quarta-feira, 12 de setembro de 2018

O Palácio do Vento e o Palácio de S. Bento

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, saído ontem no jornal i.
No Palácio do Vento, em Jaipur, a concubinagem era às claras e permitida pela lei que o próprio marajá decretava. Em S. Bento, a regra tem sido escondê-la ou mostrá-la como acasalamento sólido e estável, mas nunca selando qualquer contrato de vida conjunta.
O Palácio do Vento e o Palácio de S. Bento  
A fachada rosa do Palácio do Vento, em Jaipur, na Índia, que há uns anos visitei, permite adivinhar um edifício grandioso. Mas não é assim. Trata-se apenas da fachada de cinco andares de varandas rendilhadas de um palácio inexistente, mas que acaba por ser um extraordinário monumento.

As concubinas do marajá de Jaipur andavam desgostosas por estarem confinadas ao palácio real. Não vendo ninguém a não ser o marajá e os eunucos, e só conversando entre elas, invadiu-as uma grande monotonia. Temendo falta de motivação das damas para as suas nem sempre fáceis tarefas, que a prática do Kama Sutra continha exigências de elevado nível qualitativo, e procurando preservar a sua qualidade de vida, o marajá resolveu oferecer-lhes uma varanda de onde pudessem recriar a vista com os passantes e o movimento da cidade. A fachada constitui um dos símbolos de Jaipur.

Lembrei-me que, rimando com Palácio do Vento, temos cá o Palácio de S. Bento, inicialmente um virtuoso convento beneditino e, depois, um não menos puro Palácio das Cortes, virtude certamente aumentada com o palacete construído nas adjacências traseiras. No entanto, não estou totalmente seguro de que a semelhança entre os dois palácios se fique pela rima e que o Palácio de S. Bento nunca tenha seguido a vocação do Palácio do Vento, metaforicamente falando, claro está.

É verdade que com regras diferentes: no Palácio do Vento, a concubinagem era às claras e permitida pela lei que o próprio marajá decretava, enquanto em S. Bento, ainda metaforicamente falando, a regra tem sido escondê-la. Ou, em certas ocasiões, mostrá-la como acasalamento sólido e estável, mas nunca selando qualquer contrato de vida conjunta, já que diferenças mal assumidas entre as partes o poderiam reverter a todo o momento, tornando mais cara a separação.

Concubinagem política existe quando, sobrelevando-se ao bem comum, interesses pessoais, partidários ou políticos, económicos e corporativos se cruzam para promover o poder dos marajás de ocasião e daí retirar as ajustadas contrapartidas pessoais e políticas. A outorga de contratos de escandalosa rentabilidade e nulo risco ou a reserva privilegiada de lugar à mesa do Orçamento a quem, pessoas ou corporações, possa favorecer a renovação do poder, em troca ilegítima de serviços a custo do cidadão, é concubinagem pura e dura.

E se no palácio real de Jaipur havia geringonças de apoio aos exercícios mais acrobáticos do Kama Sutra, também por cá elas vão aparecendo para os exercícios menos democráticos do poder. Mas enquanto lá as peças se ajustavam e as geringonças ainda podem ser vistas, na geringonça caseira, não figurando o acasalamento das peças em qualquer manual conjunto, a fragilidade da quadripeça aparece tanto mais evidente quanto cada qual se apressa a reivindicar a importância decisiva da sua contribuição e a maior performance pessoal entre os parceiros – no fim, mera traficância de serviços entre si, mascarada de benefício público.

Assim, é na proclamação ideológica que o acasalamento se sustenta: a saúde pública, a escola pública, o transporte público ou a reposição de direitos dos funcionários tornam-se slogans para abafar o ruído do avolumar das filas de espera nos hospitais, das dificuldades do ensino e transportes, da falha clamorosa dos serviços públicos, com o cidadão a pagar no privado o serviço público que lhe falta, mesmo com a maior carga fiscal de sempre.

A fachada monumental do Palácio do Vento escondia a dramática realidade de concubinas aprisionadas, aparentando para o exterior invejáveis condições de bem-estar.

A fachada do Palácio de S. Bento esconde muitas vezes uma democracia sem qualidade, em que a política se tornou um bem transacionável ao sabor de interesses partidários ou de corporações amigas.

E se, no Palácio do Vento, os eunucos eram úteis para pôr fim a concubinais rivalidades, no Palácio de S. Bento também não faltam, para justificar políticas de todo indefensáveis ou divulgá-las como inestimável serviço aos cidadãos.

Afinal, não será apenas a rima que une o Palácio do Vento e o Palácio de S. Bento. Caricatura? Mas não é a caricatura, acentuando traços, que tantas vezes melhor traduz a realidade?

A Sedes e a Associação Por Uma Democracia de Qualidade realizam hoje uma conferência sobre a reforma do sistema eleitoral. Oxalá que seja mais um passo para acabar com tal rima e adocicar a caricatura. 

António PINHO CARDÃO
Economista e gestor
Subscritor do Manifesto por Uma Democracia de Qualidade

NOTA: artigo publicado no jornal i


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