quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

O massacre dos já massacrados

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Clemente Pedro Nunes, hoje saído no jornal i.
Num país onde morreram 120 pessoas por causa dos incêndios, o governo não institui penas mais severas para os incendiários – envia a sua polícia de atividades económicas para reprimir as microempresas e produtores das regiões massacradas!

O massacre dos já massacrados

Quando uma tragédia se abate sobre vastas regiões do país, como aconteceu a 17 de junho e a 15 de outubro do ano passado, o mínimo que se pode exigir a um regime democrático de qualidade é que se planifiquem, quanto antes, as políticas públicas que evitem a repetição das tragédias e, simultaneamente, se criem as condições para a melhoria de vida das populações afetadas.

Recordo que já o Presidente da República, no seu discurso a 17 de outubro do ano passado, logo após a segunda tragédia humana provocada pelos fogos florestais em menos de quatro meses, sublinhava que “as regiões afetadas foram das mais esquecidas pelo poder central” e que “os portugueses que viram as suas vidas destroçadas foram aqueles sem poder político ou eleitoral e que se encontram mais afastados dos gabinetes e das ruas onde se encontra o poder em Lisboa”.

Ora, uma democracia de qualidade tem de olhar para o interesse geral do país e criar as condições para que todos possam dar, através do seu esforço, o seu contributo para a prosperidade de Portugal .

Chegados ao final do mês de fevereiro, quando a primavera já se anuncia, depois de um Orçamento do Estado para 2018 que nada fez para recuperar a atividade económica destas populações martirizadas, a que assistimos, agora, em termos de medidas por parte do Estado para relançar a confiança das populações mais afetadas?

Cito três exemplos paradigmáticos:

- A direção da ASAE resolveu fazer um programa de inspeções reforçadas às regiões mais afetadas pelos incêndios do ano passado, complicando ainda mais, duma forma punitiva, a vida dessas populações, o que até foi objeto duma salutar declaração pública de repúdio pelo próprio sindicato dos funcionários da ASAE;

- Um incendiário florestal apanhado em flagrante delito no ano passado foi recentemente condenado, após provas irrefutáveis da prática do crime, a quatro anos de prisão com pena suspensa. Leu bem, caro leitor: “com pena suspensa”…

- Num folheto enviado há poucos dias aos proprietários florestais, exige-se “cortar as árvores 50 metros à volta de todas as casas e acrescenta-se que “este ano, as multas são a dobrar”.

Façamos uma reflexão estratégica do que estes exemplos revelam sobre o que se está a passar.

Num país onde há poucos meses morreram queimados 120 cidadãos, o governo nem sequer anunciou que ia legislar para instituir penas mais severas para os incendiários e para poder dar mais meios e prioridade à investigação deste tipo de crimes. Pelo contrário, envia a sua polícia de atividades económicas para as microempresas e os produtores familiares das regiões e das populações massacradas o ano passado, não para os apoiar, não para os promover, mas sim para os reprimir!

E, em relação à anunciada via repressiva da chamada “limpeza da floresta”, a incongruência é também total. É que a determinação do “corte das árvores a menos de 50 metros de todas as casas” é totalmente incompreensível. Desde logo, porque a medida não se pode obviamente aplicar a todo o território nacional. Basta pensar nas casas da serra de Sintra, dos concelhos de Oeiras e Cascais, do Bom Jesus em Braga, do Bairro de Caselas em Monsanto, e em tantas urbanizações e zonas de lazer espalhadas por todo o litoral português.

Então, esta intimação aplica-se apenas a quem? A “quem vive nas tais regiões mais esquecidas do poder central e se encontra longe dos gabinetes e das ruas onde se encontra o poder em Lisboa”, como referiu o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa no seu discurso de outubro do ano passado?

