segunda-feira, 31 de março de 2014

BPN - o atoleiro do regime


Em entrevista, no sábado passado ao EXPRESSO, o ainda Presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, deixou cair que, quando era Primeiro-Ministro de Portugal (ou seja, entre 2002 e 2004), chamou três vezes o então Governador do Banco de Portugal, Vítor Constâncio, para lhe perguntar se aquilo que se dizia do BPN era verdade.

Durão Barroso disse isto espontaneamente, com aparente displicência, já fora do espaço da entrevista, sem o jornalista - o próprio director do EXPRESSO, Ricardo Costa - lhe ter perguntado o que quer que fosse. E tinha começado por lançar, em tom de lamento: «Foi pena não me ter perguntado mais nada sobre o BPN.» Com isto, pode ter ateado um fogo, porventura um incêndio.

Excerto da entrevista ao EXPRESSO
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O comentário, dito assim, a correr, como coisa sem importância, é de feição a incendiar de novo a actualidade. As questões abertas - e reabertas - com essa simples frase são muitas. Não só sobre o Banco de Portugal e Vítor Constâncio; mas também sobre o próprio autor das revelações: afinal, o que é que Barroso sabe? O que é que Barroso gostava de ter dito ao EXPRESSO, que não disse e o EXPRESSO nem perguntou? 

Nessa direcção, quem acendeu o primeiro fósforo foi o PSD, através do deputado Duarte Marques, que logo lançou um conjunto de questões dirigidas ao Banco de Portugal. Fez bem, do ponto de vista do esclarecimento público. Mas o caso tem o recorte propício a não ficar por aqui. E quem o confirma é o certeiro Editorial de hoje do "Diário de Notícias", que - também bem - aponta o foco e as baterias para mais fundo e porventura mais longe: «O que está por saber e esclarecer é muito. O que no caso do BPN é demasiado. Que dúvidas tinha o então primeiro-ministro que o levaram a chamar por três vezes Vítor Constâncio? Foram esclarecidas? Porque não decidiu informar a comissão de inquérito dessas suas diligências e só agora revela esses encontros? E Vítor Constâncio, porque não referiu aos deputados que foi chamado a prestar esclarecimentos ao Governo de então sobre o caso BPN? E efetuou diligências na sequência desses alertas do primeiro-ministro, Durão Barroso?»

As inquietações que, reabrindo todo o caso, Durão Barroso veio revelar sponte sua confirmam a seriedade de notícias que, a seu tempo, nunca foram devidamente valoradas. E perguntar-se-á outra vez: por que é que não foram devidamente valoradas? A indiferença foi negligência? Ou foi dolosa? E que consequências daí resultaram? Refiro-me às célebres informações publicadas, ainda em 2001, por Camilo Lourenço na revista EXAME e que tanta tinta fizeram correr. E refiro-me também às denúncias expostas pelo "Jornal de Negócios" em 2003, como o então director, Pedro Santos Guerreiro, recordou em artigo editorial de 2011: "O fabuloso ano de 2002 do BPN".

O caso pode tornar-se um novo embaraço para o PS, o partido de Constâncio. Mas igualmente para o PSD, o partido de Durão Barroso - e também de Dias Loureiro e Oliveira e Costa. Talvez ainda, indirectamente, para o CDS, que estava no Governo de que Barroso era Primeiro-Ministro. A pergunta será: o CDS sabia dessas inquietações e diligências do Primeiro-Ministro Durão Barroso? Ou, se o CDS nada tivesse sabido, ricochete de novo para Barroso.

O caso BPN, que é absolutamente o escândalo inominável propriamente dito, tem todos os ingredientes para isto. Primeiro, o volume esmagador dos prejuízos que da burla do BPN passaram para os contribuintes, num caso que é a nossa mini-Islândia - o DN fala, hoje, em 7 mil milhões de euros, o equivalente a «um décimo do empréstimo da troika. Segundo, os nomes envolvidos, de que muitos continuam isentos de qualquer responsabilização. Terceiro, a dimensão dos sacrifícios que o cidadão comum tem suportado com a crise, em contraste com a aparente descontracção de responsáveis pelo BPN ou dos que deveriam ter agido e não agiram. Quarto, a hipersensibilidade que este facto acumulou na opinião pública - como vários episódios recentes confirmam. Quinto, o sentimento difuso, mas profundo, de injustiça que tem crescido na opinião pública, pelo facto de os processos se arrastarem na Justiça e alguns dirigentes (ou beneficiários) não terem sido sequer acusados ou chamados a responder. Sexto, as dúvidas que nunca foram respondidas e a sensação de que há "coisas escondidas". Sétimo, o novelo de sensações latentes de "compadrios", "cumplicidades", "coisas abafadas", "impunidade", "filhos e enteados", "feitos uns com os outros". Em síntese: BPN é uma sigla que queima. E, como atoleiro do regime, vai-se prolongando como carambola infernal.

O caso excita a curiosidade. Legitimamente. E o ambiente de campanha eleitoral para as europeias só pode fornecer mais combustível ao fogareiro: além do caldo geral de campanha e escândalo, Constâncio e Barroso são indirectamente dois alvos europeus apetitosos. Já houve duas comissões de inquérito parlamentares. Não me surpreenderia que se começasse a falar de uma terceira - ou, ao menos, que um novo corrupio de figuras passasse (de novo) por uma cascata de audições no Parlamento. 

Do caso BPN, era bom que, de uma vez por todas, não ficasse pedra sobre pedra. Tudo fosse sabido, julgado, responsabilizado e, na medida do possível, recuperado e reparado.

O Manifesto que não teve adesão


O Manifesto "Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente" foi conhecido a 11 de Março com a assinatura de 74 personalidades portuguesas. Deu muito que falar. 

A seguir, a 19 de Março, foi divulgado o apoio de 74 economistas estrangeiros. O que também deu que falar. 

Entretanto, criou um site próprio na internet e anunciou que se iria transformar em petição à Assembleia da República. Paulo Rangel assegurou, acto contínuo, que o Manifesto 74 "não teve a adesão dos portugueses", que "já saiu da agenda" e que "ninguém fala dele". Nas primeiras 24 horas, a petição online  superou 16 mil assinaturas e parece não parar.

É sempre melhor responder às coisas com argumentos e não com impressões ou pura gritaria. As coisas sérias debatem-se e apreciam-se com racionalidade.

domingo, 30 de março de 2014

Voto de Pesar por Fernando Ribeiro e Castro

Na passada sexta-feira, 27 de Março, o plenário da Assembleia da República aprovou por unanimidade este Voto de Pesar pela morte de Fernando Ribeiro e Castro. A proposta de voto havia sido apresentada por deputados do PSD, do PS e do CDS-PP.

O minuto de silêncio

VOTO DE PESAR PELO FALECIMENTO DE
FERNANDO RIBEIRO E CASTRO

Fernando Augusto de Almeida Ribeiro e Castro nasceu a 31 de Maio de 1952, em Lisboa, tendo falecido na mesma cidade, a 20 de Março de 2014, aos 61 anos de idade.

Personalidade incontornável da sociedade portuguesa, Fernando Ribeiro e Castro foi um homem de valores firmes, que dedicou toda a sua vida à causa pública, assim marcando para sempre a vida de muitos portugueses. 

