quarta-feira, 28 de março de 2018

Fogo-de-vista, fogo de lágrimas: ala, moço, que se faz tarde!...

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, saído hoje no jornal i.
À devastação dos incêndios pode suceder uma nova destruição, burocrática, devido à obrigatoriedade de distância entre a copa das árvores, que chega aos 10 metros.
Fogo-de-vista, fogo de lágrimas: ala, moço, que se faz tarde!...
E cá vamos andando, nesta democracia sem qualidade.

Porventura com a memória do Dia de Trabalho para a Nação, decretado por Vasco Gonçalves, estabeleceu o primeiro-ministro dois dias de mobilização nacional para a causa da floresta, convidando cidadãos, deputados e partidos a juntarem-se nas ações de limpeza. Seis minutos e 47 segundos foi a contribuição direta do primeiro-ministro para a defesa da floresta. Mais do que isso levou certamente a vestir a armadura para a sua defesa pessoal: botas resistentes, proteção para as pernas, óculos e viseira, protetor dos ouvidos, casaco e capacete garbosamente amarelos. Uma alegoria perfeita: devidamente couraçado, seis minutos de roçadora na mão e ala, moço, que se faz tarde, é preciso ir ver roçar a outra banda, mas inculcada ficou a ideia de que o seu trabalho ficou feito e de que a responsabilidade que resta é toda dos proprietários. E os ministros sapadores, não do mato mas do microfone, ampliaram a mensagem.

A mensagem do primeiro-ministro estaria certa se ao fogo real que matou mais de uma centena de portugueses tivesse respondido o governo com legislação entendível e medidas praticáveis, em vez de um fogo-fátuo de propaganda de ações mal-amanhadas que deixam o cidadão e pequeno proprietário do minifúndio desprotegido e cada vez mais confuso. Claro que o ilustrado cidadão urbano, a leste dessas pindéricas e provincianas questões, é o primeiro a aplaudir a ação decidida do governo. E a votar em conformidade.

Uma lei que é “exemplo de leis mal feitas, sem base técnica ou científica”, no dizer da comissão independente. Uma lei tosca imposta para ser executada em dois ou três meses, depois prolongados, sem cuidar, em qualquer caso, da inexistência de meios humanos e técnicos disponíveis para cumprir tais datas.

Uma lei de tão largo espetro e sujeita a tantas interpretações que já levou a dizimar áreas sem tento nem senso, ao corte de árvores de fruto, à dúvida sobre abater ou preservar árvores protegidas.

À devastação dos incêndios pode suceder uma nova devastação, agora burocrática, devida à obrigatoriedade de distância entre a copa das árvores, que chega aos dez metros, um absurdo que facilita a radiação solar e a correspondente produção adicional de matos e matéria combustível, obrigando a mais intervenções, todavia impossíveis de executar por falta de meios financeiros. Sem esquecer o prejuízo resultante dos cortes, a que acresce o temor de multas pesadas.

Perante o dever de limpar a mata, o proprietário procura saber o que fazer. Fala com a junta, que diz que é tudo uma asneira, mas que tem de cumprir para não ter problemas; com a câmara, mais política, que diz que vá cortando e depois logo se vê; com os sapadores contratados e as empresas florestais, que não querem responsabilidades e fazem o que o dono entender. E fala com a GNR, que se limita a repetir a lei. E, perante respostas tão diversas, o cidadão fica inquieto e confuso e sem saber, por mero exemplo, se os medronheiros são árvores de fruto a preservar ou arbustos que crescem na mata e não podem ultrapassar os 50 cm de altura, ou se tem de podar as giestas e as ervas com mais de um palmo. E se o fizer, fica sem saber onde vão pastar as cabras, agora apresentadas como uma das soluções para os incêndios.

E se o prazo foi ampliado, nem por isso a GNR deixa de levantar autos. De mero aviso?

Não é assim? Vão então falar com as populações do centro do país e das Beiras!...

Urgente teria sido a instalação de parques de receção da madeira queimada ou abatida que assegurassem a sua conservação, amenizando os prejuízos dos proprietários e minimizando os danos florestais causados pelos insetos e fungos das árvores apodrecidas. Em circunstâncias mais penosas, a França fê-lo há anos, em pouquíssimo tempo, enquanto nós nem ainda um parque temos aprovado e muito menos em funcionamento.

