do Executivo municipal. Quanto às Assembleias Municipais, não deverão ir além da meia dúzia de reuniões anuais que são de lei.

O que defendo, portanto? É simples: nas Câmaras Municipais, homogeneidade sem exclusão.


  • Terceira observação: sobre o número de vereadores
Aí, creio que a reforma prevista no Documento Verde é demasiado tímida. Em muitos casos, apesar da redução proposta, o número de Vereadores eleitos e daqueles que o seriam a tempo inteiro é ainda, a meu ver, excessivo e desnecessário, sobretudo num quadro de poder homogéneo como é o da reforma proposta. Creio, por exemplo, que, nos municípios com menos de 10.000 eleitores, não se justifica a existência de um Vereador a tempo inteiro; basta o Presidente a tempo inteiro. E penso também, no outro lado, que as Câmaras Municipais de Lisboa e Porto não precisam de, respectivamente, 6 ou 5 vereadores a tempo inteiro, além do Presidente; bastam 4 em cada uma, para assegurar uma boa gestão desses municípios, com os directores municipais e responsáveis de organismos diversos. Similarmente, a todos os níveis do mapa governamental, são possíveis reduções diversas, levando mais longe a reforma proposta e a inerente economia estrutural.

Pelos meus cálculos, é possível ter ganhos adicionais muito significativos, reduzindo para 758 o total de vereadores eleitos “homogéneos” (em vez de 1772 hoje, ou de 1152 na reforma proposta) e para apenas 267 o total de vereadores a tempo inteiro, em todo o país (em vez de 836 hoje, ou de 576 na reforma proposta). Mesmo que aditemos os vereadores da oposição, como acima defendo, e que o seriam sempre a tempo parcial para a fiscalização e o contraditório do deliberativo municipal, os ganhos de eficiência e as economias financeiras seriam muito importantes, se soubermos ser ainda um pouco mais ousados. E a Administração Local será também menos palavrosa e mais eficiente.

Este é este um debate que importa aprofundar e levar mais longe. Passado o Orçamento de Estado para 2012, é o debate estrutural mais importante. Todos estamos convocados.

Logo ouvirei as reacções que as minhas ideias suscitarão no debate na cidade do Porto, em Lordelo do Ouro.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Greve geral - três reflexões

Poderia pensar-se que a divulgação, ontem, do manifesto Soares & Outros teria alguma coisa a ver com a greve geral, hoje. Nada disso, certamente. Mário Soares, Isabel Moreira, Joana Amaral Dias, José Medeiros Ferreira, Mário Ruivo, Pedro Adão e Silva, Pedro Delgado Alves, Vasco Vieira de Almeida e Vítor Ramalho nunca seriam capazes de semelhante oportunismo. E colagem política.

Tudo não passou certamente de uma coincidência. Ontem, jogou o F.C.Porto e saiu também o manifesto. Foi só isso.

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O DN pediu-me umas palavras sobre se eu faria greve geral. O que eu disse:
«Não sou solidário com a greve, ainda que compreenda que as pessoas sintam necessidade de desabafar. Vejo esta greve um bocado como aquela enorme manifestação da "geração à rasca": uma grande demonstração de preocupação. Mas sei que é preciso passar por estas dificuldades para sair delas.»



Acrescento mais: se eu estivesse activo, nesta altura, na FTDC - a Federação de Trabalhadores Democrata-Cristãos, de que fui fundador em 1978 - teria declarado isto: "faço greve geral por 1 hora".

Seria uma hora simbólica de coesão social. É legítimo que as pessoas mostrem que estão inquietas e , muito inquietas com a situação e o quadro em que vivem. E que estão unidas: é muito importante que as pessoas se sintam juntas nestas travessias da dificuldade. Também é legítimo (e necessário) que os trabalhadores, os reformados e os pensionistas sinalizem que aceitam partilhar os sacrifícios que todos temos de fazer; mas que estão atentos, que exigirão sempre repartição equitativa da carga e que se mobilizarão contra qualquer tentativa que houvesse de aproveitar a conjuntura de dificuldade para, ao serviço de ideologias e não por estrita necessidade, alterar o modelo social de referência e degradar a qualidade de vida. 