Escolheu, em jovem, a carreira militar e foi um respeitado e estimado oficial de Marinha e Engenheiro Construtor Naval. Aluno brilhante e distinto, licenciou-se em Ciências Militares (ramo Marinha), em 1973, na Escola Naval do Alfeite, especializando-se mais tarde, em 1976/79, em Arquitectura Naval e Engenharia dos Oceanos no Massachusetts Institute of Technology, de Boston. Foi às Forças Armadas, na Marinha, que dedicou as primeiras décadas da sua vida adulta. Foi imediato do Navio Patrulha "Rovuma" (1973 – 1976), foi Chefe do Serviço de Estruturas da Direcção de Manutenção (1979 – 1981) e foi Chefe da Divisão de Estudos e Projectos do Arsenal do Alfeite (1988 – 1992). Foi professor da Escola Naval. Durante muitos desses anos, leccionou várias cadeiras, partilhando com tantos os conhecimentos que adquirira no M.I.T. nos Estados Unidos. Foi condecorado com a Medalha Militar de Comportamento Exemplar (Prata) e a Medalha Militar de Serviços Distintos (Prata).

Unicamente por incontornáveis imperativos familiares, foi condicionado a ter de sair da Marinha, em 1992no posto de Capitão-de-Fragata. Esta contingência, que marcou um profundo desgosto pessoal, não alterou a sua maneira de ser e de trabalhar e nunca quebrou, nem o fez desistir da sua paixão pelo mar e de uma profunda identificação com as suas gentes. Soube, aliás, reconhecer e aprofundar o potencial estratégico do Mar para o desenvolvimento da economia portuguesa. Lutou arduamente por essa causa. Esta sua dedicação levou-o a Secretário-Geral do Fórum Empresarial da Economia do Mar, em 2010, tendo através dessa associação de empresas deixado ao país um importante património de mobilização e de reflexão sobre o sector. Foi ouvido algumas vezes na Assembleia da República, em comissão parlamentar, na sequência de petições ou doutras iniciativas, dando, junto com outros companheiros do sector, o seu experiente contributo à reflexão estratégica sobre as políticas públicas de Portugal no domínio do Mar.

Foi, no entanto, a defesa de outras causas que mais o notabilizou. Presidente da Associação Portuguesa de Famílias Numerosas (APFN), que fundou em 1999 com a sua esposa, bateu-se sempre e determinadamente pela promoção da natalidade e pela defesa de melhores condições para todas as famílias que fossem, ou quisessem ser, numerosas. Homem de uma profunda e inabalável fé, conduziu toda a sua vida, incluindo a sua acção social e política, de acordo com os valores da democracia cristã e da Doutrina Social da Igreja. E, como tal, em momentos de grande significância política, aliou a sua voz a importantes debates acerca do futuro da sociedade portuguesa.

Ao longo de uma vida de dedicação constante à causa pública, foram muitos os que, pela sua tenacidade e generosidade, se sentiram inspirados. Esses, que lamentam o seu desaparecimento, sabem também que o seu legado viverá através deles. O país, por seu lado, agradece-lhe, e não esquece o contributo daquele que foi um cidadão exemplar, um patriota, um carácter simples, um profissional dedicado e um homem bom. 
A Assembleia da República agradece a Fernando Ribeiro e Castro a sua dedicação à causa pública, que o destacou como figura notável da sociedade portuguesa, e apresenta a toda a sua família e amigos as suas sentidas condolências.
Assembleia da República, 25 de Março de 2014

Os Deputados,

(assinaturas de deputados do
CDS-PP, PSD e PS)


sábado, 29 de março de 2014

O Comandante Fernando Ribeiro e Castro

Transcrevo o texto escrito pelo Contra-Almirante Engenheiro Construtor Naval Victor Gonçalves de Brito, publicado inicialmente, no passado dia 24 de Março, no blog A Voz da Abita (na Reforma):


EM MEMÓRIA DE FERNANDO RIBEIRO E CASTRO
Depois da doença ter vencido a vontade indomável de viver do Fernando Ribeiro e Castro, sinto o dever moral de testemunhar a grandeza e o mérito de tão ilustre Camarada e Colega de profissão. 
Com o seu falecimento, a comunicação social assinalou a actividade do Fernando Ribeiro e Castro (FRC) como fundador e principal dinamizador da acção cívica da Associação Portuguesa das Famílias Numerosas. 
O meu testemunho cinge-se às actividades profissionais do FRC como oficial de Marinha e, mais recentemente, como Secretário-Geral do Fórum Empresarial da Economia do Mar. 
Com diferença de 5 anos no ingresso na Armada, conheci episodicamente o FRC em 1973, quando regressei de comissão no Ultramar e “estagiei” algumas semanas na Escola Naval quando ele era o “penico” do curso mais antigo. Notava-se claramente que era um líder carismático e uma personalidade forte e de referência. 
Mais tarde, em conversa com um camarada de curso, Comandante de Navio Patrulha em Angola onde o FRC era Oficial Imediato, ouvi rasgados elogios à sua acção, pela sua dinâmica, iniciativa e liderança. 
Regressado do MIT, em 1979, transitando da Classe de Martinha para a de Engenheiros Construtores Navais, o FRC rendeu-me na então 3ª Repartição da Direcção do Serviço de Manutenção, como Chefe da Secção Técnica de Estruturas, onde deu continuidade a um projecto, por mim desenhado e iniciado, de conservação estrutural das querenas dos navios da Armada, que terminou uma longa saga de problemas com as pinturas das obras vivas dos navios – assunto recorrentemente objecto de conversa entre os ECN mais antigos na antiga Inspecção das Construções Navais (a quem era cometida responsabilidade da gestão das docagens dos navios da Armada, onde o problema das tintas para as obras vivas era sempre atribuído ao mais moderno como assunto menor, insolúvel). 
Posteriormente, o FRC prestou provas e assumiu funções docentes na Escola Naval (EN). Nesse período, no exercício de profissão liberal, executou o primeiro anteprojecto de alteração do “Creoula”, para adaptação a “navio de treino de mar”, quando o navio ainda estava sob tutela da Secretaria de Estado das Pescas. 
Ainda como docente da EN, num período crítico e frágil da Direcção-Geral do Material Naval e do seu Gabinete de Estudos, o FRC foi pessoalmente incumbido pelo VAlm VCEMA de iniciar o projecto básico da Lanchas Costeiras, do que posteriormente seria a Classe “Argos”. 
Entretanto o FRC transitou para o Arsenal do Alfeite (AA) e “arrastou” consigo esse projecto que foi assumido em pleno e concretizado. As lanchas permanecem ao serviço da Armada, julgo que com satisfação generalizada. 
No período em que o FRC desempenhou funções de Chefe da Divisão de Projectos do AA, pude verificar a sua elevada dinâmica, determinação e capacidade intelectual. Para além do desenvolvimento do projecto das “Argos”, em especial com os esforços numa solução para a concepção e concretização do embarque/desembarque rápido e seguro da embarcação semi-rígida, que ainda hoje deve ser a única solução viabilizada em navios de pequenas dimensões (recordo-me, a propósito, das prelecções recorrentes a propósito de “Inovação” a que estamos sujeitos no dia-a-dia), recordo todas as iniciativas da altura no sentido de viabilizar novos projectos que por uma ou outra razão não se concretizaram (recordo em particular o projecto de um navio patrulha oceânico para a Argentina e do navio hidro-oceanográfico ALBA – sigla de junção do AA com a Empresa Nacional BAZAN). Dos projectos concretizados posteriormente recordo o das lanchas de fiscalização para República da Guiné-Bissau. 
Recordo também o entusiasmo e empenho do FRC na transição da informática do AA da esfera financeira (a época da mecanografia) para a área técnica, percursora da criação do SIAGIP, sistema de informação de gestão da produção com características avançadas, que muito beneficiou o funcionamento do AA e que nunca foi devidamente valorizado fora do estaleiro. 
Na realidade, o FRC, no AA, confirmou que era um entusiasta lúcido e interveniente, isto é, não se limitava a apoiar – nunca se negava a novos desafios e empenhava-se ao máximo nos projectos que lhe eram cometidos. 
As circunstâncias práticas da vida e as limitações dos vencimentos no Estado levaram-no a pedir a passagem à situação de reserva, o que não lhe foi concedido, devido a uma daquelas decisões – “agora é que vamos pôr isto no são” – que morrem cedo. O FRC, como Capitão-de-Fragata ECN, foi obrigado, juntamente com mais dois ou três camaradas, a requerer o abate ao efectivo da Armada. Recordo, com muita tristeza que, na altura, um justo louvor militar do Administrador do Arsenal do Alfeite não foi superiormente avocado, inviabilizado o que em condições normais levaria a uma justíssima concessão de medalha de serviços distintos. As decisões ficam na consciência de quem as aconselha e de quem as toma. 
Depois de quase duas décadas de actividade fora do meio naval e marítimo, foi com satisfação que o vi contratado para Secretário-Geral do Fórum Empresarial da Economia do Mar (FEEM), onde novamente a sua inteligência, natural empatia, empenho e determinação, foram postos ao serviço das actividades marítimas, agora num âmbito alargado ao todo nacional. A acção do FRC no FEEM foi e tem sido publicamente reconhecida nestes últimos tempos. 
Como Secretário-Geral do FEEM, nunca se furtou a divulgar as oportunidades de actuação nos assuntos do mar e a diligenciar por demover as barreiras burocráticas existentes que dificultavam novos projectos e iniciativas. Aceitava todos os convites para divulgar a mensagem do aproveitamento económico do mar, por vezes, no último ano, com grande sacrifício físico, embora sempre com grande entusiasmo e minimizando os efeitos da doença. 
Já com a saúde muitíssimo debilitada, reuni-me com o FRC por sua convocação como SG do FEEM, no dia 13 de Março. Ficou-me na memória a frase: “o médico quer que eu pare de trabalhar – eu disse-lhe que tinha de mudar o discurso, pois eu continuaria a trabalhar”. Nunca mais o vi, embora ainda tivéssemos trocado mails de circunstância. 
Este é o meu testemunho sentido sobre uma vertente de actuação de um Homem cujo falecimento muito lamento. Ninguém será perfeito e sobre o FRC haverá por certo quem tenha opiniões menos abonatórias. 
Mas para mim foi das pessoas que mais me marcaram, pela sua humanidade, apego à família, brilhantismo intelectual, simplicidade, desprendimento, determinação e entusiasmo por causas. 
Por estar impedido fora de Lisboa não pude estar presente nas cerimónias fúnebres, o que muito lamentei. Mas não quero deixar de testemunhar o meu apreço e homenagear quem, com o seu passamento, muita falta faz. 
Lisboa, 24 de Março de 2014
Victor Gonçalves de Brito
CAlm ECN (ref)

