quarta-feira, 25 de abril de 2018

Cumprir 1997: o voto é a arma do povo

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, saído hoje no jornal i.
Entre as grandes frases do 25 de Abril houve esta: “Voto, uma arma do povo.” A mobilização oficial para as primeiras eleições fez-se com esse slogan, o que logo inspirou uma pichagem dos anarquistas: “O voto é a arma do povo; se votas, ficas sem ela”.
Fila para votar, nas eleições de 1975

Cumprir 1997: o voto é a arma do povo
Entre as grandes frases do 25 de Abril houve esta: “Voto, uma arma do povo.” A mobilização oficial para as primeiras eleições fez-se com esse slogan, o que logo inspirou uma pichagem dos anarquistas: “O voto é a arma do povo; se votas, ficas sem ela”

Os anarquistas dos graffiti mal sabiam que talvez acertassem. Os cidadãos responderam em massa às constituintes de 25 de abril de 1975: votaram 91,7%! A seguir, nas legislativas, a 25 de abril de 1976, a abstenção manteve-se baixa: 16,5%. O mesmo até 1980: afluência nos 84%, abstenção de 16%. Mas, desde 1983, a abstenção sobe em contínuo: já vai nos 44,1%, em 2015.

A participação democrática foi perdendo atração. O desapontamento com os partidos cresceu. O desencanto com a representação política alastrou. É muita pena quando assim acontece. Pior, quando não se corrige, para recuperar o encanto da democracia e a mobilização da cidadania.

Há 20 anos, a Assembleia da República esteve nessa encruzilhada. A Constituição acabara de ser revista, permitindo significativa reforma eleitoral. O sistema de representação proporcional não era minimamente posto em causa, antes tinha de continuar a ser aplicado. Poderia até ser mais respeitado. Mas a Constituição abriu a porta a que, a par das listas plurinominais, se introduzissem círculos uninominais complementares: cada eleitor poderia também escolher o seu deputado. Esta inovação não tem magia: é possível ter um sistema com círculos uninominais, em que o parlamento é proporcional e não de composição maioritária. Chama-se representação proporcional personalizada, como vigora nalguns países.

Dizer que a Constituição abriu a porta em 1997 é o mesmo que dizer que a Constituição apontou para aí: as Constituições não abrem portas para voltarem a ser cerradas. E, na verdade, essa reforma – um sistema misto, proporcional, de candidaturas uninominais e listas plurinominais – era aquela que já se sentia que se impunha.

A 23 de abril de 1998, fez anteontem 20 anos, o plenário da Assembleia debateu e votou na generalidade três textos na esteira da revisão constitucional de 1997. Dois avançavam para a nova representação proporcional personalizada: um projeto de lei do PSD e a proposta de lei do governo (PS). O projeto de lei do PCP mantinha o sistema ainda atual.

Todos sabiam do que precisávamos face ao mau estado da democracia. E conheciam a urgência. O deputado Luís Marques Guedes (PSD) apontou o dedo: “Há hoje um afastamento crescente dos cidadãos em relação à política e às instituições representativas do país, num processo de divórcio entre eleitores e eleitos que urge inverter.” O deputado Luís Sá (PCP) fazia diagnóstico certeiro: “Não há matéria que mais prejudique o prestígio dos deputados e que mais os desvalorize do que estarem dependentes de negociatas de bastidores em que são completamente anulados e em que as questões de princípio, declaradas na véspera, não valem rigorosamente nada!” Na onda, o ministro dos Assuntos Parlamentares António Costa, atual primeiro-ministro, vaticinou: “A presente legislatura assinala os 25 anos do 25 de Abril. Não nos limitemos para o ano que vem a festejar o passado da democracia. Comecemos já este ano a acreditar no futuro da democracia.” E o atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, foi citado neste debate por, num colóquio da Comissão Nacional de Eleições, já em 1992, ter afirmado: “Não vejo urgência fatal na reforma eleitoral, a não ser precisamente naquilo que tem a ver com a relação eleitor/eleito. (…) Deixar tudo como está será irresponsável. É patente o distanciamento entre representantes e representados e o divórcio cada vez maior entre eleitos e eleitores, o que muito tem a ver com o caráter obsoleto do nosso sistema eleitoral.” É isto mesmo. Como disse na altura o atual primeiro-ministro, “uma nova partilha de poder entre os partidos políticos e os cidadãos”. Há 20 anos!

