segunda-feira, 31 de maio de 2021

O último dos irmãos


Lançado há poucos anos, o Dia dos Irmãos começa a ser uma celebração social incontornável. É aí que as coisas realmente nascem: nos hábitos das pessoas e das famílias, nos costumes sociais; não nas proclamações políticas ou deliberações parlamentares. O Dia do Pai ou o Dia da Mãe, por exemplo, não têm rasto no Diário da República, nem, antes dele, no Diário do Governo. Existem, porque a sociedade se apoderou deles. Começando num só país ou comunicando-se cedo no plano internacional, são festas da sociedade civil, como dizemos.

A prova do sucesso desta ideia encontra-se no “Borda d’Água”, que, desde há uns anos, mostra, a cada 31 de Maio, o lugar certo do Dia dos Irmãos. Não é em nenhum Diário da República, mas no “Borda d’Água”, o jornal oficial dos usos e costumes populares, entre muitas outras informações úteis.

A iniciativa do Dia dos Irmãos foi afirmada e lançada, em 2014, a nível europeu, pela Confederação Europeia das Famílias Numerosas (ELFAC); e a APFN portuguesa (Associação Portuguesa das Famílias Numerosa) tem sido uma das principais dinamizadoras. Compreende-se: as famílias numerosas são aquelas que mais irmãos têm e, por conseguinte, são muito sensíveis à sua existência e à sua dinâmica.

Mas não é preciso ser família numerosa para se viver intensamente a realidade dos irmãos e irmãs. Nem eu (que muito defendo esta ideia), nem o meu irmão (fundador da APFN e da ELFAC) somos de famílias numerosas. Éramos apenas nós os dois. E tanto o nosso pai, como a nossa mãe tinham apenas um irmão também. O nosso quadro familiar mais próximo foi de dois irmãos apenas.

Tenho observado – e já tenho escrito – que tipicamente, além de outros factores, a experiência específica dos irmãos decorre muito do número de irmãos; de serem todos do mesmo sexo ou de sexos diferentes; do número dos de cada sexo; das diferenças de idades entre eles. As relações são sempre fortes e, com o avançar da idade, caminham para a proximidade crescente entre todos. Mas, em criança e jovem, a experiência e a dinâmica tendem a ser bastante diferentes, consoante aqueles factores. Além disso, as personalidades e os temperamentos não são iguais, o que também determina muita da vivência em que nos definimos e crescemos.

Odemira, Setembro 1955: eu e o meu irmão Fernando,
com os nossos pais, no terraço de todos os acontecimentos.

No caso do meu irmão Fernando, éramos dois rapazes, com um ano e meio de diferença – ele mais velho do que eu. Isso fez-nos muito próximos: realmente com fortíssima cumplicidade, como não existiria se fôssemos rapaz e rapariga ou tivéssemos uma grande diferença de idades. Dormimos sempre no mesmo quarto, desde que saí do berço; brincámos e estudámos aí; fizemos construções e invenções, juntos; bulhámos e fizemos as pazes; andámos nas mesmas escolas e liceus; estudámos os mesmos livros escolares; fizemos os mesmos exercícios; ajudámo-nos a resolver problemas; fomos confidentes um do outro e guardámos segredos um do outro; rezámos nas mesmas igrejas; lemos muitos dos mesmos livros e escritores; rimos e jogámos imenso; fizemos corridas de bicicleta; iniciámo-nos em conjunto na fotografia e no cinema amador; eu sei lá... De tal forma que, tendo morrido já há sete anos, ainda não sei bem se sinto imenso a sua falta (e sinto-a) ou se ele ainda está guardado nalgum bocado de mim, de onde nunca partiu, nem parte. Somos unha com carne.

Lisboa, Junho 1951: o meu pai, Fernando,
e o tio Gilberto, no dia do casamento dos meus pais.

Já o meu pai e o meu tio Gilberto faziam seis anos de diferença. Eram muito amigos, mas havia como que uma relação paternal do meu pai para com o meu tio. É natural: quando o meu tio Gilberto fez um ano, já o irmão Fernando tinha sete; quando um fez três, o outro estava nos dez; quando o meu pai fez 16, ainda o irmão tinha nove – um miúdo. Isto sou eu a imaginar. Nada vi dessa infância e adolescência muito felizes, passadas em Angola, nos anos ’20 e ‘30. Apenas o imagino a partir das histórias que ouvi contar ao meu pai, aos meus avós, ao meu tio. Mesmo nas brincadeiras mais estapafúrdias, há quase sempre, ali, um lado de mentor (o meu pai) e outro de aprendiz ou ajudante (o meu tio, seis anos mais novo). Talvez daí, aquilo que me pareceu ver sempre neles até ao fim: uma grande admiração do meu tio pelo meu pai; e do lado do meu pai, uma forte admiração também pelo meu tio (enérgico e corajoso militar), acompanhado de grande desvelo e carinho. Havia ali, marcadamente, um irmão mais velho; e havia também um irmão bem mais novo.