 
Cadete (1969)
Aspirante (1970)
2º Tenente (1980)
2º Tenente (1980)
1º Tenente (1981)
Capitão-Tenente (1983)
Capitão-de-Fragata (1987)

quinta-feira, 27 de março de 2014

Outra homenagem: "Fernando, o semeador"

Transcrevo um texto de João Lobo Machado, originalmente publicado no aceprensa.pt, no passado dia 24 de Março:


Fernando, o semeador 
Nestes dias, têm-se multiplicado as homenagens e as palavras de reconhecimento pela sua valiosa obra e pela marca, indelével, que deixa na sociedade Portuguesa. Testemunham-no todos aqueles que o conheceram de perto - a própria família, os alunos da Escola Naval, os companheiros das inúmeras iniciativas cívicas, os muitos amigos que tinha - mas, igualmente, a própria sociedade civil. Elogiam o seu trabalho e as suas enormes qualidades, que soube, sempre, pôr ao serviço do bem comum.
As cerimónias fúnebres, incluindo o cortejo até ao cemitério, foram marcadas por uma impressionante moldura humana. Familiares, colaboradores, amigos e admiradores, quiseram dizer o último adeus e prestar uma merecida homenagem e alguém que se preocupou em ser útil à sociedade, servindo os outros.
Quem o conhecia bem admirava a sua inteligência, organização, perseverança, espírito de luta, enorme fé e um amor incondicional à família, a que juntava uma característica adicional que era uma gargalhada absolutamente contagiante.
Todos estes talentos, o Fernando partilhou com aqueles que com ele se cruzaram e aplicou nos distintos desafios que a vida lhe foi colocando e que ele, com enorme dedicação e paixão, foi abraçando. Salientam-se, de entre eles, o trabalho inestimável que fez na Associação das Famílias Numerosas, a defesa da vida, os referendos sobre o aborto, a participação e intervenção na sociedade.
Numa palavra, a sua atenção era defender e valorizar a família, a verdadeira célula base da sociedade. O Fernando e a sua mulher, Leonor, foram, pois, uns verdadeiros Embaixadores da Família.
A realidade da sociedade Portuguesa não tem sido nada favorável aos valores da família, razão pela qual mais se enaltecem as causas pelas quais o Fernando se bateu. Algumas já deram os seus frutos, enquanto outras deixaram a sua semente, bem cuidada. Caberá, agora, a cada um de nós, regar essas sementes e fazer o que nos toca para que elas frutifiquem e gerem muitos frutos.
Como homenagem ao Fernando, que bom seria que muitas empresas, associações e demais entidades, definissem e adoptassem, publicamente, o estatuto de Amigas da Família.
Parafraseando o Padre Henry Scott Holland, que dizem ter sido inspirado em Sto. Agostinho, a morte não é nada; o Fernando agora está do outro lado, à nossa espera, mas continua a pensar em e a rezar por nós.
Estou certo que Deus, contente com a forma como o Fernando usou e multiplicou os talentos que recebeu, já o recebeu na Sua casa.
Bem hajas, Fernando, por tudo o que fizeste e por aquilo que, para nós, alcançaste e semeaste.
João Lobo Machado

quarta-feira, 26 de março de 2014

O meu irmão Fernando. E a Leonor.


Não há muitas semanas, alguém me observou isto. Penso que foi a Margarida. Não tenho a certeza, mas acho que foi a Margarida Neto que me notou que não há um Dia do Irmão; e que tínhamos de fazer qualquer coisa para preencher esta lacuna.

É verdade: não há. Há tantos dias de tanta coisa e não existe um Dia dos Irmãos. Andei a ver na Internet – hoje, vê-se tudo na Internet. É exacto: não há mesmo, estabelecido, um Dia dos Irmãos e Irmãs. Depois de ter feito este comentário público, há dias, a seguir à morte do meu irmão, já recebi indicações de movimentos nesse sentido. Mas são notícias escassas e incertas, que já pus na Internet. Temos caminho para fazer.

O meu Dia do Irmão é 31 de Maio, o dia em que o Fernando nasceu.  Já não resistiu para chegar ao 31 de Maio deste ano. Já não chegou aos 62 anos. Partiu com a mesma idade do nosso pai, aos 61 anos. Parece-nos cedo; parece-nos mesmo muito cedo.

Quando eu nasci, o Fernando já cá estava. Sempre conheci a vida com o meu irmão. Foi o meu primeiro companheiro: um grande companheiro, um verdadeiro camarada.

Das frases que mais gostava de ouvir ao Fernando, no seu labor pelas famílias e pelas famílias numerosas em especial, aquela de que eu mais gosto e mais cito é esta: “Se queres ver uma criança feliz, dá-lhe um irmão. Se queres ver uma criança muito feliz, dá-lhe muitos irmãos.” Repito: “Se queres ver uma criança feliz, dá-lhe um irmão. Se queres ver uma criança muito feliz, dá-lhe muitos irmãos.”