Entretanto, e segundo as últimas estatísticas, vamos empobrecendo em relação à Europa, seis pontos percentuais entre 2010 e 2016. E nesta mesma data, o fosso entre a região mais rica do país, AMLisboa, e a região mais pobre, o Norte, era de 35 pontos percentuais. Mas isto pouco interessa, assim como nada interessa que o setor público se endividasse mais três mil milhões de euros em janeiro.

Cá vamos, pois, nesta democracia sem qualidade, mas cheia de fogo-de-vista a preceito. Ah, e o propalado défice de 0,9% com que a geringonça nos ia ludibriando passou rapidamente a 3%. Mas aqui também o governo fez o que lhe competia, a culpa é de Bruxelas…

Fogo-de-vista, fogo de lágrimas: ala, moço, que se faz tarde!...
António PINHO CARDÃO
Economista e gestor
Subscritor do Manifesto por Uma Democracia de Qualidade

NOTA: artigo publicado no jornal i

quarta-feira, 21 de março de 2018

Ensaio sobre a exigente actividade de político

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Eduardo Baptista Correia, hoje saído no jornal i.
A atividade política é de tal forma importante e consequente na vida de todos que o dever que carrega é, em tese, considerado o mais nobre. 
 
Ensaio sobre a exigente actividade de político
Estou absolutamente convicto que o desenvolvimento de uma nação está intrinsecamente ligado à qualidade do aparelho de Estado e da respectiva governação; assim sendo e por maioria de razão é a qualidade dos seus políticos que determina, em grande medida, a qualidade da democracia e o consequente desenvolvimento social e económico. O livro “Porque falham as Nações” constitui uma base de investigação sócio-económica suficientemente robusta na demostração efectiva dessa tese.

A actividade política é de tal forma importante e consequente na vida de todos que o dever que carrega é, em tese, considerado o mais nobre. Por isso se espera dos políticos níveis de rigor e exigência comportamental com critérios e amplitudes mais rígidas das exigíveis aos outros cidadãos. De algum modo e por razões óbvias se espera dos juízes, em áreas muito especificas do quotidiano, normas de conduta e exigência comportamental muito idênticas.

Espera-se dos políticos visão, conhecimento e a capacidade de trabalho em prol da comunidade e do território. É deles que o sonho, a confiança, o exemplo de trabalho, entrega e rigor deve partir. Espera-se que sirvam e não se sirvam, cabendo-lhes o padrão na forma ética e frugal como gerem a sua posição relativamente a interesses e benefícios.

Espera-se que sejam incorruptíveis e consequentemente imunes a influências ou benefícios materiais ou de estatuto. É a sua independência relativamente a domínios que não sejam o estrito cumprimento da defesa dos interesses do povo e da nação que asseguram a tão ambicionada qualidade da democracia e governação e consequentemente do desenvolvimento e coesão económica e social. Importa sublinhar que não há outro princípio de liderança que funcione que não assente na liderança pelo exemplo.

No nosso mundo, assistimos ao desvirtuar desses fundamentos de forma corrente, amplamente aceite e até disputada entre pares.

É recorrente assistirmos (utilizo apenas como exemplo ilustrativo) à proximidade entre clubes de futebol e políticos. A forma amplamente visível como presidentes e dirigentes de clubes e políticos convivem e intervêm nos respectivos campos fragiliza a independência absoluta dos políticos relativamente aos interesses corporativos desses mesmo clubes.

Os políticos comentadores são tantos e provenientes de todas as amplitudes políticas que enumerar um caso ou dois seria tão ridículo para os visados como para quem o faça. Os dirigentes que saltam dos clubes para os partidos e dos partidos para os clubes constituem uma longa lista. O número daqueles que estão nos dois lados ao mesmo tempo é bastante significativo. É aceitável que esse convívio e proximidade exista? Considero um erro demonstrativo da falta de rigor ético que o nosso sistema político carrega. Os políticos quando aceitam beneficiar de benesses corpóreas e incorpóreas junto de outras fontes de poder económico e reputacional ficam consciente ou inconscientemente reféns e perdem efectivamente a liberdade e o poder a que estão obrigados pelos princípios éticos e representacionais. No que aos princípios éticos diz respeito, a fronteira entre compadrio e corrupção é muito ténue.