Mas ainda mais grave do que isso: num país onde não se tomaram medidas para escoar os milhões de toneladas de biomassa semiardida que continuam espalhadas por vastas zonas do Portugal interior, o que se vai fazer a estas novas quantidades de biomassa que o governo pretende agora que seja cortada sem ter antes criado qualquer tipo de incentivo ao seu necessário escoamento? Nem isentando de IVA a biomassa para queima, nem permitindo a dedução em IRS das despesas com o corte da biomassa, nem reduzindo o IRC das empresas destas regiões, nem criando circuitos logísticos e parques onde esta biomassa possa ser armazenada com um mínimo de segurança.

E não esqueçamos que a biomassa, depois de cortada, seca mais depressa do que se permanecer em ciclo vegetativo - o que aumenta exponencialmente o risco de incêndio já no próximo verão. E, como as queimadas são proibidas a partir de finais do mês de abril e, infelizmente, as centrais de biomassa são ainda muito poucas, todo este esforço dos pequenos proprietários, todas estas multas anunciadas, toda esta desorganização adicional do tecido produtivo destes 40 mil quilómetros quadrados de território servirão apenas para criar as condições para que tragédias ainda maiores possam vir a ocorrer.

Ou seja, será o massacre dos já massacrados pela calamidade dos fogos do ano passado. De facto, a democracia portuguesa está muito longe de ter a qualidade que devia.

Clemente PEDRO NUNES
Professor Catedrático do Instituto Superior Técnico
Subscritor do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade


NOTA: artigo publicado no jornal i.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

A última jornada

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, ontem saído no jornal i.
Não é sério ser candidato com uma linha e um programa e, depois, fazer diferente ou até o contrário. Não é legítimo fazer de conta que não há eleitores. 

A última jornada

Sobre qualidade da democracia, há que ver também o nível local. Se tudo estivesse bem, a esperança de regeneração seria forte. Infelizmente, o declínio já o contaminou. Há notícias frequentes disso, como Matosinhos no PS, ou Lisboa recentemente no PSD. No CDS, também. Um caso em Sintra foi feito saltar há dias para a imprensa num enredo disciplinar.

Muitas vezes a quebra do segredo de justiça não serve o interesse da acusação, mas o suspeito: tem interesse na quebra, para vitimização, ou perturbação do processo, ou outros efeitos que o favoreçam. A Operação Marquês é a maior montra de violações para todos os gostos: ao gosto da acusação, ao gosto do acusado, ou apenas ao gosto da imprensa. No caso de Sintra, as notícias publicadas e o “timing” são do interesse dos visados. Não conheço o processo, não sei o seu estado, mas conheço os factos.

Em 2013, houve grave erro em Sintra no espaço do centro-direita. O correcto era apoiar Marco Almeida, bom número dois durante 12 anos e candidato natural a número um. Manifestei-o, então, fundado na experiência que tive, ao liderar com Fernando Seara a coligação com que ganhámos Sintra ao PS em 2001. Fiz o que pude para evitar a fractura em 2013. Infelizmente, o PSD teimou e o CDS foi atrás. O resultado foi pior do que receara: PSD/CDS caíram de 45,3% (em 2009) para 13,8% (em 2013). O PS ganhou por pouco sobre Marco Almeida. A este pecado original somou-se outro, a seguir: em vez de PSD e CDS se concertarem na oposição, concertaram-se com o PS, que queria isolar o movimento de Marco Almeida.

Chegados a 2017, o plenário de Sintra apoiou a proposta da concelhia de o CDS ir sozinho a votos. Esta não era a posição das direcções distrital e nacional. Como grande concelho, Sintra faz parte dos municípios em que, ouvidos os órgãos locais, a decisão é nacional – creio ser assim em todos os partidos. A direcção nacional, com apoio distrital, levou a sua avante: o CDS integraria ampla coligação com o PSD e o movimento de Marco Almeida, além de PPM e MPT, reagrupando o que se fracturara em 2013.

Aí, entro na história. A pedido da presidente do partido, ponderados vários ângulos e conjecturas, fica a hipótese de poder ser cabeça-de-lista à Assembleia Municipal, como em 2001. Não vi como recusar: a candidatura tinha o único quadro adequado, embora o desafio fosse difícil; e não podia virar a cara a um pedido feito para servir Sintra, os sintrenses e o partido, na linha da avaliação que eu sempre defendera. Assim se concretizou, depois de ampliar consensos.