O ministro ainda apelou a que o PS viabilizasse todos os textos, tratando das diferenças na especialidade. Contaria que a oposição fizesse igual. Mas o debate, que começara radioso, foi azedando até ao extremo pela inflexibilidade do PSD na redução imediata do número de deputados, mais as reações que provocou. Tudo chumbado! Foi uma das sessões mais funestas da nossa história parlamentar: cada partido só votou a favor do seu texto, reprovando todos os outros. A Assembleia reconhecia a necessidade e a urgência; mas preferiu, por unanimidade, largar a democracia a apodrecer. Esteve na encruzilhada do futuro; mas guinou para trás.

Em termos europeus, Portugal tem um rácio de eleitores por deputado que revela não ser o número de deputados um problema, muito menos prioritário. Entre países similares, com 8 a 10 milhões de eleitores (Portugal, Hungria, Bélgica, Grécia e República Checa), a Assembleia da República tem o rácio mais elevado de todos. Só um encolheu o parlamento nos últimos anos: a Hungria, que reduziu de 386 para 199 deputados. Mas a Hungria ficou, ainda assim, com um rácio mais baixo que Portugal: o nosso é de 42 108 eleitores/deputado, o húngaro ficou em 41 770. Esta é claramente uma falsa questão para montar o bloqueio.

Atabafado por uma oligocracia de diretórios e interesses, o voto é cada vez menos a arma do povo. O cidadão eleitor conta muito pouco porque o deputado eleito também vale cada vez menos. Agora, a Assembleia descobriu a última moda: deliberar ilegalmente, contando presentes e ausentes. Há votações em que se contam os 230 deputados. Tanto faz estar como não estar no hemiciclo – o partido manda e notifica.

A reforma projetada em 1997 hiberna há 20 anos, soterrada pelos interesses dos que mexem os cordéis. Os cidadãos perdem; mas há sempre quem ganhe com a captura. O bloqueio é daqui que vem. Foi isso que a parou em 1998. É isso que a tolhe desde 1998. Só a cidadania pode abrir alas.

A SEDES e a Associação Por Uma Democracia de Qualidade trabalham para acordar a reforma eleitoral, fazendo o que o parlamento deveria ter concluído em 1998. Hoje, 20 anos depois da frustração e do vaticínio por cumprir de António Costa, a notícia deste 25 de Abril é que está pronto o anteprojeto de iniciativa legislativa de cidadãos que queremos levar à Assembleia da República com o apoio e a subscrição de 20 mil portugueses. É o nosso 25 de Abril, atualizado.

O nosso projeto prevê um total de 229 deputados, sendo 225 eleitos no território nacional e quatro pela emigração. Os círculos territoriais seguem a divisão regional e distrital, mas não podem eleger menos de oito deputados – agregam--se as circunscrições vizinhas até alcançar este número. Estes círculos territoriais elegem 210 deputados, podendo 105 ser eleitos em círculos uninominais. O duplo voto permitirá a cada eleitor escolher quer o partido que prefira, quer o seu deputado. Os outros 15 deputados são atribuídos pelo círculo nacional, para acerto da proporcionalidade entre as forças eleitas, corrigindo distorções e acomodando os mandatos suplementares e os complementares, próprios destes sistemas mistos, como na Alemanha.

Estou certo de que esta reforma fará logo baixar a abstenção para menos de 30%, embora sonhemos com níveis de participação acima de 80%, como no fim da década de 1970. Mas mais importante que estes números é que os eleitores se reencontrem com a democracia e a sua representação numa Assembleia da República prestigiada, a funcionar muito melhor.

Os que se afastaram terão motivos para voltar. Quando cumprirmos a promessa constitucional de 1997, votar valerá muito a pena. Será mesmo a sério. De que estamos à espera? 