A gravidade do problema no sistema político português é bastante mais complexa que a anteriormente evidenciada no que aos clubes de futebol e política diz respeito. Essa tipologia de comportamento está presente na relação que os políticos foram ao longo de décadas estabelecendo com gestores, banqueiros, jornalistas, procuradores e juízes.

O nosso sistema vai com alguma regularidade mostrando casos e as respectivas consequências nefastas deste tipo de comportamentos amplamente conhecidos, reconhecidos e até aceites, para a democracia, para a boa gestão da causa e fundos públicos, e para a justiça.

O nosso sistema está efectivamente cheio de favores, amiguismos e interdependências.

É aos políticos, por serem isso mesmo – políticos, a quem mais se exige. Não nos esqueçamos que é ao povo que fazem promessas, que é ao povo que imploram pelo voto, e é o povo que em tese deveriam representar.

Uma democracia de qualidade exige novos modelos eleitorais, mas acima de tudo exige novos modelos de comportamento, ética e transparência no modo como os políticos actuam.

Há muito para desenvolver e evoluir na democracia portuguesa.

Eduardo BAPTISTA CORREIA
Activista político, Gestor e Professor da Escola de Gestão do ISCTE/IUL
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"


NOTA: artigo publicado no jornal i

quarta-feira, 14 de março de 2018

A sociedade civil tem de assumir a ação e impor regras

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Fernando Teixeira Mendes, saído hoje no jornal i.
Uma Assembleia da República constituída com muitos deputados assim escolhidos não será certamente mais uma Assembleia conduzida de forma autoritária por seis ou sete chefes de bancadas parlamentares.
 
A sociedade civil tem de assumir a ação e impor regras
A situação política que se vive em Portugal é altamente preocupante. A abstenção nas eleições tem vindo a aumentar significativamente, os jovens afastam-se da participação política, não apostando sequer na atividade cívica de apoio à democracia. A qualidade da generalidade da classe política degrada-se de forma preocupante à medida que crescem as certezas da promiscuidade entre decisões políticas, o enriquecimento de muitos e o elevadíssimo financiamento dos partidos políticos.

Estes problemas gravíssimos deveriam fazer os partidos políticos com assento na Assembleia da República atuar para acabar com o verdadeiro flagelo que se vive.

Em 2014 publicámos o “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”, que inclui reformas cruciais para o sistema político em Portugal. Desenvolve este importante manifesto dois temas-chave para a qualidade da nossa democracia: a alteração do sistema eleitoral para a Assembleia da República e a alteração do sistema de financiamento dos partidos políticos.

Gostava de tecer um comentário que considero muito relevante: quando os partidos políticos insistem em manter um statu quo e a sociedade civil sente a contínua degradação da situação política, como se está a passar entre nós, quem tem de assumir a responsabilidade pela ação e impor as regras é a sociedade civil, e não os partidos políticos. Nestas situações, o mais provável é que estes estejam a autoproteger-se, menosprezando as consequências da sua inação.

Na sequência do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade” e porque as listas de deputados à Assembleia da República são decididas de forma absolutamente ditatorial pelos diretórios dos partidos políticos, a APDQ – Associação Por Uma Democracia de Qualidade, conjuntamente com a SEDES – Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, apresentou publicamente uma proposta de reforma do sistema eleitoral para a nossa Assembleia da República. A proposta contempla uma Assembleia com 229 deputados, dos quais 105 a serem eleitos em igual número de círculos uninominais. Círculos uninominais são, como é sabido, círculos onde os candidatos recebem votos específicos dos eleitores desse círculo e onde apenas o candidato mais votado é eleito. É bem fácil ver a importância acrescida da relação entre os eleitores e os candidatos que se apresentem para serem eleitos nesses círculos uninominais. Saberiam bem esses deputados que ou cumprem as suas tarefas de forma exemplar ou não voltam a ser eleitos por esse círculo. Uma Assembleia da República constituída com muitos deputados assim escolhidos não será, certamente, mais uma Assembleia conduzida de forma autoritária por seis ou sete chefes de bancadas parlamentares.