Lisboa, 1950: a minha mãe Maria Helena e o tio Zé.

Com a minha mãe Maria Helena e o meu tio Zé, a diferença era outra. Tinham idades próximas: um pouco mais de dois anos entre uma e outro. Mas eram rapariga e rapaz, com interesses muito distintos, educações diferentes e cada um com seus amigos. Nessa altura, anos ’20 e ’30, isso era bastante mais acentuado do que hoje ou nos meus anos ‘60. A minha mãe, a mais velha, creio que só teve amigas e sobretudo dentro da família: primas. O meu tio teve um caminho próximo dos nossos dias: cursou o liceu e foi, solto e livre, para a Universidade de Coimbra, onde se fez médico. Tinham amizade muito forte, mas não propriamente cumplicidade. Apesar da diferença de idades ser menor, parecia-me ver na minha mãe o mesmo desvelo e carinho pelo meu tio Zé, como no meu pai pelo irmão. Na minha mãe, um olhar maternal. E o meu tio olhava a minha mãe com uma admiração que, por vezes, parecia quase cerimoniosa, diante da sua serenidade, prudência e dedicação familiar. A minha mãe acabou por desenvolver doença grave, que perturbou muito a sua vida. O meu tio Zé, que gostava muito da minha mãe e era médico, parecia-me algo quebrado, depois das crises da irmã. Ele sabia. Sabia que ia vir mais a seguir. Entre as coisas mais difíceis com que lidamos na vida está, já se sabe, a nossa própria impotência. Também era assim connosco. Quantas vezes me senti vergado pela incompreensão de onde vinha aquele mal e a impotência de pôr boa a minha mãe.

Destes irmãos que me moldaram e são minha referência, foi, agora, em 13 de Maio, a altura de partir o meu Tio Zé, com 93 anos. Já tinha ido a minha mãe, depois o meu pai, mais tarde o meu tio Gilberto, há alguns anos o meu irmão, agora o meu tio médico. Do meu núcleo familiar mais directo, eis como fiquei o último dos irmãos. Cheguei à linha da frente.

Foram dias que, com a minha tia Isabel (santa e querida mulher) e os meus três primos, filhos de ambos, me fizeram rebobinar no espírito e na memória tantos momentos e marcas de vida. As cinzas do meu tio foram para o jazigo familiar em Odemira, onde estão também a minha mãe e os meus avós. Estivemos depois um pouco (a Conchita e eu, a minha tia e os meus primos) a conversar no terraço da casa que foi da minha avó e ficou para mim.

Em criança, íamos sempre a Odemira, uma semana por ano, no Verão. O meu tio era médico ali perto, em Garvão, onde os meus primos cresceram e entraram na escola primária. Nessa nossa semana alentejana, a família juntava-se toda uma ou duas vezes, naquela casa, naquele terraço, nesses verões. Tenho muitas memórias de brincadeiras e de joelhos esfolados no chão do terraço, então em cimento. Muitas bolas voaram para a Praça Sousa Prado, cá em baixo, ou para um terreno baldio, cavado, profundo, de um dos lados.

Garvão, 1956: nós e dois dos meus primos.
Da frente para trás: Zé, eu, Jaime e Fernando.

Nesse mesmo terraço, os meus primos, sabichões da vida do campo, deslumbraram-me com um mistério: as galinhas correm com a cabeça decepada. Num dia, em que a iríamos comer ao jantar, os meus primos convenceram a empregada a, depois de cortar a cabeça junto a um dos esgotos do terraço, a porem outra vez no chão. Disseram-me: "Queres ver, Zé Duarte? Queres ver?" E eu vi: a galinha lá foi, lesta pelo terraço abaixo, como se quisesse ir de volta para a capoeira, que ficava ao fundo. Se não tivesse visto, não acreditava. Eu teria oito anos e fiquei admirado como poucas vezes. Noutra ocasião, salvámos um gatinho que caíra ou se perdera naquele baldio profundo ao lado do terraço. Miava de solidão e desnorte. Montou-se uma operação familiar de socorro, manejada pelo tio Zé. A minha avó forneceu um pequeno cesto da arrecadação, que se atou a uma corda resistente e comprida. Todos debruçados na amurada do terraço, os cinco primos a fazer claque e os adultos a darem orientações e palpites, o meu tio manejou o cesto com mestria, o bichano acabou por entrar no elevador improvisado e lá subiu dentro do cesto, feito colo mecânico, até à salvação. Foi um triunfo formidável. Inesquecível.