José RIBEIRO E CASTRO
Advogado
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"


NOTA: artigo publicado no jornal i

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Uma política de destruição do interior

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Clemente Pedro Nunes, hoje saído no jornal i.
É incompreensível que, na estratégia que delineou para recuperar o interior do país, o governo nada tenha feito para dissuadir os criminosos, preferindo massacrar ainda mais psicologicamente as vítimas.
Uma política de destruição do interior 
É certamente difícil de entender para uma grande parte dos portugueses que vivem nas áreas metropolitanas do litoral o grau de destruição social e económica que se desencadeou em 36 mil quilómetros quadrados do nosso território como consequência dos terríveis incêndios que devastaram essas regiões em 17 de junho e em 15 de outubro do passado ano de 2017.

A já de si muito frágil e precária estrutura de sustentação económica anteriormente existente no minifúndio interior, nesse vasto território que começa no Tejo e vai até à raia transmontana, com populações residentes muito escassas e envelhecidas, foi dizimada com a extensão brutal da área ardida de mais de 550 mil hectares de terrenos agroflorestais, das casas e empresas reduzidas a cinzas e sobretudo com a enorme tragédia humana que os mais de 120 mortos então ocorridos representam e que destruíram a confiança de todas estas populações para se poderem sentir seguras para viverem e investirem nessas regiões.

É, por isso, totalmente incompreensível que o governo tenha optado, na estratégia que delineou para recuperar estas regiões, por dar prioridade política não a reprimir os incendiários, a agravar o respetivo quadro penal e a reforçar os meios de investigação para que cada vez mais esse tipo de crimes hediondos deixe de ficar impune, mas sim a reprimir e a complicar a vida dos pequenos e microproprietários rurais dessas zonas depauperadas do minifúndio do interior de Portugal.

O expoente máximo desta política de reprimir e massacrar psicologicamente os já massacrados pelos incêndios foi o tristemente célebre email dirigido pela Autoridade Tributária (sic) ameaçando com pesadas e reforçadas multas todos aqueles que tenham propriedades nessas zonas massacradas.

Ou seja, para dissuadir os criminosos, nada de novo se fez!

Mas para massacrar psicologicamente ainda mais as vítimas mobilizam-se todos os recursos do Estado, incluindo a Autoridade Tributária!

Felizmente que o Presidente da República, numa intervenção pública em Oliveira do Hospital, dias antes da data anunciada pelo ministro da Administração Interna para a “abertura da caça” aos bolsos depauperados dos desgraçados dos microproprietários do minifúndio do interior, veio declarar que “de facto, o governo não queria multar ninguém” e que a fatídica “data de 15 de março era, afinal, apenas indicativa e flexível”.

Foi muito oportuna esta intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa, pois não se pode acreditar que qualquer governo responsável, que tem de ter no topo das suas prioridades a coesão económica e social de todo o território de Portugal, possa pôr no topo da sua agenda de combate aos fogos medidas preventivas de desflorestação tecnicamente atrabiliárias, como salientou o próprio relatório oficial sobre os incêndios de outubro, e que só destroem ainda mais a base da sobrevivência das populações rurais do minifúndio que ainda labutam e habitam nessas regiões.

Pelo contrário, o que deveria ter sido feito desde logo era promover a venda da biomassa semiardida através da eliminação do respetivo IVA e criar parques seguros para recolher a madeira queimada mas, até agora, nenhum desses 12 parques previstos saiu das meras intenções. De facto, nenhum foi instalado no terreno!

E como muito bem têm dito dois dos responsáveis máximos pelo Movimento Portugal Interior, os antigos ministros Jorge Coelho e Miguel Cadilhe, a prioridade terá também de ser, nesta hora de verdadeira emergência nacional, uma discriminação positiva relativamente às pessoas e às empresas que vivem e trabalham nestas regiões.

É isso mesmo que exige uma democracia de qualidade no nosso país.

A preocupação terá de ser definir políticas públicas que tornem menos penoso, para quem trabalha e investe nestas regiões, poder dar o seu contributo positivo para o conjunto do país.