Dir-se-á: mal foi a direcção nacional e a distrital não seguirem a posição dos dirigentes concelhios, apoiada pelo plenário. É opinião defensável. Para isso, os militantes, convictos, insistiriam tenazmente. E os dois líderes concelhios, também dirigentes nacionais, ter-se-iam batido, assertivamente, nos órgãos de decisão política, pela posição do CDS sozinho, explicando-a e tentando obter vencimento. Poderia ter acontecido. Mas nada disso se passou. Na Comissão Política e no Conselho Nacional, nenhum dos dois objectou à linha seguida. Em 2013, eu, sem ligação directa, manifestara no Conselho Nacional a crítica ao erro cometido e votei contra.

Os factos evoluíram como se a coligação estivesse assimilada, ainda que com alguma contrariedade. O líder distrital e eu próprio empenhámo-nos genuinamente em reuniões contínuas, praticamente semanais, com militantes e estruturas, para sanar diferendos que tivessem sobrado e construir a candidatura em concertação aberta. A presidente do partido deu explicações em debate franco com os militantes. Não houve intimidação, nem coacção – pelo contrário. Realizaram-se várias reuniões gerais; todas as candidaturas às freguesias integraram os indicados pelos núcleos; as listas para câmara e assembleia foram concertadas.

A coligação era a melhor escolha. No caso do CDS, a querela era estranha, porque todos os militantes diziam que, em 2013, quiseram apoiar Marco Almeida e tinha sido a direcção nacional a impedi-lo. Era difícil entender por que é que, em 2017, querendo a direcção apoiar Marco Almeida e corrigir o erro, era a nível local que alguns, afinal, não queriam.

O trabalho intenso feito no CDS, com franqueza e boa fé, gerou expectativas tranquilas. Não era assim pelo lado do PSD, onde as desavenças de 2013 seguiam expostas e a formação das listas foi dura; mas, pelo CDS, havia a esperança de todos estarem empenhados em conquistar bons resultados. Nada disso! Chegada a campanha, houve faltas, incluindo de alguns candidatos; e, facto inédito, um grupo engendrou um instrumento contra a coligação, intitulado de DCS: alvejou especialmente Assunção Cristas, Marco Almeida e eu próprio, apoiando o “democrata-cristão” Basílio Horta, candidato do PS. Eram mensagens, ora no Facebook, ora enviadas pessoalmente por e-mail para militantes e eleitores, em vários dias. O último desta campanha original foi sábado, véspera das eleições, período de reflexão, em violação da lei eleitoral.

Os resultados não foram os desejados, mas foram bons, atentas as circunstâncias e o histórico. Na perspectiva do movimento de Marco Almeida, subiu de 25% para 29%, não conseguindo todos os 13% de PSD/CDS. Na perspectiva PSD/CDS, subiram de 13% para 29%, não conseguindo todos os 25% de Marco Almeida. A colagem sempre teria problemas; e a verdade anda aqui pelo meio. Feitas as contas, o CDS elegeu 19 autarcas, onde tinha 11; e, na Assembleia Municipal, minha directa responsabilidade, o CDS passou de 1 para 5. Creio que o CDS nunca teve 5 membros na Assembleia Municipal, mesmo nos melhores tempos.

Quando digo 19 autarcas, já falto à verdade: caíram logo para 18. Em Queluz/Belas, o CDS elegeu duas autarcas. Mas, sob impulso do responsável local e das eleitas, foi feito um acordo secreto com PS e BE: o CDS apoia a Junta PS/BE; uma das eleitas CDS separou-se da lista e tomou posse sozinha; e outra desfiliou-se, para tomar posse como “independente” e ser eleita Presidente da Assembleia com apoio PS/BE. No dia em que, após os fogos de 15 de Outubro, o CDS apresentava na Assembleia da República a moção de censura contra o Governo e a geringonça, celebrou-se em Queluz/Belas a fundação da geringonça saloia: PS/BE/CDS.