A sociedade civil tem o direito de perguntar aos partidos políticos porque é que a reforma constitucional de 1997, que permitiu a criação de círculos uninominais para a eleição de deputados para a Assembleia da República, há 20 anos, não foi ainda implementada? Tem, aliás, não só o direito de perguntar como tem ferramentas para impor a sua vontade através dos partidos existentes ou através de novos partidos que defendam o princípio da criação de círculos uninominais para estas eleições. Temos vindo todos a perder um tempo precioso! Um tempo fundamental para a consolidação da nossa democracia, acredito eu.

O parágrafo 2 do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade” aborda outra importantíssima problemática, a do financiamento dos partidos políticos, sobre a qual as discussões que recentemente têm vindo a público só vêm confirmar que se trata de um assunto de grande importância para a vida dos partidos políticos. É, além disso, um assunto aglutinador de grandes interesses e gerador de grandes conflitos. Valeu-nos o veto presidencial e o voto contra do CDS e do PAN porque, volto a mencionar nestes artigos, a eliminação do montante máximo dos proveitos dos partidos é uma enorme motivação para que as empresas procurem muitas pessoas para, através delas, efetuarem os seus donativos, facilmente ligados a negócios específicos.

Para evitar esta forma de atuação advogamos no mencionado manifesto uma limitação importante no tipo de receitas a serem recebidas pelos partidos. A saber:

“– Receitas de fonte maioritariamente pública, com verbas alocadas pelo Orçamento do Estado.

– Receitas privadas apenas por contributos de pessoas individuais em moldes estritamente regulamentados na lei (quotizações, donativos limitados ou eventos de angariação de fundos) e permitindo a respetiva fiscalidade pública, nomeadamente pelas deduções na coleta em sede de IRS ou por outros mecanismos de cruzamento com o sistema tributário.”

Advogámos ainda que fosse um corpo de auditores especiais no âmbito da Procuradoria-Geral da República ou uma secção especializada do Tribunal de Contas a auditar as contas dos partidos políticos. No entanto, os partidos fogem dessa auditoria como o diabo da cruz, vá-se lá saber porquê!

Está demonstrado que, com receitas maioritariamente públicas e verbas alocadas no Orçamento do Estado, se consegue que o financiamento partidário seja mais barato para os cidadãos e mais justo para os pequenos partidos que não têm acesso ao poder.

Mais um assunto que só a sociedade civil, conjuntamente com o senhor Presidente da República, poderá impor para que o bom senso reine no país.

Volto a escrever nesta coluna que a teia de complexos problemas associados à baixa qualidade da nossa democracia justifica uma grande manifestação da sociedade civil em prol dos princípios defendidos pelo Manifesto “Por Uma Democracia de Qualidade” .
Contactos e informações sobre o “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade” e sobre a proposta de reforma do sistema eleitoral podem ser obtidos através do email: porumademocraciadequalidade@gmail.com


Fernando TEIXEIRA MENDES
Gestor de empresas, Engenheiro
Subscritor do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade


NOTA: artigo publicado no jornal i.

sexta-feira, 9 de março de 2018

"Sexta-feira do contra": reforma do sistema eleitoral


Republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, saído hoje no jornal "Diário de Notícias".



"Sexta-feira do contra": reforma do sistema eleitoral

Nuno Garoupa dedicou a última das suas “Terças-feiras do contra” à proposta de reforma eleitoral da SEDES e APDQ. Agradeço a referência. Concordamos inteiramente no diagnóstico. Respondo a observações e reservas apresentadas.

A proposta, como Nuno Garoupa refere, reflecte o modelo alemão, muito inteligente e sábio: representação proporcional personalizada, articulando proporcionalidade da representação com escolha individual dos eleitores. Fiel à revisão constitucional de 1997, adapta-o à nossa geografia e experiência, num quadro de 229 deputados: 4 da emigração, como hoje; 210, em candidaturas uninominais e listas plurinominais, no território nacional; e 15 por um apuramento final em círculo nacional.