Mas só uma hora na greve geral, para sinalizar um claro "não" à greve geral de protesto político, pois esse caminho não tem o menor fundamento de verdade e só agravaria as dificuldades de todos.

A situação a que Portugal foi conduzido é gravíssima. E o contexto europeu é também de incerteza extrema. São muito difíceis e exigentes os tempos que atravessamos. Só todos com todos superaremos melhor este tempo tão rigoroso.

Também precisamos muito do sindicalismo, nesta altura grave de Portugal: um sindicalismo de concertação, não o sindicalismo de confrontação.

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No meu Facebook, coloquei este estado, manhã cedo:
"Hoje, dia de greve geral, é altura de termos presente uma verdade incontornável: só todos trabalhando mais, conseguiremos sair da crise e manter o nível de vida que temos estado a perder."
Todos temos que o ter sempre presente: a ruína financeira e a debilidade económica em que fomos afundados exigem isso por muito tempo. E o terrível declínio demográfico em que a cultura dominante nos tem feito também decair tornam-no clarinho, mesmo que não fossem aqueles outros factores críticos.

Por muitos e bons anos, teremos que trabalhar mais.

Do que precisamos é de restabelecer uma economia que nos permita isso: primeiro, trabalhar; segundo, trabalhar mais. Só assim venceremos.

O manifesto Soares & Outros: velho rumo?

O manifesto que Mário Soares e outras figuras da esquerda democrática ontem divulgaram começa por coisas boas: 

  • o repúdio da “anarquia financeira internacional”
  • a denúncia de a UE ter acordado tarde – e continua a acordar tarde todas as semanas, acrescento eu – para “a resolução da crise monetária financeira e política”
  • o apelo a “um novo paradigma para a UE”, a referência a um certo lastro comum – europeu, democrático e social, digo eu – das “correntes trabalhistas, socialistas e sociais-democratas adeptas da da 3ª via, bem como a democracia cristã”
  • a vontade de promover a “reconciliação dos cidadãos com a política”
  • a exigência de “clarificar o papel dos poderes públicos e do Estado que deverá estar ao serviço exclusivo do interesse geral”
  • a chamada de que “os obscuros jogos do capital podem fazer desaparecer a própria democracia, como reconheceu a Igreja”
  • a proclamação de que “a UE só se pode fazer e refazer assente na legitimidade e na força da soberania popular e do regular funcionamento das instituições democráticas”.
Está ainda muito bem, de seguida, ao pôr o coração – e a cabeça também – ao lado dos aflitos: “há muita gente aflita entre nós: os desempregados desamparados, a velhice digna ameaçada, os trabalhadores cada vez mais precários, a juventude sem perspectivas e empurrada para emigrar”.
Até aqui, também eu podia assinar. E, embora tendo já que chamar a atenção para os últimos anúncios de José Sócrates nesta matéria e para o memorando com a troika que ele negociou e assinou, até poderia subscrever ainda a afirmação do manifesto a “denunciar a imposição de uma política de privatizações a efectuar num calendário adverso e que não percebe que certas empresas públicas têm uma importância estratégica fundamental para a soberania” – até não é só por isto, mas tudo bem.
Novo Rumo? Velho Rumo?