Estive num último plenário concelhio de balanço. Foi muito vivo. O único militante que dera a cara pelos DCS ainda foi saudado pela coragem, enquanto outros se escondem. Mas a coragem solitária faleceu de morte súbita poucos dias após as eleições concelhias, onde ainda abraçou festivamente os companheiros: desfiliou-se do CDS que tanto dizia defender. Felizmente não era candidato, senão ter-se-ia perdido mais um eleito.

Não é sério ser candidato com uma linha e um programa e, depois, fazer diferente ou até o contrário. Não é legítimo fazer de conta que não há eleitores. O problema da política é ser vista como um circo: os actores actuam para receber do público reacções de claque e perdem a noção de assumirem um mandato. Parece acharem-se donos dos lugares. Não é assim: são representantes. A democracia não é tanto para militantes; é para os eleitores. O maior crédito dos militantes é serem os intérpretes mais próximos dos eleitores, não de interesses próprios.

A fadiga dos portugueses com a decadência manifesta-se na abstenção. Nas eleições locais, é muito alta. Em Sintra, um desastre: em 2013, chegara a 60%! Agora, em 2017, foi de 58%. No meu mandato anterior em Sintra, em 2001/05, começámos com uma abstenção de 51% e acabámos com uma abstenção de 49%. As coisas pioraram agora. Não é por causa destas coisas no CDS, que levaram a afastar-me por falta de condições. É por todas elas. Há muitas no PSD e no PS. Como é que sei? Porque eleitores me contam. E é muito natural que, nos que sabem, muitos não queiram votar. Como é que se sente um eleitor de Queluz/Belas, votante na coligação “Juntos pelos Sintrenses” (PSD/CDS/MPT/PPM), ao saber da geringonça saloia do CDS com PS e Bloco de Esquerda? E é só um exemplo suave.

José RIBEIRO E CASTRO
Advogado
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"


NOTA: artigo publicado no jornal i
 

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

A mensagem presidencial da reinvenção

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Henrique Neto, saído hoje no jornal i.
A melhor contribuição de Marcelo para o progresso será usar a sua imensa popularidade para definir uma estratégia e dar um novo sentido de direção ao país.


A mensagem presidencial da reinvenção
Já passou algum tempo desde a mensagem de fim de ano de Marcelo Rebelo de Sousa, mas, dada a sua importância estratégica, volto ao tema para afirmar que foi bastante adequada às circunstâncias e revelou a inteligência e a finura políticas do Presidente, que alterna entre a cultura florentina e o espírito do homem do povo. Por outro lado, é um facto que a sua intervenção pública durante todo o ano passado foi muito relevante no sentido de pacificar a sociedade portuguesa e de prevenir – por vezes, evitar – que os sucessivos erros do governo e as intervenções contraditórias de António Costa colocassem em causa a estabilidade da governação.

Foi porventura o lado florentino do Presidente que inventou a palavra “reinvenção”, repetida várias vezes durante o discurso, palavra que o Presidente deixou à interpretação dos muitos comentadores que os meios de comunicação chamaram para o efeito. O resultado, claro está, foi o de durante algum tempo não se ter falado de outra coisa mas, infelizmente, sem acrescentar muito para a compreensão da mensagem. Não admira, pois o pensamento crítico não é o forte da atividade política que existe entre nós.

É neste contexto que me pergunto se o estilo e o conteúdo das mensagens do Presidente da República nestes dois anos que leva de magistério são, ou não, os mais úteis no presente contexto de bloqueio de reformas em que vivemos e os mais eficazes para o progresso da nação. E reconhecendo que o Presidente tem sido de grande utilidade na criação do tal clima de apaziguamento e de normalidade na sociedade portuguesa, não duvido de que Marcelo Rebelo de Sousa corre o risco de contribuir, de alguma forma, para o adormecimento dos portugueses, retirando-lhes a necessária capacidade de se reinventarem na procura de novas soluções democráticas, ou seja, a negação da ideia virtuosa da reinvenção. Recordo aqui que os grandes de Portugal não o foram pelo apaziguamento, mas pela criação de novos mundos.