É verdade. É exactamente assim. Eu só posso falar – e falo – da felicidade que é ter um irmão: uma felicidade indescritível, um tesouro de cumplicidade. Os meus filhos e, sobretudo, os meus sobrinhos, que são desse departamento, podem confirmar, e confirmam, a muita felicidade que é ter muitos irmãos, muitos irmãos.

Quando éramos crianças, tinha eu 10, ele já 12 anos de idade, Setembro de 1964, demos uma volta pela Europa com os nossos pais. De carro: um velho Taunus 17M, matrícula CI-79-16. Ao chegarmos a Saló, em Itália, nas margens do Lago Di Garda, entrando no hotel, o Touring Hotel, a recepcionista exclamou para os pais, apontando para nós: “Belli bambini! Uno como mamma, altro como papa!” A coisa deu risota, claro. E ficou como anedota repetida de brincadeiras familiares: “Uno como mamma, altro como papa!” Um seria mais parecido com a minha mãe, o Fernando; outro com o meu pai, eu próprio.

À medida que os anos foram passando, e sobretudo os quilos pesando e a convergência grisalha fazendo a maquilhagem a partir dos nossos 40 anos, fomo-nos achando cada vez mais parecidos. E eu sempre sorri muito ao ver os meus filhos ou os meus sobrinhos, diante de um gesto, de um à parte, de um comentário, de um riso, de uma piada, de um trejeito, de um repente qualquer, exclamarem, apontando para nós: “Iguais! São iguais! Iguaizinhos…”

Isso é uma grande responsabilidade para mim. Oxalá essa parecença e semelhança possa atenuar a dor e o vazio da partida do Fernando, no coração e no olhar daqueles que lhe são mais próximos. Deus queira.

*
* *

Nos sessenta anos que vivemos em comum este tempo, o último ano foi, para a família, carregado de novas experiências e ensinamentos. Densos, muito densos.

Fez agora um ano e um mês que foi detectada a doença que lhe foi fatal, um cancro nos pulmões da pior espécie. Foi uma terrível notícia – prognóstico ruim, mau, muito mau.

Este tempo teve dois tempos: um tempo de luta e muita esperança, sobretudo até ao Verão passado e depois ainda até Dezembro; e outro tempo de luta ainda, de esperança sempre, mas já marcado pela fatalidade, de Dezembro para cá, mais estreito desde Janeiro.

Lembro-me de ter acompanhado, não há muito, a última estrada  de uma grande amiga, a Maria José, que, nesses seus meses finais, me dizia: “Ó Zé, agora é que vamos ver se acreditamos mesmo naquilo em que andámos a dizer que acreditamos.” Ela mostrou não só acreditar, mas confiar: no Bom Pastor, de que nos deixou um testemunho formidável. O Fernando também.

Eu não sou de muitas palavras; e, nestas coisas, o Fernando também não. Entendíamo-nos sem palavras. Nestas coisas, que são difíceis e dolorosas, há como que uma “no talk rule” (uma regra de não falar) por que achamos fazer assim mais suaves estas travessias e viagens, afastando as más notícias.

De Dezembro para cá, desde antes do Natal, o caminho tornou-se mais duro e apertado. E, nas nossas conversas, com o Fernando e, às vezes, também com a Leonor, os véus foram caindo a pouco e pouco. Do que sabíamos e desconfiávamos; ou temíamos. Foi-se passando do “sei que tu sabes” ou “tu sabes que eu sei”, para “tu sabes que eu sei que tu sabes” e, mais à frente, para “tu sabes que eu sei que tu sabes que eu sei”.

A cada um destes véus que caía, era preciso, interiormente, fazer um luto – o outro, afinal, também sabia – e, ao mesmo tempo, recuperar o fôlego, manter e alimentar a esperança para seguir o caminho. Em frente. O Fernando foi exemplar nessa estrada de fé e testemunho. E a Leonor também. E os meus sobrinhos.

Na penúltima vez que almoçámos juntos, perto do seu trabalho, o Fernando contou-me como, aquando de uma das suas últimas crises, a meio de Fevereiro, morreu uma senhora na cama ao seu lado, no 6º andar do I.P.O., onde era assistido e socorrido nos sobressaltos que lhe aconteciam, cada vez mais frequentes. E pela forma como me contou, com pormenor, as conversas da Leonor e dele com a senhora, e com a sua filha, como a senhora voltara a rezar, a sua breve agitação final e o repentino momento sereno da partida, eu percebi que o Fernando, nesse almoço, desse dia, me estava a querer dizer que pedia a Deus que, na sua terrível doença,  lhe desse uma morte assim: que, chegada a hora, o chamasse de uma vez só.

Acredito que Deus lhe correspondeu. Ainda na terça-feira da semana passada, ao fim do dia, em sua casa em S. Domingos, rimos e planeámos coisas como se não houvesse fronteira. Na quarta-feira, faz hoje uma semana, teve o seu último Dia do Pai – merecia-o: Pai foi sempre o seu posto principal – e foi trabalhar, fora de casa; foi também à missa por S. José na Igreja de S. José. Na quinta-feira, o seu último dia, todos contam que esteve muito bem e activo de manhã, a trabalhar em casa; e, depois, à tarde, passou mal, voltou de urgência ao I.P.O., onde nos juntámos todos – e Deus chamou-o. Não sofreu muito. Graças a Deus.

Por curiosidade, nesse mesmo último dia, quinta-feira, à noite, na Internet (hoje, vê-se tudo na Internet), fui ler o Salmo da missa do dia da partida do meu irmão. Diz assim, o Salmo do dia 20 de Março:
«Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios,
nem se detém no caminho dos pecadores,
antes põe o seu enlevo na lei do Senhor
 e nela medita dia e noite.»
Pelo Fernando, não tenho dúvida alguma: estava preparado. Assim Deus o receba na Sua graça – e o Fernando possa já estar na companhia da nossa mãe e do nosso pai, que também partiram cedo.

Imagino até que, neste reencontro, uma vez que o Fernando foi sepultado de novo fardado como Capitão-de-Fragata, o nosso pai tenha ido logo verificar se trazia as meias bem calçadas. Há uma história, na verdade, que ilustra bem uma das facetas do temperamento do meu irmão.

Um dia, aluno ainda da Escola Naval, já depois da Páscoa, foi a casa trajando a farda de Verão, a farda branca da Marinha. Ao sentar-se e cruzar a perna, o pai, que era bom observador, notou que o Fernando trazia calçadas meias diferentes: uma curta e outra de cano alto. E disse-lhe: «Ó Fernando, tens que ter cuidado. Estás com meias diferentes.» Resposta pronta do Fernando: «Ó Pai, o Regulamento diz que as meias têm que ser brancas, não diz que têm que ser iguais.»

*
* *

O Fernando foi um grande homem. O melhor irmão que eu tive – não houve igual. Foi bom marido e um grande pai e avô. Um tio querido dos meus filhos. Um óptimo companheiro de toda a gente, um camaradão. Um bom carácter, um homem simples. Um aluno brilhante e um profissional distinto. Um excelente professor da Escola Naval. Um militar dedicado e marinheiro de eleição, a sua grande vocação. Nas curvas, e contracurvas, e percalços da vida, agradeço que o Fernando  possa ter morrido de novo ao serviço do mar, embora agora em capacidade civil, regressando ao seu território, no Fórum que dirigia – o Fernando era verdadeiramente um homem do mar. Foi o “penico” do seu curso de Marinha (para quem não saiba, “penico” é o primeiro do Curso) e o primeiro também no exigente M.I.T., em Boston, Massachusetts. Foi um grande engenheiro – desde garoto que o conheci como um “engenhocas” de grande capacidade inventiva e de solução de problemas. Fizemos inesquecíveis brincadeiras de engenharia. E era ainda um mais competente e brilhante profissional.

