Uma das fotos da reportagem do jornal O Século, que narrou a nossa aventura. Nós somos os dois de pé, à esquerda: o meu irmão atrás, eu à frente. |
Desde que morreste, há coisa de cinco anos, só posso falar contigo por escritos como este, hoje, no Dia dos Irmãos, que é 31 de Maio. Ou também numa ou noutra oração para que estejas bem e, uma ou outra vez, quando os outros, olhando-me, noite entrada, são capazes de pensar que estou a falar sozinho. É uma chatice quando alguém parte cedo de mais. 61 anos é ainda demasiado cedo, quando tinhas tanto a dar e muita energia para gastar.
Há dias em Odemira, encontrei uma coisa a que vais achar graça. No escritório, ficou aquela secretária enorme do avô e respectiva estante. Remexendo numa gaveta, onde estão lápis, esferográficas, clips, borrachas, lacre, envelopes, encontrei um recorte de jornal muito dobradinho. Abri-o. É de O Século, de 21/7/1970, como está anotado pela letra do avô. É uma peça a três colunas, com quatro fotografias grandes. Devia ocupar uma meia página do jornal. O título, largo, é: “Salvos com dificuldade nas águas revoltas do Tejo quatro jovens cujo barco se voltou ao largo de Paço de Arcos”.
É isso mesmo: conta a nossa aventura que podia ter acabado muito mal. A reportagem começa assim: “A meio da tarde de ontem registou-se, ao largo da doca de Paço de Arcos, um acidente com uma pequena embarcação de recreio, no qual só por sorte e devido a serem bons nadadores, não foram tragados pelo mar quatro jovens (três rapazes e uma rapariga).” E lá diz quem éramos: “Seguia como patrão o cadete Fernando Augusto Castro, de 18 anos, acompanhado por seu irmão, José Duarte Castro, de 16, também cadete, e por dois amigos, Leonor Ramos, igualmente de 16, e pelo irmão desta, Salvador Sequeira, de 15, ambos estudantes.” O jornalista, vê lá tu, fez-me também cadete da Armada, certamente por ter imaginado a destreza com que nos safámos do naufrágio. A bordo do pequeno veleiro, classe “vouga”, do CNOCA, o Clube Náutico dos Oficiais e Cadetes da Armada, havia dois heroicos marinheiros, sábios navegadores: Fernando Augusto e José Duarte.
É impossível esquecer esse 20 de Julho, dia de anos do pai (fazia 48), que estava com a mãe em Lourenço Marques, numa conferência de cidades – nem sonharam a surpresa que lhes preparámos, se tivesse dado para o torto. O combinado era reunirmo-nos todos em Luanda – eu a 22, tu a 23.
A navegação do Alfeite para Santo Amaro tinha sido uma maravilha. Tu ao leme e na retranca com a vela grande e eu à proa no estai, parecíamos Vasco da Gama e seu imediato. Mas, no regresso, aquela manobra ousada de, com nortada muito forte e mar cheio de ondulação, irmos competir para o meio da embocadura do Tejo com outro veleiro, que fazia à vontade três do nosso “vouga”, revelou-se fatal. Conta o jornalista: “Tudo parecia correr da melhor maneira, quando, já no regresso à capital, a pequena embarcação, que navegava a cerca de mil metros da praia de Paço de Arcos, foi apanhada por violenta nortada, que, entretanto, se levantou naquela zona, e violento cachão e depois por uma volta do mar.” Segue a história trágico-marítima, focada no perigo extremo em que logo ficou o Salvador: “A situação agravou-se, tanto mais que a corrente naquele momento era também muito forte, dando origem a que o barco se voltasse, tendo caído ao mar todos os ocupantes, com excepção do Salvador, que ficou dentro da caixa do pequeno beliche da embarcação. A muito custo, o rapaz lançou-se à água e, a nado, conseguiu meios de safar-se pelos próprios meios da crítica situação, aproveitando a bolsa de ar formada pelo barco. Após certa luta com o mar, muito agitado, foi ao encontro dos companheiros que, nadando também com grande energia, e embora contra a corrente, conseguiram, ao fim de longo esforço, alcançar de novo a embarcação, para a qual se conseguiram, finalmente, içar.”
O quadro estava preto. Não conseguíamos endireitar a embarcação para ficarmos mais seguros. Manobrando com o nosso peso sobre o patilhão, duas vezes conseguimos pô-la direita; mas, com o vento e o peso da água que inundara o interior, logo se virava com o mastro para baixo. Estávamos já a mais de uma milha da costa e o dia a acabar. A corrente empurrava para fora. A esperança estava em alguém que nos visse na marginal e aos sinais que fazíamos. A ironia era estarmos em frente do Instituto de Socorro a Náufragos em Paço d’Arcos.