Acredito, por isso, que a melhor contribuição de Marcelo Rebelo de Sousa para o progresso nacional será, nas atuais circunstâncias, usar a sua imensa popularidade para definir uma estratégia e dar um novo sentido de direção ao país. Mais democracia, transparência e reforço das instituições da sociedade, ou o esmagamento da sociedade pelo Estado? Portugal meramente europeu e periférico, ou Portugal euro-atlântico no centro do Ocidente? Economia de mercado, de exportação e de atração do investimento estrangeiro, ou a atual mescla conservadora de tudo um pouco, sem nada fazer de relevante e sem as reformas corajosas de que o país precisa?

Acresce que não basta falar de reinvenção, sabendo-se que o modelo político que nos governa é dominado pelas oligarquias partidárias e que o Estado foi colocado ao serviço dessas oligarquias. Com a nota de que a geringonça introduziu, por si só, um novo modelo de autocontentamento conservador e pouco dado a reinvenções. Até aqui, apenas inventou desgraças, mortes, ausência de transparência governativa e escândalos vários. Isto, claro está, se pensarmos, como eu penso, que a melhoria da situação económica não resultou de qualquer ação do governo, para além de aproveitar o bom momento económico para a redução do défice. Recordo que as empresas exportadoras têm um quinhão elevado no atual sucesso económico, tendo-se sobreposto à prioridade inicial do governo de optar pelo mercado interno.

Seja como for, e apesar de apoiar o papel positivo da ação do Presidente da República durante estes dois anos, considero essencial que até ao fim da legislatura exerça a sua influência no sentido de dotar Portugal de uma estratégia nacional orientadora da economia, do investimento e do valor essencial que a logística de exportação representa no objetivo central de um Portugal moderno, por exemplo direcionando os investimentos públicos para esse objetivo. Se o fizer, terá um lugar seguro na história deste século, como o iniciador de uma nova fase de progresso nacional no contexto da globalização.

É esta a reinvenção necessária no atual momento da vida nacional, com a dúvida metódica que mantenho: se o progresso do país e a solução dos nossos problemas políticos, económicos, financeiros e sociais são possíveis no contexto de uma democracia capturada pelas oligarquias partidárias. Mas essa é uma outra história em que o Presidente da República terá de pensar.

Henrique NETO
Empresário
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade


NOTA: artigo publicado no jornal i.


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Esquerda, direita e em frente… A agonia do Capitalismo tal como o conhecemos

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, saído hoje no jornal i

Os próximos anos vão ser os anos do combate à desigualdade, não tenham dúvidas. Enquanto o mundo cresce de forma desigual e caótica, o Ocidente vai dilacerar-se à volta das questões da igualdade social, económica, racial, de género. Tenho poucas dúvidas de que quem vai pagar a conta desse combate contra «quem mais acumula» é mais uma vez, e como sempre, a cada vez mais restrita classe média.

Thomas Piketty e o seu "O Capital no Século XXI"
Esquerda, direita e em frente… A agonia do capitalismo tal como o conhecemos

Há dias uma jovem mestranda de ciência política discutia comigo as diferenças entre esquerda e direita que não entendia bem quais pudessem ser nos dias que correm.

Quem cresceu politicamente nos anos setenta, o apogeu do mundo soviético, em que o Ocidente parecia estar sob ameaça imediata e grave e o mundo à nossa volta parecia cair como peças de um dominó, não terá dificuldade em se lembrar e em entender a imensa diferença que fez a eleição de Margaret Thatcher no Reino Unido e de Ronald Reagan nos Estados Unidos.

Descobrimos que a alternativa ao comunismo e ao socialismo triunfantes não eram os regimes autoritários de direita, mas bem pelo contrário os regimes liberais e democráticos em que ansiávamos viver. Foi isso que descobrimos avidamente em Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, entre tantos outros.