Foi um lutador, um lutador incansável. Uma fonte inesgotável de alegria, de optimismo e de confiança. Um homem de grandes capacidades cívicas, que pôs ao serviço da sociedade e do país, com  grande generosidade e capacidade de entrega.

Na quinta-feira à noite também, na Internet (hoje, vê-se tudo na Internet), li este título: «Morreu o “pai” das Famílias Numerosas» – era o título da notícia da Rádio Renascença online. É verdade. Todos sabemos a obra ímpar que imaginou e concretizou, concebendo, lançando e fortalecendo a APFN em Portugal. E eu pude ver (e ter o privilégio de, às vezes, acompanhar) o trabalho extraordinário que desenvolveu e edificou por toda a Europa, na ELFAC – European Large Families Confederation, e a forma como era tão estimado e tão admirado em muitos países europeus.

Fosse na temática familiar, na causa da Vida, na militância católica – De Colores! –, na visão do Mar como grande desígnio do país, ou noutras causas calorosas que abraçou na sua vida, o Fernando povoou o terreno de sinais: fez muitos amigos, incontáveis amigos, e deixou muitas sementes, inumeráveis sementes. Deixou muito por fazer. São coisas que temos de continuar.

Ainda bem que é assim. Ainda bem que nos deixou muito para fazer. É sempre bom sabermos o que temos para fazer; e para onde.

Graças a Deus.

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Umas palavras finais com alguns agradecimentos.

Na missa de encomendação, exprimi os agradecimentos da família ao município de Cascais – que foi o município do meu irmão -, à Marinha – que foi sempre o seu povo – e à Igreja, que somos todos os cristãos – Igreja que sempre acolheu o Fernando e onde ele sempre se sentiu cada vez melhor.

Junto mais alguns agradecimentos. À freguesia de S. Domingos de Rana, que era a sua Sesame Street familiar (a sua Rua Sésamo, de à vontade, pertença e confiança), onde passámos férias da nossa juventude, onde conheceria a Leonor, onde sempre viveram com todos os filhos quando por cá – e ficou, em definitivo, a ser a sua terra. Um agradecimento também ao Sistema Nacional de Saúde, em especial aos médicos, enfermeiras e auxiliares que o trataram e socorreram, sobretudo neste último ano tão exigente, a todos os que puseram o sistema de pé, o desenvolvem e mantêm, apesar das dificuldades – sem o sistema de Saúde, nós não teríamos como.

Enfim, uma palavra para a Leonor. Os meus pais foram padrinhos de casamento da Leonor e do Fernando, em 2 de Junho de 1973. Em representação da mãe e do pai, que já não estão cá para o fazerem directamente, eu quero agradecer à Leonor a felicidade que deu e partilhou com o Fernando, o amor e a coragem incondicionais de vida inteira e total, desde aquele primeiro dia adolescente junto ao nicho de Santo António, nos Gafanhotos, até ao leito da morte propriamente dito, no cubículo discreto da urgência do I.P.O. Eu sou testemunha. Alguns de nós, amigos e familiares aqui presentes, estivemos em S. Domingos de Rana nas Bodas de Prata do Fernando e da Leonor, em 1998. No passado dia 20 de Março deste ano, 2014, a Leonor e o Fernando celebraram também as suas Bodas de Diamante: de diamante, porque são rijas, porque são eternas e porque brilham. Hoje, é também o 7º dia dessa festa.

Graças a Deus.

José Ribeiro e Castro
Lisboa, Santa Maria de Belém, quarta-feira, 26 de Março de 2014

terça-feira, 25 de março de 2014

O Manifesto dos Setenta (e os meninos com vozinha de buzina)

2035 - a fila para a sopa 

Nem vou perder muito tempo com o tipo de criticas que foram dirigidas ao célebre manifesto sobre a reestruturação da divida. 
Na maior parte dos casos, essas critticas parecem encomendas de um poder aborrecido por haver quem se atreva a pensar pela sua própria cabeça.
Quando as criticas são intuitu personae tornam-se apenas grosseiras.
Aquilo que quero comentar é a oportunidade e a substância do manifesto.
Quanto à oportunidade, uma questão das que mais criticas mereceu, ocorre-me o seguinte: «se não agora, quando?». De facto, neste momento ainda estamos sob intervenção e a forma de sair do Programa de Ajustamento [eufemismo] está sob discussão. Cito aqui o Economist desta semana, que considera que Portugal teria necessidade de um programa cautelar, mas que não vai tê-lo – o que é do dominio público – porque a tanto se opõe a Alemanha.
Não é dificil de ver que discutir qualquer espécie de discussão sobre reestruturação da divida depois de sair-mos do programa, é seguramente mais dificil do que discutir isso agora.
A questão que se coloca é precisamente a de saber que rumo vai o País tomar depois de sair do ajustamento [eufemismo]. A questão do “rumo” a tomar é mesmo a mais decisiva com que Portugal se confronta, e um Governo que se preze tem de a encarar de frente e tomar posição sobre ela.
Vem aqui a questão da substância: a discussão à volta do tema «é possível pagar a divida ou não?», parece-me de todo inócua. Há dias ouvia Vitor Bento na TSF a dizer (com a habitual clareza e concisão)  que essa questão não era decisiva, porque nenhuma divida é paga , sendo paga ao tostão: o que os governos fazem é o roll over da divida. Necessário é que por conta de juros e mais deficites, a divida não se avolume.
É uma visão financeira da questão. Daqui decorre que a divida seria sempre possível de ser paga. Essa é a posição do governo.
O que não entra aqui em conta são os custos sociais e politicos do pagamento da divida. Talvez a História ajude: depois da Iª Guerra Mundial, a Alemanha ficou sobrecarregada com uma divida brutal. O encargo dessa divida e a mesquinhez dos credores conduziu quase em linha recta à IIª Guerra Mundial.
Bem que o Keynes avisou, mas deve ter havido uns «maduros» e uns «moedas» que acharam que ele só estava a pensar na sua própria pensão, ou coisa que o valha.
Apesar de tudo, o que então estava em causa, há 94 anos, era o perdão parcial ou total da divida alemã.
O manifesto parte do princípio de que a divida é para pagar. Mas reconhece que o seu pagamento constituirá um encargo extremamente violento e um ónus brutal sobre gerações de portugueses. Para mais, boa parte da divida está colocada no estrangeiro, e logo, o seu encargo é um dreno permanente na balança de pagamentos nacional.
Acresce que a divida não é um plano de pagamentos linear, tem flats e vagalhões, e implica uma gestão por vezes muito apertada das finanças públicas.
Daí que a ideia, de pura gestão financeira, de consolidar a divida acima de 60% do PIB em 40 anualidades iguais, com juros calculados com um curto spead sobre a taxa básica do BCE não seja nem descabida, nem irrealista.
Esta ideia pressupõe duas coisas:
1ª que o Estado Português terá de manter a partir de 2015 um saldo orçamental positivo, incluindo os encargos da divida, de forma a poder amortizar a divida abaixo dos 60%.
2ª que o imenso esforço de contenção orçamental que isto implica, implica uma verdadeira reforma das funções do Estado, de forma a garantir que as suas obrigações básicas perante os cidadãos serão cumpridas ao longo deste ciclo de pagamento de divida.
O que pode ser feito para chegar aqui?
Desde logo, encontrar no quadro europeu uma fórmula de assunção da «divida excessiva» (acima dos 60%) pelos mecanismos europeus de intervenção financeira. É para isso que existem.
Neste âmbito, podem ser encontrados vários mecanismos em que ninguem fique a perder e Portugal fique numa situação muito mais sólida.
O nosso País já provou que pode ultrapassar a sua circunstância. O esforço nem sequer está a meio, está no início. O momento de encontrar um road map para o futuro é agora.
Esta discussão vai dominar a vida nacional ao longo dos próximos anos porque o peso insuportável da divida nos vai subjugar ao longo dos próximos anos.
Evitar esta discussão é o caminho dos imbecis e dos cobardes. Evitá-la quando pode ser útil e não meramente académica, é o caminho dos calculistas da pequena politica, que nos trouxe até aqui, aliás.