Primeiro, há que explicar os “11 círculos eleitorais” referidos por Nuno Garoupa. Seguimos a divisão em 18 distritos e 2 regiões autónomas, referente fundamental. Mas a proposta não quer circunscrições eleitorais com menos de 8 deputados. Assim, sempre que, ao repartir os deputados na proporção do eleitorado, uma circunscrição não atinja aquele mínimo, é agregada a circunscrição vizinha. Pelo recenseamento actual, as 20 circunscrições de partida correspondem a 11 circunscrições eleitorais.

Os deputados das circunscrições eleitorais são repartidos, em número igual, por tantos círculos uninominais quantos os candidatos em listas plurinominais: uma circunscrição de 8 deputados é subdividida em 4 círculos uninominais e ao conjunto concorrem listas com 4 candidatos; uma circunscrição de 42 deputados comportará 21 círculos uninominais e listas de 21 candidatos.

Este sistema é auto-elástico como na Alemanha, protegendo, de raiz, a proporcionalidade dos mandatos. O eleitor vota no deputado que quer e no partido que prefere. Livremente. Pode eleger o vencedor num círculo uninominal, mas a votação-guia para a composição proporcional do Parlamento é a votação nas listas plurinominais. Os eleitos uninominais entram dentro da quota proporcional do seu partido na circunscrição territorial, sendo os primeiros a ser providos nos lugares conquistados, antes da lista partidária. O sistema – recordo – é de representação proporcional personalizada, não é de representação uninominal.

Mas há o problema dos supranumerários, como Nuno Garoupa chama a atenção. Pode acontecer que candidatos uninominais obtenham valor de eleição acima da quota territorial obtida pelo seu partido: por exemplo, um partido, com percentagem para eleger 2 deputados, venceu em 3 círculos uninominais; neste caso, não elege nenhum da lista, mas elege os 3 individuais, resultando um “supranumerário”. Este problema foi residual na Alemanha até 1990: nunca houve überhangmandaten que chegassem a 1% do Bundestag. Mas, desde 2005, o problema foi-se deteriorando, chegando ao extremo actual: em 2017, foram eleitos 111 deputados a mais! Isto deveu-se quer ao cavar da distância entre os dois maiores partidos, quer a uma decisão do Tribunal Constitucional que ordenou, a partir de 2013, a atribuição de mandatos de compensação aos partidos afectados, o que duplicou as fontes de aumento dos eleitos.

Como é que resolvemos o problema? Com o círculo nacional. Fixamos o máximo de 8 “supranumerários” elegíveis, a descontar na quota deste círculo. Os restantes, num mínimo garantido de 7, são eleitos para acertar a relação proporcional entre as forças que alcançaram representação. Pergunta: então, pode haver vencedores uninominais que não obtenham eleição? Em casos extremos, pode. Se os supranumerários ultrapassarem o máximo de 8, os vencedores menos votados só serão eleitos se também estiverem na lista e com percentagem suficiente. O sistema – repito – é de representação proporcional personalizada, não é de representação uninominal.

Compreendo, enfim, o cepticismo quanto ao efeito da reforma no recrutamento de candidatos e no funcionamento dos partidos: “os ‘amigos’ do chefe e os carreiristas continuariam a dominar por completo o sistema” – diz Nuno Garoupa. Não é assim.

O impacto será enorme e imediato. Produz-se a partir das candidaturas uninominais e é imparável. Os partidos têm de escolher candidatos uninominais com o maior prestígio externo; e esse diálogo com a base eleitoral contagia de imediato a formação simultânea das listas plurinominais, no mesmo espaço e no mesmo tempo. Além disso, como acontece na Alemanha, a generalidade dos candidatos uninominais também integra a lista plurinominal – só um ganhará os despiques individuais, todos reforçam a hipótese de eleição pelo sufrágio proporcional.

O círculo nacional também não é o coche dourado para os “amigos” do chefe. Os eleitos (de 7 a 15) provirão das listas plurinominais territoriais. Na proporção que couber a cada força, serão repescados os não-eleitos mais votados, preferindo as circunscrições onde não tenha eleito ninguém, assim diminuindo os votos desperdiçados e reforçando o sentido de inclusão e de cidadania das eleições.