Numa época de preços tabelados, controlo de câmbios e circulação de capitais restrita e sujeita a autorização prévia, de domínio da economia por grandes empresas públicas monopolistas, os anglo-saxónicos mostraram-nos o caminho da desregulamentação, da privatização dos monopólios públicos, da sensatez do alívio fiscal a particulares e empresas.

Numa década, entre 80 e 90, caíram os dogmas da economia dominada pelo Estado e caiu o muro de Berlim, ou seja, desagregou-se o império soviético. Com a banalização dos computadores, a criação da internet, descobrimos a globalização, a circulação irrestrita de capitais, mas também descobrimos que a globalização era uma estrada de dois sentidos que abria o mundo a todos e não só ao Ocidente.

A globalização foi o milagre económico da China que, com crescimentos piramidais de 10% ou mais ao ano, duplicava o PIB todos os sete anos… A globalização foi o milagre que tirou da miséria mais sórdida biliões de seres humanos, que transformou em países emergentes regiões do globo que estavam enterradas na mais profunda miséria e atraso económico e social.

Quando essa década fabulosa terminou, o mundo era outro de todos os pontos de vista, económico, cultural, tecnológico, com avanços totalmente inesperados e extraordinários em matéria de comunicações, acesso ao conhecimento e informação, facilidade de circulação por esse vasto mundo. Foi esse mundo que herdaram os filhos da minha geração, os chamados millenials, que nasceram no século passado e cresceram neste.

A primeira década deste século foi também a do euro, da subida em potência da China e do recuo da hegemonia americana, por um lado e, por outro, do capitalismo global, financeiro e desenfreado, cheio de “animal spirits”.  
Cada novo equilíbrio suscita novos desequilíbrios: depois da explosão da crise de 2008, uma capa da revista “The Economist” dizia tudo ao mostrar um leão ferido de morte sob o título “A agonia do capitalismo”.

Num curto espaço de tempo, passámos do triunfo dos neo-conservadores que proclamavam o fim da História num equilíbrio definitivo do capitalismo global, para a dúvida instilada por Stiglitz com o seu célebre “Globalization and its discontents”, em que o sistema ocidental a que a esquerda chama o “consenso de Washington”, que repousa na livre circulação de capitais, na protecção da propriedade privada, no Estado de direito, na legítima actuação de actores privados no palco internacional, na economia de mercado em suma, começou a ser posto em causa.

Durante anos, ouvimos a esquerda ocidental duvidar e condenar as reformas neo-liberais dos anos 80 e 90 do século passado, mas a aceitar que a globalização podia ser uma coisa boa. Com a crise de 2008, esse estado de espírito desapareceu: a linha divisória passou a ser entre os que procuraram controlar a despesa pública (os “austeritários” no dizer da esquerda) e repor as condições básicas de equilíbrio de funcionamento do mercado (os horríveis neo-liberais), e os que se definiam por ser “anti-austeridade” e fortemente redistributivos.

Na síntese brilhante de Miguel Angel Belloso, a diferença passou a ser entre os que que queriam redistribuir para crescer e os que queriam produzir e crescer para poder redistribuir. Essa batalha está em curso.

Neste meio-termo, dois novos ingredientes vieram complicar a discussão: por um lado, os apóstolos do regresso ao proteccionismo, dos “nós primeiro”, os populistas que apelam aos mais baixos sentimentos da população, aos egoísmos nacionais; por outro lado, uma já vasta literatura com Stiglitz, Krugman, Mark Blithe, James Galbraith, entre muitos outros, abriu caminho ao novo apóstolo do século XXI: Thomas Piketty, o autor do seminal “O Capital no Século XXI”.  
A tese de Piketty é simples: sem restrições, o sistema capitalista tende a concentrar nas mãos de um número cada vez menor de uma elite global um volume cada vez maior de dinheiro e de privilégios. A solução? Restringir essa acumulação progressiva, eliminar os privilégios de classe e casta. Uma causa seguramente popular, para não dizer populista. 
A desigualdade entrou no léxico político em força. Democracia é igualdade, logo desigualdade é… fascismo! Este é o novo silogismo político da esquerda.