Um estadista entenderá que chegar a 2035 com o País exangue e envelhecido, pobre e sem horizontes, mas com a divida paga, não é um caminho, é um atalho para a desgraça.

Dia dos Irmãos e Irmãs


Depois das palavras que disse, aquando da morte do meu irmão Fernando, lembrando uma conversa com a Margarida Neto, a ideia do “Dia do Irmão” pegou por aí. Tenho recebido reacções e apoios. Uma sobrinha-neta minha, a Andreia, já começou mesmo uma página no Facebook: "Queremos o Dia do Irmão". Foi ela que me convidou para aderir - e já aderi. E a Margarida Neto também me diz querer não largar o assunto. Voltámos a falar, ontem.

Num comentário num post no meu mural do Facebook (hoje, de facto, vê-se tudo pela internet…), indicaram-me que já havia um Brothers and Sisters Day nos Estados Unidos, a que se somou, mais tarde, outro comentário, acrescentando que o mesmo se passaria no Brasil.

Fui, por isso, fazer uma busca mais demorada e usando também outras línguas, nomeadamente o inglês. Em espanhol, francês, alemão ou italiano, não encontrei nada de novo ou diferente.

Como disse no meu texto inicial, só tinha encontrado referências a um Dia do Irmão, na Índia, celebrado a 5 de Setembro - e com indicações muito escassas e incertas. Ver: aqui; ou aqui; ou aqui.

A indicação fornecida para a escolha desta data é a de que foi escolhida por ser o 10º aniversário da morte de Madre Teresa de Calcutá, que efectivamente faleceu a 5 de Setembro de 1997. Ora, salvo o devido respeito, isto não faz muito sentido, por duas razões: primeiro, o dia é sempre o mesmo, seja o primeiro, o segundo … o décimo ou o centésimo aniversário; e, segundo, não se intui facilmente, nem se percebe muito bem o que é que a morte de Madre Teresa de Calcutá tem a ver com a celebração dos irmãos no sentido familiar ou biológico do termo.

Vasculhando por aí, verifiquei que é esta data também que estará a chegar ao Brasil e é referida nalgumas fontes brasileiras. Uma fonte pergunta: «você viu na novela né?» E outra fonte comenta: «Na cultura da Índia é dia 5 de Setembro. Como o Brasil importa tudo, tem uns birutas tentando emplacar isso aqui.» Mas há quem não esteja sequer muito certo da coisa: aqui. Enquanto um outro procurou lançar um "Dia do Irmão", a fim de tentar localizar os seus irmãos que não conhecia - e acabou por desistir: aqui.

Penso que essa história do "10º aniversário" será provavelmente outra: terá correspondido à primeira vez em que se assinalou esse "Dia do Irmão" ou a fonte deu por isso, em 5 de Setembro de 2007. E, depois, o mal-entendido prosseguiu, como é habitual nestas coisas da internet, quando são mal verificadas e não estudadas. 

E, buscando melhor, nomeadamente numa fonte católica credível (o Zenit), sou levado a pensar que este 5 de Setembro – que, em qualquer caso, é muito recente e creio que não oficialmente assumido de forma significativa, nomeadamente a nível internacional – celebra o “irmão” no sentido cristão, evangélico e espiritual (todos somos irmãos em Cristo) e não no sentido de celebração da relação familiar propriamente dita a que me referi e que procuro. É o que, na verdade, se lê e verifica claramente por aqui - e, nesta perspectiva, a relação com a extraordinária figura de Teresa de Calcutá já faz todo o sentido.

Porém, entre fontes brasileiras, há quem situe esta mesma data como tendo origem no Nepal e a relacione com cerimoniais hindus - ver aqui. Teríamos que investigar melhor as singularidades da cultura nepalesa e o rigor dessa informação, para verificar se a data viajou do Nepal para a Índia (a que está ligada a vida e obra de Madre Teresa de Calcutá) ou se, ao contrário, foi da Índia que passou também ao vizinho Nepal. E apurar em definitivo, ao mesmo tempo, se esse 5 de Setembro tem a explicação acima relatada ou outra qualquer com origem na cultura nepalesa ou, mais amplamente, hindu.

Nos Estados Unidos é que, na verdade, encontrei outras notícias sobre o nosso dia no sentido de família: o Dia do Irmão, como dele falei, ou, para ser mais completo e exacto, um Dia dos Irmãos e Irmãs.

De facto, há um Brothers and Sisters Day, para que Irene Grais me alertou, no seu comentário no meu mural do Facebook. Há até uma página-portal na Internet. Será um dia que se celebra no último sábado do mês de Março, nalguns lugares norte-americanos – neste ano, portanto, festeja-se já no próximo sábado, 29 de Março de 2014. É uma iniciativa muito recente, que começou em 2007, e resulta do impulso particular de uma mulher em homenagem a um seu irmão falecido: «a woman who realized - too late - when her brother died, that she had never let him adequately know how much he meant to her.» Também tem página no Facebook, além do portal próprio. A sua oficialidade é duvidosa e a divulgação parece ainda fraca.

Para complicar as coisas, há outros datas para que se reclama a mesma celebração, também nos Estados Unidos.

Há fontes que situam um outro Brothers and Sisters Day a 2 de Maio, não tendo ainda conseguido descobrir nem o porquê deste dia, nem a extensão e efectividade que esta celebração já terá. As fontes não são muitas: ver aqui e aqui. Também parece ser uma coisa muito recente e ainda em movimento. Uma fonte italiana também aponta para este dia - Giorno dei Fratelli e delle Sorelle - embora esta fonte, isoladamente, não pareça muito fiável.

E aparece ainda um Siblings Day ou Dia dos Irmãos ("siblings” é o nome colectivo em Inglês para “irmãos” sem distinção de género), que se celebra, anualmente, a 10 de Abril.  Também resultou de uma iniciativa particular de uma mulher (Claudia Evart), em homenagem a um irmão e a uma irmã que faleceram tragicamente (ambos em acidentes). Este dia também é de invocação muito recente, desde 1997, e já terá alguma expressão nos Estados Unidos da América, embora ainda sem adopção oficial. Há uma fundação que o promove, a Siblings Day Foundation (com portal na internet e página no Facebook), e também é mais conhecido como National Siblings Day (Dia Nacional dos Irmãos). O dia 10 de Abril era o dia de anos da irmã Lesette Evart, como é explicado neste vídeo por Claudia Evart, a dinamizadora do movimento - ver também no YouTube.

Este é, portanto, como consegui recolher até este momento, o estado da arte.

Tirando o 5 de Setembro, que celebrará os “irmãos” noutro sentido (o sentido evangélico e cristão), temos já estas datas em circulação, tudo carecendo de melhor verificação e prova: o último sábado de Março (em dia móvel, portanto), o dia 10 de Abril e o dia 2 de Maio.

Temos já muito por onde escolher e a que nos associarmos, para instituirmos capazmente e passarmos a celebrar, como faz falta, o Dia dos Irmãos e das Irmãs. Ou, então, temos que fixar outra data, que faça mais sentido e tenha mais sólidos fundamentos na nossa avaliação. A meu ver, é muito importante que nos fixemos numa data que tenha condições para a respectiva internacionalização.