O que se exige não é uma política assistencialista de dar esmolas, mas sim facilitar a vida e reduzir a carga fiscal e a pressão burocrática a quem trabalha e investe nessas regiões.

Reduzindo o IRC, isentando de IMT as operações de emparcelamento agroflorestal, facilitando a comercialização dos produtos agropecuários dos microprodutores do minifúndio, canalizando prioritariamente os fundos comunitários para apoiar os investimentos públicos e privados nestas regiões, e não para fazer ciclovias e outros adornos nas zonas mais prósperas do litoral que, obviamente, terão de ter outras fontes próprias de financiamento.

É isso que se exige e se espera com urgência de uma democracia de qualidade, para se poder salvar o Portugal interior!

Clemente PEDRO NUNES
Professor Catedrático do Instituto Superior Técnico
Subscritor do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade

NOTA: artigo publicado no jornal i.

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Democracia e populismo

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Henrique Neto, saído hoje no jornal i.
É urgente criar um modelo de democracia capaz de selecionar os melhores, aqueles que, possuindo as motivações transcendentes de devoção ao bem público, têm um passado que o demonstre. 
Democracia e populismo

Os regimes democráticos mostram-se hoje incapazes de escolher democraticamente os cidadãos mais bem preparados e com melhor formação humana e competência para dirigir os destinos dos povos. Isto tornou-se bem visível na escolha de governantes como George Bush e Donald Trump nos Estados Unidos, Durão Barroso na União Europeia e José Sócrates em Portugal.

Como resultado deste fenómeno, vivemos hoje num planeta crescentemente mais perigoso, por força da generalização da existência nas democracias de dirigentes mundiais desqualificados, imprevisíveis ou mesmo perigosos, como é o caso de Putin, Trump ou Erdogan. Com a nota curiosa de que os dirigentes europeus, sendo muitos deles igualmente pouco recomendáveis, são bastante menos perigosos.

No caso de Portugal, é reconhecida a curva descendente da qualidade dos nossos governantes dos últimos 30 anos, dentro do modelo europeu de baixa perigosidade – isso, claro está, se considerarmos de forma benevolente a trágica continuidade de políticas que nos afastam progressivamente dos avanços sociais e económicos de outros povos, ou a incapacidade de prover à necessária segurança dos cidadãos.

Sendo este um fenómeno global, as causas são naturalmente complexas e difíceis de quantificar, podendo não ser exatamente as mesmas em todos os países. Todavia, acredito que a causa principal seja originada pelo aparecimento de poderosos meios de comunicação, para mais aliados a uma inexistente racionalidade de largas franjas de cidadãos eleitores que não estão preparados, porventura nunca estiveram, para a responsabilidade do voto democrático – razão pela qual são altamente influenciados por esses mesmos meios de comunicação, não sendo indiferente que em Portugal, como noutros países, nenhum candidato ao poder político terá sucesso se não tiver passado por uma ampla e prévia exposição mediática. Não direi que as poderosas empresas de comunicação, ou as redes sociais, possam criar um líder político vencedor da mesma forma que vendem cereais de pequeno-almoço, mas será difícil, senão impossível, vencer uma eleição relevante sem a visibilidade que apenas a comunicação de massas permite.

O perigoso motivo desta situação, que representa o resultado de uma certa evolução das sociedades modernas, é que a concorrência pelo poder político favorece os vendedores de banha da cobra e os mentirosos compulsivos, quando não os delinquentes irresponsáveis do modelo de Donald Trump e Silvio Berlusconi ou de José Sócrates – situação em que os candidatos mais racionais, responsáveis e sérios têm uma crescente dificuldade em fazerem-se ouvir, logo em sobreviver, na selva mediática.

Por outro lado, este fenómeno foge aos padrões ideológicos tradicionais de esquerda e de direita para dar lugar ao populismo, igualmente presente nos dois lados da equação – com a opinião pessoal de que a escola, idealmente fornecedora de conhecimentos e de comportamentos, raramente cumpre em ambos os casos o seu papel de ensinar a pensar, além de estar envenenada nas universidades pela confusão criada pelas chamadas ciências sociais, o que conduz largas camadas da população para uma certa e preocupante anarquia intelectual, ignorante dos valores básicos do método científico; além da ignorância pura e dura que ainda sobrevive em muitas sociedades, como é o caso da portuguesa.