Onde  já não assino de todo é no coração do documento: o protesto final, opondo-se “a políticas de austeridade que acrescentem desemprego e recessão, sufocando a recuperação da economia”. Não é porque eu goste destas políticas, que não gosto nada. É porque, infelizmente, não podemos fugir a elas.
Graças à política socialista dos últimos anos – desperdício e endividamento, engorda do Estado e aumento da despesa pública, promoção contínua de um regime de asfixia tributária sobre as famílias e as empresas, chocante regabofe das SCUT, negociações esquisitas, PPP e clima de “desbunda” na apropriação do Estado por interesses particularistas – chegámos a um estado de necessidade gritante, em que as politicas financeiras duras e de reequilíbrio são absolutamente inescapáveis. No pior contexto, aliás, diga-se, porque a consolidação orçamental foi adiada até à pior altura possível.
Foram os socialistas que deixaram as nossas finanças num estado de desequilíbrio calamitoso, a economia em extrema debilidade e Portugal altamente vulnerável – depois, o contexto internacional adverso fez o resto. E tudo piorou porque, na verdade, em matéria de endividamento excessivo, não fomos só nós a fazê-lo . A UE consentiu e fomentou irresponsavelmente as políticas de economia botox e finanças com silicone, que a muitos nos deixou inchados… e falidos. Não é só Portugal a não ter dinheiro; quase ninguém realmente o tem na nossa Europa.
Por isso, o manifesto Soares & Outros faria bem em lembrar que os “desemprego e recessão” e o sufoco da economia vêm da governação José Sócrates, onde, aliás, começaram: a recessão já vem detrás e, o que eu nunca pensei viver, o desemprego ultrapassou os dois dígitos (!!!) há muito tempo. Até o corte de remunerações começou com Sócrates, depois de uma última rodada da Grande Festa Socialista que foi aquele aumento de 2,9% da função pública, já em plena crise, no ano eleitoral de 2009. Um escândalo! E bem efémero.
Sem este elementar apontamento de verdade e de mea culpa, reclamando também um “novo paradigma”no rumo do PS e da esquerda democrática, o manifesto Soares & Outros não soa de todo ao “Novo Rumo”, que põe em título. Antes apenas a um eco saudoso do Velho Rumo.  E isso… não, obrigado!

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Folgas & almofadas, Cia. Lda.

Seguro, Zorrinho e outros tenores do PS continuam a insistir na ideia de que o Orçamento de Estado para 2012 tem muitas "folgas" e está cheio de "almofadas", bastantes para acomodar as propostas de alteração dos socialistas contra a austeridade.

Tenho andado a estudar o assunto e cheguei à conclusão de que, de facto, o OE 2012 está carregadinho de almofadas, já que os governos do PS nos deixaram cheios de folgas. Encontrei, pelo menos, seis folgas.

É justo lembrar. O seu, a seu dono.


De 2004 para 2005, logo no primeiro ano de estreia de Sócrates, o PS deixou-nos a primeira folga: mais 11 mil milhões de euros de aumento da dívida pública.

De 2005 para 2006, o PS deixou outra folga: mais 6 mil milhões de euros de subida da dívida pública.

De 2006 para 2007, chegou a terceira folga: mais 13 mil milhões de euros de agravamento da dívida pública.

De 2007 para 2008, o Governo socialista, sempre generoso, abriu mais uma folga: mais 8 mil milhões de euros de aumento da dívida do Estado.

De 2008 para 2009, os socialistas esmeraram-se, deixando-nos uma folgazita de truz: o Estado aumentou a dívida em mais 17 mil milhões de euros (leu bem, leitor: mais 17.000.000 de euros, num só ano).

E de 2009 para 2010, o PS, sempre audaz, legou-nos a sexta folga: um aumento da dívida pública de (está bem sentado, caro leitor?) mais 22 mil milhões de euros!

Habituados a tantas "folgas" e "almofadas" anuais, compreende-se bem o discurso dos socialistas. Foi por estas e por outras que chegámos onde estamos.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

RTP – em que ficamos?

Primeiro, foi um “plano de sustentabilidade”, apresentado pela administração da RTP, que previu a continuação da publicidade e das suas receitas no canal público de televisão. Essa era também a orientação da tutela ministerial. Certamente por isso, o presidente da RTP foi logo reconduzido no cargo para mais um mandato, imediatamente após a apresentação daquele “plano de sustentabilidade”.

Ontem, porém, soube-se que o Governo teria, afinal, mudado de ideias quanto ao cenário posterior  à privatização de um dos canais televisivos. O ministro veio declarar que “o Governo decidiu que, após aquela alienação, o canal subsistente da RTP não conterá publicidade comercial”.

A declaração ministerial foi, como é óbvio, prontamente saudada pelo presidente da SIC, Pinto Balsemão – embora, honra lhe seja, este mantivesse algum cepticismo quanto ao cenário da privatização (mesmo parcial) da RTP. A mudança de posição da tutela soa a favorecimento dos canais privados, após as fortes críticas que SIC e TVI têm feito à ideia de privatização (parcial) da televisão pública.