Até lá, como disse, o meu Dia do Irmão é 31 de Maio. É o dia em que nasceu o meu irmão Fernando. É também o último dia do mês de Maio (mês de Maria, que é, para os cristãos, a Mãe de todos). É a véspera do dia 1 de Junho, Dia Mundial da Criança – e como é mais feliz a criança se, desde a véspera, sabe que tem irmãos e/ou irmãs ou os vai ter. Como dizia o meu irmão Fernando, presidente e fundador da APFN e da ELFAC: «Se queres ver uma criança feliz, dá-lhe um irmão. Se queres ver uma criança muito feliz, dá-lhe muitos irmãos.»

Temos que nos organizar, auscultar e escolher. E, depois, instituir e fazer instituir o "Dia do Irmão" ou, mais exactamente, "Dia dos Irmãos e Irmãs".


Fernando Ribeiro e Castro: “Vai ser o meu último mandato!”

A Ana Cid Gonçalves, secretária-geral da APFN - Associação Portuguesa das Famílias Numerosas, escreveu, no mural da página de Facebook do meu irmão Fernando, este testemunho, que aqui agradeço e partilho, de forma reconhecida. É tudo verdade. Também fui testemunha.


“Vai ser o meu último mandato!”
Foi o que o Fernando declarou nas últimas eleições da APFN em que ainda se candidatou a Presidente da Direcção após a nossa insistência para que o fizesse. 
Longe estávamos, ele e nós, de saber do terrível cancro que o viria a levar tão precocemente… 
Conheci-o há 10 anos quando um amigo me pediu que desse uma ajuda na organização do II Congresso Europeu de Famílias Numerosas que se realizou em Portugal em 2004. O Fernando que eu conheci fazia de tudo na APFN: colava etiquetas, atendia telefones, fazia apresentações, escrevia, angariava artigos e compunha o boletim, geria os sócios numa aplicação informática integralmente criada por ele e que ainda hoje usamos... Mas também realizava trabalhos de fundo que exigiam muito tempo de recolha e tratamento de dados, pesquisa e compilação de informação (como os primeiros cadernos da APFN) e até mesmo o desenho conceptual de políticas públicas que hoje se mantém totalmente actual. Isto tudo de forma totalmente generosa e voluntária, noite dentro, após o seu horário de trabalho profissional e contribuindo muitas vezes com recursos próprios seus, como quando correu o país para arranjar delegados a expensas próprias.  
Fui totalmente contagiada por esta energia e generosidade, e um assunto que para mim nem sequer era assunto, passou a ser o assunto da minha vida.  
Sempre admirei a sua frontalidade e transparência. Nada na manga… Tudo o que pensava se conhecia. Muito directo e nada politicamente correcto, afirmava as suas fortes convicções de forma desabrida. Tinha sempre opinião que invocava muito seguramente mas, da mesma forma que o fazia, também era capaz de, no minuto seguinte e com toda a humildade, reconhecer razão na outra pessoa. 
Era muitas vezes mal interpretado, o que às vezes me entristecia. Frequentemente lhe atribuíam palavras, ideias e pensamentos que nunca teve. E ele sabia isso e, também por essa razão, queria que mais pessoas falassem em nome da APFN. 
Totalmente liberto de protagonismos, não procurava as luzes da ribalta. Sempre teve a preocupação e o cuidado de garantir que, como ele dizia, “a APFN não pode ser a Associação do Fernando”. Tudo fez para que tivéssemos uma equipa profissional capaz de dar resposta aos desafios com e sem ele. 
Apesar de profissionalmente ter tido sempre profissões exigentes e trabalhosas em termos de tempo, nunca deixou de dar pronta resposta a todas as necessidades da APFN e acredito que também de outros assuntos como, por exemplo, os da Confederação Europeia de Famílias Numerosas a que também presidia. Milagrosamente, arranjava sempre tempo para responder a todos os assuntos, muitas vezes no minuto seguinte. Extraordinariamente inteligente e rápido.  
Um maravilhoso sentido de humor. Achava tanta graça às nossas palhaçadas que chegámos a fazer capas de boletim falsas e outras brincadeiras só para ouvir as suas gargalhadas estrondosas. Era rara a vez que estávamos juntos e que não brincássemos a propósito de qualquer coisa.  
Mal entrava na sede, dava-se por ele. Acompanhava e estava próximo do nosso trabalho. Valorizava e entusiasmava muito a equipa. Distribuía os louros e agradecia constantemente o trabalho dos outros. 
Muito exigente, pensava em tudo e tudo fazia com enorme dedicação, mas também era muito compreensivo quando alguém falhava e as coisas não corriam exactamente como deviam. Podia até ficar bastante zangado num minuto mas, no minuto seguinte, já não era nada. 
Sempre apaixonado pela sua querida Leonor e pelos seus filhos e netos, vivia aquilo em que acreditava: uma família estável, unida e forte, e muitos irmãos, "é o melhor que se pode dar aos filhos". Os olhos brilhavam e sorriam quando falava deles e falava muitas vezes. 
Foi um visionário e antecipou muito do que hoje vivemos e do que teremos que enfrentar no futuro. Mesmo sabendo das dificuldades, era um optimista com uma enorme alegria de viver. Mas, tal como adorava viver, entregou-se tranquila e corajosamente à realidade de uma morte prematura anunciada.  
Embora sabendo que continuas connosco, sentimos e sentiremos muito a tua falta, Fernando.  
Agradeço muito o tanto que me deste. O exemplo, o testemunho, a força, o entusiasmo… Também tudo o que deste à APFN.  
Ana Cid Gonçalves

sexta-feira, 21 de março de 2014

O meu irmão Fernando


Não há muitas semanas que alguém me observou isto. Penso que foi a Margarida. Não tenho a certeza, mas acho que foi a Margarida Neto que me notou que não há um Dia do Irmão; e que tínhamos de fazer qualquer coisa para preencher esta lacuna.

É verdade: não há um Dia do Irmão. Há tantos dias de tanta coisa e não há um Dia do Irmão. Andei a ver na Internet – hoje, vê-se tudo na Internet. É verdade: não há mesmo um Dia do Irmão. Parece que, na Índia ou no Nepal, se celebra um 5 de Setembro ou coisa assim. Mas, mesmo essas, são notícias escassas e incertas. 

O meu Dia do Irmão é 31 de Maio, o dia em que o Fernando nasceu.  Já não resistiu para chegar ao 31 de Maio deste ano. Já não chegou aos 62 anos. Partiu com a mesma idade do nosso pai, aos 61 anos. Parece-nos cedo; parece-nos muito cedo. 

Quando eu nasci, o Fernando já cá estava. Sempre conheci a vida com o meu irmão. Foi o meu primeiro companheiro: um grande companheiro, um verdadeiro camarada.

Das frases que mais gostava de ouvir ao Fernando, no seu labor pelas famílias e pelas famílias numerosas em especial, aquela de que eu mais gosto e mais cito é esta: “Se queres ver uma criança feliz, dá-lhe um irmão. Se queres ver uma criança muito feliz, dá-lhe muitos irmãos.” Repito: “Se queres ver uma criança feliz, dá-lhe um irmão. Se queres ver uma criança muito feliz, dá-lhe muitos irmãos.”

É verdade. É exactamente assim. Eu só posso falar – e falo – da felicidade que é ter um irmão: uma felicidade indescritível, um tesouro de cumplicidade. Os meus filhos e, sobretudo, os meus sobrinhos, que são desse departamento, podem confirmar, e confirmam, a muita felicidade que é ter muitos irmãos, muitos irmãos.