Os próximos anos vão ser os anos do combate à desigualdade, não tenham dúvidas. Enquanto o mundo cresce de forma desigual e caótica, sem liderança e sentido, o Ocidente vai dilacerar-se à volta das questões da igualdade social, económica, racial, de género e do que vier.

Tenho poucas dúvidas de que quem vai pagar a conta desse combate contra “quem mais acumula” é mais uma vez, e como sempre, a cada vez mais restrita classe média. Também não tenho dúvidas de que a nível global é mais fácil destruir o esforço de décadas do que construir alguma coisa de novo.

É nestas confluências que vai decorrer o combate político dos próximos anos. O que pensam destas questões os nossos líderes políticos? Sem opções claras, não há escolhas claras.

João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA: artigo publicado no jornal i.


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

O renascimento da democracia em Portugal

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, hoje saído no jornal i.

O eleitor português passará a ter duas escolhas no boletim: numa, o deputado que quer no círculo uninominal; noutra, o partido que prefere nas listas plurinominais da circunscrição.


O duplo voto na Alemanha.
Na coluna à esquerda,
o eleitor escolhe o deputado;
à direita, o partido.

O renascimento da democracia em Portugal

A reforma eleitoral apresentada ao Presidente da República no início do ano, na proposta da Associação Por uma Democracia de Qualidade (APDQ) e da SEDES, é uma grande ideia cívica: é a proposta capaz de fazer renascer a democracia em Portugal.

Se aplicada às eleições legislativas de Outubro de 2019, a abstenção cairia, de imediato, dos actuais 45% para menos de 30%. Mais 1 milhão e meio de cidadãos iriam votar. Não tenho a mais pequena dúvida. A novidade, a proximidade dos eleitos e a liberdade de escolha iriam consegui-lo já: de novo muito forte participação eleitoral. Voltaríamos a ter a democracia a mobilizar a cidadania.

O segredo desta mudança tão significativa não é segredo nenhum. Está escrito na Constituição desde 1997: «círculos plurinominais e uninominais», em «complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional», comportando ainda um «círculo nacional» – este é o figurino desenhado e aberto pelo artigo 149º. A inovadora proposta SEDES/APDQ é isso que faz: cumprir a Constituição, de forma precisa, ousada e justa.

É uma evolução suave do quadro actual: o sistema mantém-se proporcional e até de forma mais justa do que actualmente; e continua estruturado a partir dos distritos e regiões autónomas, como circunscrições territoriais de referência. Mas opera uma mudança profunda da ordem política, ao transferir para o eleitorado a decisão quanto aos deputados: são os eleitores que elegem directamente metade dos deputados; e a outra metade é também escolhida sob influência da opinião pública e da cidadania, numa cultura cidadã renascida na formação das listas. Ponto final no poder absoluto dos directórios e arbitrariedade dos chefes.

Este sistema – representação proporcional personalizada – é de democraticidade impecável. Absolutamente exemplar. Perto de nós, funciona na Alemanha, onde tem prestado excelentes provas desde 1949, sob todos os critérios: representatividade, pluralismo, estabilidade governativa, solidez das instituições, plasticidade do sistema partidário, diálogo político, concertação de regime, poder de escolha dos eleitores, multipolaridade territorial. Entre as explicações para o sucesso da Alemanha no pós-guerra, o sistema eleitoral é uma delas.

Nós podemos ter igual. E a Constituição abriu-nos essa alameda há 20 anos. O eleitor português passará a ter duas escolhas no boletim: num, o deputado que quer no círculo uninominal; noutro, o partido que prefere nas listas plurinominais da circunscrição. No final, contados os votos, sai uma Assembleia da República rigorosamente proporcional (conforme as percentagens de votos nos partidos) e com deputados escolhidos pelos eleitores: metade directamente, porque neles votaram; metade indirectamente, porque influenciaram a feitura das listas. Parece magia. Mas não é. É apenas inteligência. E experiência.