O Duarte, meu primo mais novo,
ao colo do pai, o meu tio Zé.

Esses meus três primos (Jaime, Zé e Duarte), de quem sou muito amigo e eles meus, parecem-se muito na sua relação com o meu irmão e eu. O Jaime e o Zé ainda foram comigo para o CDS, quando era porta-voz e me ocupava da comunicação social: o Jaime fez-se muito bom jornalista, com larga carreira; o Zé ainda criou uma banda desenhada de sátira política e alguns cartoons, para a "Democracia 76", mas seguiu arquitectura competente, tirando melhor proveito do seu desenho. Os três têm estreita diferença de idades entre eles, como o Fernando e eu. Vejo-lhes o mesmo tipo de cumplicidade, que se mantém até hoje. Cresceram entre eles, como nós os dois. Cada um tem o seu modo, mas andaram sempre na mesma estrada, pelo mesmo lado e ao mesmo tempo. Unha com carne. Irmãos para a vida.

Mafra, 1958: nós e os primos filhos do tio Gilberto.
Da esquerda para a direita: Fernando, Pi, Carrucha, Gonçalo e eu.

Os outros meus três primos do tio Gilberto (Carrucha, Gonçalo e Pi), de quem sou muito amigo e eles meus, já são um quadro diferente. São duas raparigas e um rapaz; e a diferença de idades não é igual. São muito amigos, mas até pela vida do meu tio, nas comissões em África, os filhos não andaram sempre na mesma estrada – numa altura, por exemplo, a mais nova estava em Angola com os pais e os outros dois, por cá, nos respectivos colégios militares. São muito unidos e a vida fê-los ainda mais próximos, depois de a sua mãe (a tia Zé) ter morrido num acidente de automóvel e, mais tarde, aquando do exílio com o pai. Sólidos como rocha, seguros como cabo de aço.

Uma nota que aprendi entre todos, ao longo da vida, no mesmo quadro vivencial ou em quadros diferentes, foi a ternura e a confiança entre todos. Graças a Deus. Os meus anos ’60 foram marcados pela guerra do Ultramar. O meu tio Gilberto era militar e fez três comissões em Angola, admirado como o “Comando n.º 1”. Desde os meus 10 anos, ou um pouco antes, escrevia-lhe “aerogramas”, como se chamavam as cartas que mandávamos pelo correio militar. O meu tio gostava muito delas, o que me fazia muito orgulhoso. Era o meu herói privativo e qualquer opinião dele valia mais que Prémio Nobel. Essa correspondência durou até aos meus 15, 16 anos. Ele também respondia por “aerograma”, mas frequentemente tinha de pedir ajuda para ler – tinha letra dificílima. Com o meu tio Zé aconteceu parecido. A certa altura, foi mobilizado como médico e, contrariado, lá foi para o norte de Angola, para Maquela do Zombo e Bessa Monteiro. Esteve ainda noutros lugares. Gostavam muito dele, como pessoa e como médico. O meu tio Zé era, entre outras qualidades, o que se chama um tipo pachola. Também lhe escrevi “aerogramas”, embora o correio não tivesse a mesma intensidade. Sei que contribuiu para alimentar a estima e o afecto que sempre lhe conheci por mim. Ensinou-me segredos. Tivemos, todos juntos, grandes dias e serões de paródias, jogos, conversa e gargalhada, na Cova da Piedade, no Algarve e em Almada. Passeámos várias vezes no seu barco à vela, paixão que lhe crescera com minha mãe, em jovens, então num pequeno "Star" que os meus avós lhes haviam dado. A minha tia voltou-me a assegurá-lo, há duas semanas, quando morreu: “Sabes? Perdeste um grande amigo. O teu tio tinha muita amizade por ti.” Eu sei.

Estas minhas referências são pessoas de até ao fim do mundo, pessoas que sempre foram para mim porto seguro, zona de conforto. Pessoas até para depois do fim do mundo.

Agora, que cheguei à condição de último dos irmãos da minha linha para cima, olho no mesmo patamar para os meus primos de ambos os lados, olho para o patamar de baixo dos meus filhos e sobrinhos e, já para o patamar seguinte, de netos  e sobrinhos-netos. É uma multidão de gente. Não sou o último. Ainda na minha linha e, a seguir, dela para baixo, há muitos outros. 

Grande tribo que me conforta. Aponta estrada muito para lá e para depois de tudo o que posso ver ou imaginar. Sinto-me bem e confortado, mesmo quando há problemas. No fundo, é uma cascata de irmãos, assim como as grandiosas quedas de Calandula (as do Duque de Bragança), com várias frentes e outros tantos desdobramentos. Uma cascata de irmãos, na verdade.

José Ribeiro e Castro