Cabe assinalar, em abono de Balsemão, que, hoje em dia, a SIC e a TVI apenas competem, no mercado publicitário, com “meia-RTP”: o 2º canal não tem publicidade e o 1º canal público só a tem com metade do tempo-limite. Pelo que, a privatizar-se um dos canais do Estado, que passaria a 100% comercial – e não só a meio-gás, como a actual RTP-1 –, teria alguma lógica que, para não desequilibrar demasiado o mercado, o canal público sobrante ficasse totalmente proibido de concorrer às receitas de publicidade.



Isso, porém, afectaria as receitas da RTP e tornará tudo mais crítico – e porventura mais caro para os contribuintes. Contraproducente, portanto: uma RTP mais frágil, menos capaz e… mais cara. A retirada total da publicidade na televisão pública contraria, ao menos, directamente, o “plano de sustentabilidade” do reconduzido presidente do Conselho de Administração. Irá, agora, demitir-se?

Cabe ainda comentar que é certamente exigível ao Estado que não dê cabo do precário equilíbrio de todo o sector e, nomeadamente, não destrua as condições de concorrência dos canais privados. Mas já não é exigível ao Estado – isto é, aos contribuintes e aos muito penalizados bolsos dos cidadãos – que, enfraquecendo as condições de sustentação económica do canal público, passem a contribuir também para as receitas dos canais privados.

Também por tudo isso, embora aplicando – e muito bem – à RTP (rádio e televisão) a dieta geral de austeridade e rigor, o melhor seria deixar tudo como está. Pelo menos, até a conjuntura económica ser mais favorável para todos e haver tempo e espaço para estudar melhor as opções e para conhecermos as caras e a envergadura de candidatos reais a uma privatização.

Há, aliás, muitas e boas razões para isso.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A memória que nos salva

A nossa atenção, hoje, na primeira Tertúlia Diplomática, com a embaixadora da Polónia, centrou-se num tema duro, muito duro. Porque é preciso conhecer, porque é preciso lembrar.

Uma das coisas mais extraordinárias do testemunho de Jan Karski, diplomata e herói polaco, é como tudo, no Holocausto, custava a acreditar que estava realmente a passar-se. Também houve, é certo, as deploráveis “conveniências políticas”. Mas a muitos custou realmente a acreditar que estava a acontecer. Há relatos de que Jan Karski, ele próprio, também duvidou na primeira vez que o abordaram. Mas foi ver, com enorme risco e coragem. E a sua história é, depois, a história da luta incansável contra a incredulidade. Muitos outros, demasiados, não quiseram acreditar. Até ser demasiado tarde. E milhões de inocentes morreram por causa dessa incredulidade.


Incredulidade é outro nome para negação. E a negação, sabemo-lo bem, ainda anda por aí. Nunca desapareceu por inteiro.

O ser humano é capaz do melhor e do pior. E são o conhecimento e a memória que nos protegem do pior que somos. Não há nada que possa comparar-se ao horror programado do Holocausto. Mas há exemplos recentes de como nada disto é infelizmente apenas passado: o genocídio no Ruanda, o flagelo do terrorismo, tantos horrores recentes no mundo árabe, a tragédia terrível da implosão da Jugoslávia na civilizadíssima Europa dos finais do século XX.

Estes demónios estão todos aí. Ainda. E é pela memória, pelo conhecimento da História, pela denúncia atenta dos primeiros sinais, dos indícios e das ameaças, que preveniremos que estes horrores voltem a ser do presente e do futuro e conseguiremos enterrá-los de vez somente no passado.

A nossa luta constante é, portanto, a nível político, cultural e diplomático, contra a incredulidade e contra a negação. Porque só a verdade realmente salva, só a verdade realmente nos protege.

Foi forte o testemunho trazido pela embaixadora Katarzyna Skórzyńska, ilustrado no exemplo brilhante da vida de Jan Karski.

Vida difícil, aqui ao lado

A Espanha teve, ontem, uma viragem histórica. Não tanto pela alternância, que é o habitual, mas pela dimensão do resultado, mostrando o absoluto fracasso e decadência política em que acaba a governação socialista de Zapatero.

Histórico é o tombo do PSOE, com um trambolhão de 15 pontos percentuais e a perda de 4 milhões de votos. Perde 59 deputados. Histórica é também, embora em menor grau, a vitória do PP, que alcança o seu melhor resultado de sempre: subiu 4 pontos e meio ou 550 mil votos; e ganha 32 deputados.