Esta a revolução coperniciana: ao mudar a base (metade de candidatos uninominais), muda tudo. O sistema deixa de ser geocêntrico (os directórios) para passar a heliocêntrico (a base eleitoral, a opinião pública). Teremos um Parlamento proporcional, com deputados directamente eleitos ou fortemente comandados pelos eleitores. Certamente um Parlamento melhor, deputados melhores e partidos melhores – é o três em um.

E é facílimo para o eleitor: dois votos no mesmo boletim, para escolher o seu deputado e o partido que prefere. Fácil e gratificante. O poder, na verdade, na ponta da caneta.


José RIBEIRO E CASTRO
Advogado e ex-líder do CDS
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"


NOTA: artigo publicado no "Diário de Notícias"

quarta-feira, 7 de março de 2018

Na grelha de partida para a reforma eleitoral?

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, saído hoje no jornal i.
Portugal estaria, sem dúvida, muito melhor em todos os planos se essa melhoria da representação parlamentar já tivesse sido feita. Melhores deputados, melhores partidos, melhor Assembleia. 


Na grelha de partida para a reforma eleitoral? 
Estão a passar 20 anos sobre o que poderia ter sido um processo legislativo de renascimento da democracia em Portugal. Em 1998, de 16 de Março a 23 de Abril, na Assembleia da República, os partidos e os deputados tiveram a bola nos pés para poderem melhorar significativamente a qualidade da democracia em Portugal. Tiveram-na nos pés… e chutaram-na para as bancadas. Os partidos mandaram, os deputados obedeceram, Portugal continuou adiado.

Naquele período, na esteira da revisão constitucional de 1997, a Assembleia da República apreciou três textos de reforma eleitoral: dois projectos do PSD e do PCP e uma proposta de lei do Governo PS. O PCP não trazia grande mudança, pois os comunistas nunca se afastaram do sistema actual. A proposta de lei do Governo, próxima do modelo alemão, reflectia um longo, amplo e aprofundado trabalho de preparação técnica, a partir de um anteprojecto, envolvendo, ao longo dos meses anteriores, debate político, contributos cívicos e estudos universitários. Os textos legislativos finais do PSD e do Governo PS conduziam-nos, em graus e modelos diferentes, para a representação proporcional personalizada: sem afectar a proporcionalidade das forças políticas na Assembleia, quase metade dos deputados eleitos seriam directamente escolhidos pelos eleitores. Uma mudança crucial! Hoje, Portugal estaria sem dúvida muito melhor em todos os planos, se essa melhoria da representação parlamentar já tivesse sido feita. Melhores deputados, melhores partidos, melhor Assembleia. Provavelmente, não teríamos sido empurrados até à beira da bancarrota, nem a troika teria sido chamada.

Esse processo merece ser revisitado. Pode ser que inspire. Tem momentos notáveis, como os textos legislativos propostos, alguns trechos dos pareceres, partes dos debates sobre estes pareceres. E tem momentos verdadeiramente deploráveis, com destaque para a espiral de crescente zaragata em que, após uma abertura com qualidade e elevação, o debate na generalidade se degradou numa funesta conversa de surdos, até tudo conseguirem matar em S. Bento naquela triste quinta-feira, 23 de Abril de 1998. O Governo apelara à viabilização de todos os textos, vindo, depois, a acertar-se as diferenças na especialidade. O PSD cedo se fincou na redução do número de deputados (184), intimando o PS a comprometer-se com este corte, sob pena de chumbar o texto governamental. Assim fez, vindo o PS a responder na mesma moeda: PS e PSD chumbaram-se um ao outro. O CDS disse que sim, mas fez que não: falhou a oportunidade de integrar uma maioria reformista e votou contra tudo. PCP sempre avisou estar noutra onda: votou apenas o seu projecto, chumbou os demais.

Vinte anos passados, mantemo-nos diante da mesma necessidade. O sistema regenerador a que os constituintes abriram a porta continua trancado por falta de efectiva vontade política dos legisladores. De eleição em eleição, a abstenção sobe, a qualidade da representação decai, o interesse da cidadania pelos partidos a afunda-se.