Penso que estes são os fatores que estão a generalizar o fenómeno do populismo, como os últimos atos eleitorais demonstram de forma preocupante em vários países – populismo a que não foge a atual política portuguesa da geringonça, seja porque, não tendo uma direção estratégica, diz e faz tudo o que for necessário para se manter no poder e, como substituto da racionalidade e da competência, usará a propaganda ao limite, seja porque beneficia de um sistema eleitoral que permite a escolha dos candidatos dentro da própria oligarquia do sistema, seja porque não permite a possibilidade de entrada de quaisquer candidaturas imprevisíveis ou indesejáveis. Para o bem e para o mal, é um sistema que impede a entrada em cena de um qualquer palhaço profissional, ainda que favoreça bastante os palhaços que não têm profissão conhecida.

Em resumo, é urgente criar um modelo de democracia capaz de selecionar os melhores, aqueles que, possuindo as motivações transcendentes de devoção ao bem público, têm um passado que o demonstre – o que, entre nós, passa por abrir o castelo partidário à concorrência e ao voto verdadeiramente democrático de todos os portugueses, como defendido no “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”.

Fica para outro texto a necessidade de criar uma escola de seres pensantes, capazes de fazerem escolhas inteligentes e de intervir conscientemente no sentido do progresso humano, social e económico da coletividade. Que é, aliás, a forma de desenvolver uma comunicação social mais qualificada, mais livre e mais idónea. 

Henrique NETO
Empresário
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade


NOTA: artigo publicado no jornal i.

quinta-feira, 5 de abril de 2018

A sociedade suicida

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, saído ontem no jornal i
Da família alargada passámos à família nuclear, desenraizada e desestruturada, fora do seu ambiente tradicional, e desta à atomização social em que o paradigma da família de pai, mãe, filhos, avós, primos, tios passou a ter o nome de “família tradicional”.  
A sociedade suicida
“Tenho defendido que vivemos em sociedades capitalistas, coloniais e patriarcais, por referência aos três principais modos de dominação da era moderna: capitalismo, colonialismo e patriarcado, mais precisamente heteropatriarcado” – Boaventura Sousa Santos, “Público”, sexta-feira, 30 de março de 2018.

Não há democracia com qualidade que possa singrar numa sociedade desequilibrada que não cumpra adequadamente as cláusulas do contrato social entre o Estado e os cidadãos.

Portugal, tal como muitas outras sociedades do mundo ocidental a que pertencemos, é uma sociedade profundamente desequilibrada, atravessada por desigualdades enormes e falta de coesão social e de crença nos seus próprios princípios fundadores, em que os cidadãos consideram ter sido traídos pelo Estado e pelas elites.

É no âmbito da estruturação social ou, mais precisamente, da desestruturação social, que este desequilíbrio mais se faz sentir: de uma sociedade que há meio século era ainda profundamente rural, atávica, que tinha uma taxa de fecundidade e de poupança superiores à média europeia, passámos para uma sociedade de consumo, com uma taxa de fertilidade das mais baixas da Europa, até negativa, com famílias profundamente endividadas, por via de uma urbanização/litoralização crescente e caótica que subverteu completamente os pilares estruturais da organização territorial do país.

Da família alargada passámos à família nuclear, desenraizada e desestruturada, fora do seu ambiente tradicional, e desta à atomização social em que o paradigma da família de pai, mãe, filhos, avós, primos, tios passou a ter o nome de “família tradicional”, como se estivéssemos a descrever uma reserva de índios…

A esta engenharia social, nas palavras de Adriano Moreira, a sociedade portuguesa não deu durante décadas qualquer resposta, antes pelo contrário, assistiu imperturbável – e com aplauso – à destruição da “sociedade patriarcal, mais precisamente heteropatriarcal”, que a esquerda portuguesa considera a forma de “dominação” a abater.