Rajoy, após sete anos de longa - e às vezes muito difícil - porfia, obtém a maioria absoluta no Congresso dos Deputados. E reforça também, de forma estrondosa, a maioria que já tinha no Senado.

Mas o Governo Rajoy não vai ter vida fácil. Não é só a herança Zapatero. É o ambiente geral. Os títulos, de hoje, do EL PAÍS, são sintomáticos:



Na maré actual, não é preciso dizer mais. Ou será mau perder?

Já o ABC destaca, numa análise interessante, as 10 tarefas do novo Governo de centro-direita: Los 10 retos de Rajoy. A lista mostra bem a vastidão e dificuldade da empresa:
  1. Reforma laboral y del empleo
  2. Política fiscal e impositiva
  3. Sanear la banca
  4. Ordenar las cuentas públicas  
  5. Recomponer la política exterior
  6. Regeneración institucional
  7. Pacto por la educación
  8. Agilizar y despolitizar la Justicia
  9. Gestionar el fin definitivo de ETA
  10. Rearme moral y anímico de la sociedad

A primeira Tertúlia Diplomática, na Livraria Ferin

A embaixadora Katarzyna Skórzyńska é uma boa amiga: grande amiga de Portugal e boa amiga pessoal. Foi com ela, há coisa de ano e meio atrás, que promovi a constituição do Grupo de Amizade Portugal-Polónia, na Assembleia da República. Esperava-se a visita oficial do Presidente Lech Kaczyński, que já não chegou a vir: um brutal desastre de avião, entretanto ocorrido, matou tragicamente boa parte da elite polaca, incluindo o Presidente da República e sua mulher. Ficou aquele laço parlamentar, institucional, mais forte.

A Polónia e Portugal têm muitas coisas em comum. Não é só a letra P.

Conheci a Polónia e os polacos no final dos anos ’90, acompanhando uma peregrinação portuguesa a um Congresso Eucarístico, presidido por João Paulo II, o polaco Karol Wojtyła. Andei pelo sul: Wrocław, a belíssima Cracóvia, Nova Huta, Wadowice, Częstochowa e o seu Jasna Góra. Gostei muito. Achei os polacos parecidos connosco em muita coisa. E achei que não era só coincidência o facto de ambos os povos terem escolhido Nossa Senhora como protectora, sensivelmente na mesma altura: em meados do século XVII – nós, por Nossa Senhora da Conceição em Vila Viçosa, no período da Restauração, quando nos libertávamos do domínio espanhol; os polacos, acolhendo-se à imagem da Virgem Negra em Częstochowa, no período da Guerra do Dilúvio, quando sacudiram a ocupação sueca.
A nossa senhora de hoje é outra: é a embaixadora da Polónia. Estando nós no semestre de turno da presidência polaca do Conselho da União Europeia, não poderia haver melhor abertura para o nosso ciclo das Tertúlias Diplomáticas, promovido com a Livraria Ferin. Nesta iniciativa, que procura ser um pólo de convívio qualificado entre a comunidade diplomática e a comunidade política e cultural da nossa cidade, teremos – esperamos – deliciosas palestras e diálogos animados, ao modo das velhas tertúlias da melhor tradição da baixa lisboeta. Aqui, mensalmente, à volta da política internacional e, claro!, desse precioso objecto de culto: os livros!
A embaixadora Katarzyna Skórzyńska escolheu falar-nos de uma das maiores feridas da História da Europa do século XX: o Holocausto. «Jan Karski – Testemunha Polaca da Shoah» é o tema da sua palestra. E é de Jan Karski, falecido no ano 2000, o livro que apresentará no final.
Imagem célebre do levantamento do gueto de Varsóvia
Eu também estive lá – e recomendo a todos que vão. Quando andei pelo sul da Polónia, fui a Oświęcim – e, claro!, ali ao lado, ao campo do seu nome alemão, Auschwitz, e a outro terrível campo extensíssimo, Bierknau. Já lá voltei depois. Dói de ir lá. Não há nenhuma exploração espectacular do atroz, não há qualquer pornografia da violência. Os campos estão preservados em absoluta sobriedade e decência. Mas sente-se bem o que lá se passou. É possível  imaginar tudo, imaginar caras, imaginar sons, sentir os passos, preencher de gente destruída aquele vazio que é memória de imenso sofrimento e cruel brutalidade. E dói.
Quando lá fui da primeira vez, fiz um filme. Lembro-me que filmei enquanto entrava em Auschwitz pelo célebre portão “Arbeit macht frei”. Filmei mais percursos a andar entre as casamatas do campo. Quando vi o vídeo de regresso a casa, arrepiei-me (e vieram-me lágrimas aos olhos) com o som dos meus próprios passos na gravilha desses caminhos, como se eu fosse um soldado a marchar ou um condenado a arrastar-se. Cenário terrível! Memória necessária.