Quando éramos crianças, tinha eu 10, ele já 12 anos de idade, Setembro de 1964, demos uma volta pela Europa com os nossos pais. De carro: um velho Taunus 17M, matrícula CI-79-16. Ao chegar a Saló, em Itália, nas margens do Lago Di Garda, entrando no hotel, o Touring Hotel, a recepcionista exclamou para os pais, apontando para nós: “Belli bambini! Uno como mamma, altro como papa!” A coisa deu risota, claro. E ficou como anedota repetida de brincadeiras familiares: “Uno como mamma, altro como papa!” Um seria mais parecido com a minha mãe, o Fernando; outro com o meu pai, eu próprio.

À medida que os anos foram passando, e sobretudo os quilos pesando e a convergência grisalha fazendo a maquilhagem a partir dos nossos 40 anos, fomo-nos achando cada vez mais parecidos. E eu sempre sorri muito ao ver os meus filhos ou os meus sobrinhos, diante de um gesto, de um à parte, de um comentário, de um riso, de uma piada, de um trejeito, de um repente qualquer, exclamarem a rir, apontando para nós: “Iguais! São iguais! Iguaizinhos…”

Isso é uma grande responsabilidade para mim. Oxalá essa parecença e semelhança possa atenuar a dor e o vazio da partida do Fernando, no coração e no olhar daqueles que lhe são mais próximos. Deus queira.

*
* *

Nos sessenta anos que vivemos em comum, este tempo, o último ano, foi, para a família, carregado de novas experiências e ensinamentos. Densos, muito densos.

Faz agora um ano e um mês que foi detectada a doença que lhe foi fatal. Foi uma terrível notícia – prognóstico ruim, mau, muito mau.

Este tempo teve dois tempos: um tempo de luta e muita esperança, sobretudo até ao Verão passado e depois ainda até Dezembro; e outro tempo de luta ainda, de esperança sempre, mas já marcado pela fatalidade, de Dezembro para cá, mais estreito desde Janeiro.

Lembro-me de ter acompanhado, não há muito, a última estrada  de uma grande amiga, a Maria José, que, nesses seus meses finais, me dizia: “Ó Zé, agora é que vamos ver se acreditamos mesmo naquilo em que andámos a dizer que acreditamos.” Ela mostrou não só acreditar, mas confiar: no Bom Pastor, de que nos deixou um testemunho formidável. O Fernando também.

Eu não sou de muitas palavras; e, nestas coisas, o Fernando também não. Entendíamo-nos sem palavras. Nestas coisas, que são difíceis e dolorosas, há como que uma “no talk rule” (uma regra de não falar) por que achamos fazer assim mais suaves estas travessias e viagens, afastando as más notícias.

De Dezembro para cá, desde antes do Natal, o caminho tornou-se mais duro e apertado. E, nas nossas conversas, com o Fernando e, às vezes, também com a Leonor, os véus foram caindo a pouco e pouco: do que sabíamos e desconfiávamos; ou temíamos. Foi-se passando do “sei que tu sabes” ou “tu sabes que eu sei”, para “tu sabes que eu sei que tu sabes” e, mais à frente, para “tu sabes que eu sei que tu sabes que eu sei”

A cada um destes véus que caía, era preciso, interiormente, fazer um luto – o outro, afinal, também sabia – e, ao mesmo tempo, recuperar o fôlego, manter e alimentar a esperança para seguir o caminho. Em frente. O Fernando foi exemplar nessa estrada de fé e testemunho. E a Leonor também. E os meus sobrinhos.

Na penúltima vez que almoçámos juntos, perto do seu trabalho, o Fernando contou-me como, aquando de uma das suas últimas crises, a meio de Fevereiro, morreu uma senhora na cama ao seu lado, no 6º andar do I.P.O., onde era assistido e socorrido nos sobressaltos que lhe aconteciam, cada vez mais frequentes. E, pela forma como me contou, com pormenor, as conversas da Leonor e dele com a senhora, e com a sua filha, como a senhora voltara a rezar, a sua breve agitação final e o momento sereno da partida, eu percebi que o Fernando, nesse almoço, desse dia, me estava a querer dizer que pedia a Deus que, na sua terrível doença, lhe desse uma morte assim: que, chegada a hora, o chamasse de uma vez só.

Acredito que Deus lhe correspondeu. Ainda na passada terça-feira, ao fim do dia, aqui em S. Domingos, rimos e planeámos coisas como se não houvesse fronteira. Na quarta-feira, teve o seu último Dia do Pai – merecia-o: Pai foi sempre o seu posto principal – e foi trabalhar, fora de casa. Na quinta-feira, ontem, o seu último dia, todos contam que esteve muito bem e activo de manhã, a trabalhar em casa; e, depois, à tarde, passou mal, voltou ao I.P.O., onde nos juntámos, e Deus chamou-o. Não sofreu muito. Graças a Deus.

Por curiosidade, ontem mesmo, quinta-feira, à noite, na Internet (hoje, vê-se tudo na Internet), fui ler o Salmo da missa do dia da partida do meu irmão. Reza assim, o Salmo do dia 20 de Março: 
«Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios,
nem se detém no caminho dos pecadores,
antes põe o seu enlevo na lei do Senhor
e nela medita dia e noite.» 
Pelo Fernando, não tenho dúvida alguma. Estava preparado. Assim Deus o receba na Sua graça – e o Fernando possa já estar na companhia da nossa mãe e do nosso pai, que também partiram cedo.

*
* *

O Fernando foi um grande homem. O melhor irmão que eu tive – não houve igual. Foi bom marido e um grande pai e avô. Um tio querido dos meus filhos. Um óptimo companheiro de toda a gente, um camaradão. Um bom carácter, um homem simples. Um aluno brilhante e um profissional distinto. Um excelente professor da Escola Naval. Um militar dedicado e marinheiro de eleição, a sua grande vocação. Nas curvas, e contracurvas, e percalços da vida, agradeço que o Fernando  possa ter morrido de novo ao serviço do mar, embora agora em capacidade civil, regressando ao seu território, no Fórum que dirigia – o Fernando era verdadeiramente um homem do mar. Foi o “penico” do seu curso de Marinha (para quem não saiba, “penico” é o primeiro do curso) e o primeiro também no exigente M.I.T., em Boston, Massachusetts. Foi um grande engenheiro – desde garoto que o conheci como um “engenhocas” de grande capacidade inventiva e de solução de problemas. Fizemos inesquecíveis brincadeiras de engenharia. E era ainda um mais competente e brilhante profissional.

Foi um lutador, um lutador incansável. Uma fonte inesgotável de alegria, de optimismo e de confiança. Um homem de excepcionais capacidades cívicas, que pôs ao serviço da sociedade e do país, com  grande generosidade e capacidade de entrega.

Ontem à noite também, na Internet (hoje, vê-se tudo na Internet), li este título: «Morreu o “pai” das Famílias Numerosas» – era o título da notícia da Rádio Renascença online. É verdade. Todos sabemos a obra ímpar que imaginou e concretizou, concebendo, lançando e fortalecendo a APFN em Portugal. E eu pude ver (e ter o privilégio de, às vezes, acompanhar) o trabalho extraordinário que desenvolveu e edificou por toda a Europa, na ELFAC – European Large Families Confederation, e a forma como era tão estimado e tão admirado em muitos países europeus.

Fosse na temática familiar, na causa da vida, na militância católica – De Colores! –, na visão do Mar como grande desígnio do país, ou noutras causas calorosas que abraçou na sua vida, o Fernando povoou o terreno de sinais: fez muitos amigos, incontáveis amigos, e deixou muitas sementes, inumeráveis sementes. Deixou muito por fazer. São coisas que temos de continuar.

Ainda bem que é assim. Ainda bem que nos deixou muito para fazer. É sempre bom sabermos o que temos para fazer; e para onde. 

Graças a Deus.


José Ribeiro e Castro
S. Domingos de Rana, sexta-feira, 21 de Março de 2014