Uma forma de combater esta sociedade “heteropatriarcal” foi a invenção de uma novilíngua destinada a desmerecer os princípios fundadores da sociedade e a promover em seu lugar novos paradigmas sociais, apresentados como merecedores de aplauso. Helena Sacadura Cabral escrevia há dias um artigo em que denunciava precisamente esta novilíngua como arauto da nova sociedade que estamos a criar.

Uma das características desta nova sociedade é a imposição à opinião pública de noções desmerecedoras daquilo em que fomos educados a acreditar e que constitui a pedra de base e o cimento de qualquer sociedade, que necessita, para poder funcionar, dos seus mitos fundadores e dos seus heróis. Sem isso não há uma sociedade, há um conjunto de pessoas que nada liga entre si.

É-nos vendida a ideia de que o “Portugal que deu novos mundos ao mundo” era antes uma sociedade racista e esclavagista, que a nossa gesta universalista foi, antes do mais, um ato de agressão religiosa e racial contra povos que subjugámos, que a nossa pretensa superioridade cultural, no mundo de relativismo em que vivemos, é uma falsidade, que a nossa cultura judaico-cristã foi apenas uma invenção para permitir a elites racistas e gananciosas dominar o resto do mundo.

Muito a propósito, num filme recentemente chegado às salas de cinema, “7 Dias em Entebbe”, que conta a história do desvio de um avião da Air France com dezenas de judeus a bordo por terroristas alemães e palestinianos, um combatente palestiniano diz a um alemão que não entende porque é que ele está a fazer aquilo e conclui: “Eu faço isto porque amo o meu país, tu fazes isto porque odeias o teu.” E é isso mesmo.

Este ódio da esquerda ao nosso país, à sociedade em que nascemos e crescemos, aos seus princípios fundadores, tem consequências gravíssimas que os anos estão a cavar e a aprofundar.

De particular relevo é o ódio da esquerda à dita sociedade “heteropatriarcal”, em tudo o oposto à sociedade que a parte caviar dessa esquerda se habituou a sonhar no Frágil e que hoje tem finalmente a oportunidade de pôr em prática.

Indiferente ao facto de essa sociedade “heteropatriarcal” ser a pedra de toque da estabilidade social, o motor último da poupança, da aposta na educação dos filhos, a esquerda procura imprimir uma especial nota de desvalor a esse tipo de família, ridicularizando-a como um reduto de reacionários sociais.

Mais preocupada em acolher dignamente os desvalidos do mundo, a esquerda parece indiferente à sorte das centenas de milhares de jovens casais portugueses, famílias em potência, que não conseguem encontrar numa cidade como Lisboa um porto de abrigo familiar, uma casa que os acolha, bem como aos seus sonhos, aos seus filhos e, em suma, à sua vida.

Só isto daria um longo artigo, um tratado, mas permitam-me fazer, tão ao jeito da esquerda, uma “modesta proposta”: o que falta à Câmara Municipal de Lisboa, cujo presidente e vereadores hão de ter olhos na cara para ver o que se passa, para decidir urbanizar, de uma forma civilizada e com o fito de criar milhares de domicílios com rendas ao alcance da classe média, as dezenas e dezenas de hectares que existem por urbanizar em Lisboa, em vez de empurrar para periferias cada vez mais desestruturadas e desumanizadas esses jovens casais cujo crime é o de não serem milionários para poderem comprar casa em Lisboa?

O que lhes falta, a eles e aos municípios circundantes, para implementar e pôr a funcionar uma eficiente rede de transportes urbanos que torne suportável a vida a quem já vive longe do centro?

Uma sociedade que não cuida dos seus, que os abandona à sorte ingrata, que é indiferente ao seu próprio futuro, endividada e em regressão, é uma sociedade suicida que a prazo terá perdido o direito de existir.

Nessa sociedade, que é o contrário de tudo o que defendo, não há qualquer democracia, nem de qualidade nem outra.
João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade


NOTA: artigo publicado no jornal i.