Por falar em coincidências, não resisto a falar do Jaime Wahnon, um colega meu de liceu e de Faculdade. É judeu. Éramos próximos. Estudávamos juntos muitas vezes. Dávamo-nos muito bem. Às tantas, pouco depois do 25 de Abril, desapareceu. Soubemos que tinha ido para Israel e, depois, perdemos-lhe o rasto e o contacto. A certa altura, muitos anos depois, alguém me disse que estaria pelo Canadá. E, há poucos anos, pela internet – tinha que ser! – é ele que me descobre no Parlamento Europeu, por causa de uma questão com Cabo Verde. Efectivamente, estava a viver no Canadá. Voltámos a contactar. E, agora, mandei-lhe, por graça, pela internet, um convite para esta primeira Tertúlia Diplomática.

Tocaram-me as palavras que logo me escreveu de volta, num português já um pouco enferrujado. São palavras que apresentam melhor do que eu faria o tema de que falará a embaixadora Katarzyna Skórzyńska:

Aproveito o teu convite para dar-te um forte abraço amigo que há muito não te tinha passado. Espero que esteja tudo bem contigo. Calculo que deves andar bem ocupado com discussões e negociações politicas com fim de tentar controlar a crise económica. Não deve ser fácil.
Agradeço também ter sido incluído no teu convite que infelizmente não poderei assistir, mas não falta vontade.
Emociona-me saber que a primeira sessão terá como tema a Shoah que foi há mais de 65 anos atrás, ainda que terá actualidade hoje. A minha mãe e avós escaparam-se do Holocausto, mas a família toda desapareceu.  Portugal deixou-os entrar em 1923. O único pais que nessa altura não necessitava vistos. A minha mãe já nasceu em Portugal. Os meus avós viviam então em Berlim após terem sido levados, quase como escravos, durante a primeira guerra, da Polónia, onde estavam a morrer de fome, para trabalhar na indústria de guerra alemã. Aí ficaram, mas aos poucos começaram a sentir o início do movimento nazi. Tiveram pressentimento dos horrores que os judeus iriam passar. Todos os Consulados a que foram não os queriam. Finalmente o Cônsul português em Berlim com quem falaram, disse-lhes que não havia impedimentos mas advertiu-os que Portugal era um pais pobre com revoluções cada semana, mas que havia sol 11 meses ao ano e as melhores laranjas. A minha avó que até então só havia sonhado com laranjas acabou por ser “comprada” com uma laranja. Graças a isso estou aqui hoje a escrever-te.
Conto-te uma pequena história interessante:
Sabemos que um tio da minha mãe foi um dos dirigentes  e combatente da resistência no Gueto de Będzin (Polónia) e aí faleceu. O filho dele (o único familiar que escapou) de jovem brincava à porta da sua casa aos berlindes com um amigo vizinho chamado Aaron. Aaron, que nasceu em Paris, voltava sempre com os pais para Będzin, onde eles nasceram. Ambos os miúdos escaparam Auschwitz porque ambos os pais, antes de serem levados, conseguiram entregar os filhos a famílias católicas locais. O meu primo que nunca mais soube do destino dos pais nem da irmã acabou por chegar  sozinho a Israel em 1947 a bordo do barco Exodus. Foi preso pelos Ingleses e foi enviado a um campo de refugiados na Ilha de Chipre conseguindo voltar a Israel um dia após a independência.
Só muitos anos depois o meu primo, numa palestre dada por um sobrevivente do Gueto de Będzin, veio a saber que o seu pai tinha sido um dos heróis do levantamento e que morreu não em Auschwitz mas durante a luta.
Terás talvez lido o livro do Jan Karski mas senão junto um link de um artigo que saiu em 2000 após o seu falecimento. É um bom resumo da história dele:
Aliás não devemos esquecer o heroísmo do nosso Aristides de Sousa Mendes, que sozinho salvou perto de 30.000 refugiados e sofreu por seu heroísmo um fim trágico. É bom notar que, ainda que o Salazar castigou o Aristides pelo seu acto, houve mais de 100.000 judeus que passaram e se salvaram por Lisboa entre os quais gente famosa e ilustres que devem a Portugal o seu agradecimento. Figueira da Foz foi durante um tempo um grande acampamento de refugiados. Entre muitos o famoso Rabino Menachem Schneerson de Nova Iorque (The Lubavitcher Rebbe). Ele passou vários meses em Portugal e chegou a Nova Iorque no navio Serpa Pinto da CCN. Portugal é pouco reconhecido por aquilo que fez.
Sim, o aspecto da participação de Portugal é de realçar. Claro que nos 35 anos que já não vivo aí essa participação deve ter sido já abordada. Sousa Mendes é um exemplo mas não deixa de ser importante e honroso toda as vidas que foram salvas. Há anos atrás fui a uma palestre em honra de judeus eminentes de Montreal que se salvaram na viagem do Serpa Pinto que foi abordado por um submarino alemão a 800 km da costa americana. Graças ao heroísmo do capitão o barco seguiu ainda que os passageiros esperavam nos barcos de salvação no alto mar enquanto o capitão negociava. Um dos convidados em bom português começou a noite dizendo "obrigado Portugal".