Quem não quer que mudemos para um sistema assim tão bom?

Infelizmente, há vozes de resistência e desinformação, que falam dos círculos uninominais como do diabo. Só pode dever-se a malandrice e preconceito, ou a desconhecimento e pouco estudo. Os círculos uninominais num sistema como o alemão não têm nada a ver com o sistema inglês ou o francês, que são sistemas maioritários. Aquele é um sistema proporcional, em que a votação uninominal em parte dos deputados é essencial para a personalização, mas em nada distorce a proporcionalidade.

Há dias, num artigo no “Público”, Francisco Louçã escrevia: «O PS, para concluir os acordos com o Bloco e o PCP, retirou do programa de governo as suas propostas de alteração da lei eleitoral (os círculos uninominais, destinados a fazer o PS e o PSD ganharem na secretaria) …» (“As razões europeias do Dr. Rangel”, 20.1.2018). Louçã não tem razão nesta crítica.

Os círculos uninominais que o PS já defendeu, e oxalá volte a defender, não se destinam a vitórias na secretaria. Não têm essa aptidão. Antes pelo contrário. Francisco Louçã, com honestidade intelectual e o seu crédito académico, tem que examinar bem o sistema alemão. O Bundestag é mais proporcional que a nossa Assembleia: isto é, as bancadas são mais próximas das votações efectivas nos partidos. Basta ver a comparação das últimas três eleições.


A prova não pode ser mais evidente. Partido a partido, a representação parlamentar na Alemanha é muito mais próxima das votações nas listas do que em Portugal. Até em 2013, em que a cláusula-barreira atingiu partidos significativos, como FDP e AfD (na Alemanha, é preciso 5% a nível nacional para ter direito a representação), os lugares de deputados repartiram-se, ainda assim, de modo mais proporcional do que no nosso país.

É facto que os partidos com maior votação elegem mais candidatos uninominais, como é natural; mas isso não altera a proporcionalidade, que tem de ser respeitada e servida. A eleição uninominal é, em substância, a forma de os eleitores concretizarem a escolha dos deputados que preferem, dentro da quota do respectivo partido; e é o modo de garantir proximidade e representatividade territorial do Parlamento. É um sistema sábio.

Por exemplo, na última eleição, em 2017, a CDU de Angela Merkel elegeu 185 uninominais e a CSU conquistou todos os uninominais na Baviera; mas, por causa disso, a CDU só elegeu mais 15 das listas plurinominais e a CSU não elegeu nenhum. Conclusão: a CDU/CSU, que somou 33,0% na votação partidária, elegeu 34,7% dos lugares no Bundestag – com o nosso sistema actual, alcançaria certamente 40% dos deputados. Em contrapartida, como os quadros mostram, os partidos mais pequenos, como Verdes e a Esquerda (Die Linke), nunca são prejudicados na eleição de deputados, diversamente do nosso sistema. Na eleição de 2017, os Verdes e a Esquerda conseguiram eleger, respectivamente, 1 e 5 uninominais, mas foram buscar às listas mais 66 e 64 mandatos para completarem a representação. O sistema é autoelástico.

No apelo geral de reinvenção por que o Presidente da República abriu o Ano Novo, este é um exemplo de reinvenção, um eixo estratégico de reinvenção. O Presidente convocou-nos: «O ano que hoje começa tem de ser o ano dessa reinvenção.» E precisou o espírito: «Reinvenção da confiança dos portugueses. Reinvenção com verdade, humildade, imaginação e consistência.»

É disto que se trata na reforma eleitoral: verdade e humildade, a reconhecer erros em que estamos atolados; imaginação e consistência na construção da resposta democrática, capaz de fazer renascer a confiança dos portugueses. Quem não quer um Parlamento melhor? Quem não quer uma democracia de qualidade?

José RIBEIRO E CASTRO
Advogado
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"

NOTA: artigo publicado no jornal i