A proposta SEDES/APDQ, apresentada ao Presidente da República em 19 de Janeiro, já foi exposta nestas páginas: 105 deputados escolhidos directamente pelos próprios eleitores; Assembleia com um total de 229 lugares; sistema de representação rigorosamente proporcional dos cidadãos, do território e das correntes políticas, bem como, nos moldes actuais, da emigração. Agora, depende de ser endossada por 20.000 cidadãos que, a partir da sociedade civil, lancem para o Palácio de S. Bento uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos; ou de que um ou mais partidos a assumam e apresentem (ou a outra semelhante).

Como estamos, em matéria de grelha de partida?

O Partido Socialista seria, em teoria, o mais certo. O Programa Eleitoral de 2015 é muito claro. Sob o título “Reformar o sistema eleitoral e adotar mecanismos que ampliem e estimulem a participação democrática”, o PS reconhece que “está ciente da necessidade de aproximar os eleitores dos eleitos” e promete: “Reformar o sistema eleitoral para a Assembleia da República, introduzindo círculos uninominais, sem prejuízo da adoção de mecanismos que garantam a proporcionalidade da representação partidária, promovendo o reforço da personalização dos mandatos e da responsabilização dos eleitos, sem qualquer prejuízo do pluralismo.” Cá está!

Porém, tanto o PCP, como o BE não querem este tipo de reforma, pelo que os acordos políticos da geringonça comprometeram esta promessa eleitoral, congelando-a até 2019.

Com o PCP não pode contar-se, pois nunca gostou de sistema que inclua círculos uninominais. Podemos apenas esperar que conversas com o Die Linke, de que é parceiro no Parlamento Europeu, esbata o preconceito e ilumine o espírito. A experiência alemã mostra bem que o sistema não os prejudica, nem a ninguém. Foram até círculos uninominais que, em duas eleições, salvaram o PDS (antepassado do Die Linke) da degola pela cláusula-barreira dos 5%.

Do BE dir-se-á o mesmo, levando em conta as críticas que Francisco Louçã vai deixando contra o tema, embora parecendo que não estudou os específicos círculos uninominais deste sistema. O BE preza créditos de maior abertura e credenciais académicas. Sem dúvida que conversas com os parceiros do Die Linke e os próximos do Bündnis 90/Die Grünen poderiam abrir o espírito para a verdade rigorosa. O BE poderia ser relevante, se ajudasse a destrancar a geringonça.

O PSD tem responsabilidade decisiva. O PSD tem estragado repetidamente o tratamento desta questão desde 1997, ao pôr à cabeça das suas ideias a redução dos deputados para 180 ou cerca disso. Ora, não só isto não é adequado no quadro europeu comparado, como os partidos médios reagem logo defensivamente, pois percebem que uma reforma dessas tem como objectivo esmagar a sua representação, concentrando o peso parlamentar em dois partidos: PSD e PS. As resistências acumuladas por parte de CDS, PCP e BE têm esta fonte. Basta que o PSD congele essa pretensão ácida e se foque numa reforma qualitativa do sistema para a representação proporcional personalizada, que tudo mudará de figura. O estribilho “palavra dada é palavra honrada” deixará o PS em posição embaraçosa, se não quisesse acompanhar o movimento.

O CDS, infelizmente, não tem tido rasgos neste tema. O que é estranho, se lermos o Programa partidário, já de 1993: “É importante a consagração de um novo sistema eleitoral, de modo a individualizar cada vez mais a responsabilidade política, reforçar o controlo democrático dos eleitores sobre os eleitos e impedir a tendência da democracia de partidos para se tornar numa democracia de directórios.” A única outra coisa que se ouviu foi a ideia de Paulo Portas, disparada a Passos Coelho no Frente a frente da campanha eleitoral de 2011, defendendo um círculo nacional único de 115 deputados e eleição proporcional – ideia que não teve sequência, nem tem viabilidade, e concentraria ainda mais o Parlamento nos cortesãos escolhidos. Seria positivo se o CDS voltasse ao seu Programa e assumisse atitude distinta dos últimos anos, viabilizando uma reforma que também pode ser decisiva para si. O povo habitualmente premeia aqueles que se destacam nas reformas positivas e na concretização das ansiadas mudanças. 

José RIBEIRO E CASTRO
Advogado
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"


NOTA: artigo publicado no jornal i