Mas tudo isto são passagens menores de uma tragédia maior que o mundo infelizmente quer esquecer ou até negar que existiu. Ainda há gente que presenciaram mas dentro de pouco será mais uma nota na história.

Mas alegro-me saber que a vossa primeira sessão tem o Holocausto como tema.

Para bem da humanidade não se pode esquecer. Havendo as condições pode bem repetir-se.
Desculpa este longo mail, mas, como escrevemos pouco, aproveitei a deixa.

E é com esta deixa do Jaime Wahnon que abro o apetite para a palestra de logo à tarde da senhora embaixadora da Polónia, Katarzyna Skórzyńska, e para o livro da sua testemunha, Jan Karski, com que estreia a nossa Tertúlia Diplomática.

José Ribeiro e Castro

Um texto memorável

Para quem não leu na altura, ou para quem quer recordar agora, vale a pena transcrever esse texto magnífico:






Nada me faltará

por MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO

7 Julho 2011

Acho que descobri a política - como amor da cidade e do seu bem - em casa.

Nasci numa família com convicções políticas, com sentido do amor e do serviço de Deus e da Pátria. O meu Avô, Eduardo Pinto da Cunha, adolescente, foi combatente monárquico e depois emigrado, com a família, por causa disso. O meu Pai, Luís, era um patriota que adorava a África portuguesa e aí passava as férias a visitar os filiados do LAG. A minha Mãe, Maria José, lia-nos a mim e às minhas irmãs a Mensagem de Pessoa, quando eu tinha sete anos. A minha Tia e madrinha, a Tia Mimi, quando a guerra de África começou, ofereceu-se para acompanhar pelos sítios mais recônditos de Angola, em teco-tecos, os jornalistas estrangeiros.

Aprendi, desde cedo, o dever de não ignorar o que via, ouvia e lia.

Aos dezassete anos, no primeiro ano da Faculdade, furei uma greve associativa. Fi-lo mais por rebeldia contra uma ordem imposta arbitrariamente(mesmo que alternativa) que por qualquer outra coisa. Foi por isso que conheci o Jaime e mudámos as nossas vidas, ficando sempre juntos. Fizemos desde então uma família, com os nossos filhos – o Eduardo, a Catarina, a Teresinha - e com os filhos deles. Há quase quarenta anos.

Procurei, procurámos, sempre viver de acordo com os princípios que tinham a ver com valores ditos tradicionais - Deus e a Pátria -, mas também com a justiça e com a solidariedade em que sempre acreditei e acredito. Tenho tentado deles dar testemunho na vida política e no serviço público. Sem transigências, sem abdicações, sem meter no bolso ideias e convicções.

Convicções que partem de uma fé profunda no amor de Cristo, que sempre nos diz - como repetiu João Paulo II - "não tenhais medo". Graças a Deus nunca tive medo. Nem das fugas, nem dos exílios, nem da perseguição, nem da incerteza. Nem da vida, nem na morte. Suportei as rodas baixas da fortuna, partilhei a humilhação da diáspora dos portugueses de África, conheci o exílio no Brasil e em Espanha. Aprendi a levar a pátria na sola dos sapatos.

Como no salmo, o Senhor foi sempre o meu pastor e por isso nada me faltou mesmo quando faltava tudo.

Regressada a Portugal, concluí o meu curso e iniciei uma actividade profissional em que procurei sempre servir o Estado e a comunidade com lealdade e com coerência.Gostei de trabalhar no serviço público, quer em funções de aconselhamento ou assessoria quer como responsável de grandes organizações. Procurei fazer o melhor pelas instituições e pelos que nelas trabalhavam, cuidando dos que por elas eram assistidos. Nunca critérios do sectarismo político moveram ou influenciaram os meus juízos na escolha de colaboradores ou na sua avaliação.

Combatendo ideias e políticas que considerei erradas ou nocivas para o bem comum, sempre respeitei, como pessoas, os seus defensores por convicção, os meus adversários.

A política activa, partidária, também foi importante para mim. Vivi-a com racionalidade, mas também com emoção e até com paixão. Tentei subordiná-la a valores e crenças superiores. E seguir regras éticas também nos meios.

Fui deputada, líder parlamentar e vereadora por Lisboa pelo CDS-PP, e depois eleita por duas vezes deputada independente nas listas do PSD.

Também aqui servi o melhor que soube e pude. Bati-me por causas cívicas, umas vitoriosas, outras derrotadas, desde a defesa da unidade do país contra regionalismos centrífugos, até à defesa da vida e dos mais fracos entre os fracos. Foi em nome deles e das causas em que acredito que, além do combate político directo na representação popular, intervim com regularidade na televisão, rádio, jornais, como aqui no DN.

Nas fraquezas e limites da condição humana, tentei travar esse bom combate de que fala o apóstolo Paulo. E guardei a Fé.

Tem sido bom viver estes tempos felizes e difíceis, porque uma vida boa não é uma boa vida.

Estou agora num combate mais pessoal, contra um inimigo subtil, silencioso, traiçoeiro. Neste combate conto com a ciência dos homens e com a graça de Deus, Pai de nós todos, para não ter medo. E também com a família e com os amigos. Esperando o pior, mas confiando no melhor.

Seja qual for o desfecho, como o Senhor é meu pastor, nada me faltará.

[publicado no "Diário de Notícias" no dia seguinte à sua morte]

domingo, 20 de novembro de 2011

Olá, Maria José.

Faz pouco mais de quatro meses que a Maria José nos deixou. Ainda não encontrei a distância e a tranquilidade necessárias a escrever o que quero escrever sobre ela. Foi uma grande mulher. E é grande a falta que faz.

Hoje, na missa de domingo, XXXIV Domingo do Tempo Comum, em que se celebrou a Solenidade de Cristo-Rei, o Salmo era para ela:

Refrão: O Senhor é meu pastor: nada me faltará.

O Senhor é meu pastor: nada me falta.
Leva-me a descansar em verdes prados,
conduz-me às águas refrescantes
e reconforta a minha alma.

Refrão: O Senhor é meu pastor: nada me faltará.
Ele me guia por sendas direitas,
por amor do seu nome.
Ainda que tenha de andar por vales tenebrosos
não temerei nenhum mal, porque Vós estais comigo.

Refrão: O Senhor é meu pastor: nada me faltará.

Para mim preparais a mesa
à vista dos meus adversários;
com óleo me perfumais a cabeça
e o meu cálice transborda.

Refrão: O Senhor é meu pastor: nada me faltará.

A bondade e a graça hão-de acompanhar-me,
todos os dias da minha vida,
e habitarei na casa do Senhor
para todo o sempre.

Refrão: O Senhor é meu pastor: nada me faltará.

Lembrei-me particularmente da Maria José. E do seu memorável último artigo, já póstumo, no "Diário de Notícias".

José Ribeiro e Castro