E foi a ironia que nos salvou: um passante viu-nos ainda a navegar; foi chamar a mulher para ver também o atrevimento do veleiro pequeno que voava atrás do veleiro grande; quando a mulher chega à amurada, só vê o veleiro grande e comenta, a rir-se, que o marido estava a ter visões; este quis provar que tinha razão, continuou de olhar fixo na área onde nos vira a navegar e viu, por duas vezes, o “vouga” endireitar-se e virar-se outra vez. Foi chamar mais gente. E todos viram os nossos sinais. Veio, então, o socorro do ISN. É o que conta a notícia: “Entretanto, os sinais foram vistos de terra por pessoas que imediatamente participaram o caso ao Instituto de Socorros a Náufragos, de Paço de Arcos, tendo avançado para o local o salva-vidas Almirante Freixo, sob o comando do patrão sr. Domingos Camarão e conduzido pelo motorista sr. José Augusto Canga, os quais acabaram por recolher os quatro jovens e rebocaram para a doca de Paço de Arcos a embarcação. O salvamento só foi possível devido à rápida intervenção do salva-vidas Almirante Freixo, pois com a fúria do mar, que aumentava de momento a momento, os quatro jovens já sem forças para se debaterem teriam sido arrastados pela forte corrente.”
A narrativa acaba com testemunhos mais ou menos abananados, depois de o jornalista elogiar as competências dos irmãos marinheiros: “A experiência dos dois cadetes, rapazes já com boas noções náuticas e conhecedores do mar, conseguiu acalmar os dois outros jovens que viveram momentos de profunda aflição na ânsia de se salvarem.” A mim, ficou-me a bastar ser arvorado em cadete pelo jornal. Mas, a ti, que o eras de verdade, sempre me pareceu, quando concluíste a Escola Naval, que não bastava seres o primeiro do teu curso, o “penico” do curso Afonso Cerqueira (o AC), mas cumpria que, em memória do “vouga” do CNOCA, te tivessem entregue uma distinção por honra, bravura e glória. Ficaram a dever-te esta.
Fizemos muitas aventuras. Nenhuma foi tão perigosa quanto este passeio no rio se tornou. Mas a pior aventura e a mais estúpida de todas foi termos começado a fumar. Éramos muito novos e o cigarro era um modo de afirmação. Foi esta aventura que te levou; e, embora eu tenha já deixado de fumar vai quase para 20 anos, a verdade é que não sei o mal que deixou e ainda fará.
A seguir ao naufrágio, juntámo-nos aos pais em Angola, como previsto, para um mês em Luanda com os tios e os primos. Olha: um programa de irmãos em diferentes tabuleiros. Marcou-me tanto essa estadia em Angola… Lembro-a muitas vezes como o tempo da minha vida em que, tendo muitas perguntas, recebi todas as respostas. De Angola. Há ali um feitiço qualquer. Não sei se se passou o mesmo contigo. Grande terra, gente fantástica. E ir aos sítios que o pai e o tio tinham contado da sua infância e juventude em Luanda e observar se eram iguais, ou não, ao que tínhamos imaginado – foi como reler uma novela ao vivo. Verdadeiramente único.
Há poucos dias, a Maia mandou-nos um vídeo dos meus netos de Macau, que já não te conheceram. Têm cinco e quatro anos. Fazem-me lembrar muito de nós os dois, quando os vejo a brincar ou a conversar. São dois rapazes, com um ano e picos de diferença – como nós. O vídeo mostra o mais velho a montar um aparelho luminoso, que vinha num estojo de “pequeno cientista”. A cena da montagem é deliciosa, com o mais novo, por trás ou ao lado, a seguir tudo com absoluta atenção e, às vezes, entrando a ajudar. Conseguiram montar a engenhoca, para orgulho da mãe que nos enviou o vídeo.
Daqui por uns anos, quando evoluírem para a química ou a física avançada, como nós fizemos com aquelas caixas magníficas do Chemical Engineering e material improvisado na drogaria, terei curiosidade em ver se a mãe terá o mesmo desvelo com as experiências químicas como as que fazíamos na casa de banho (e levavam a nossa mãe a um ataque de nervos, embora deixássemos tudo em ordem, com excepção daquele espelho que teve de ser substituído) ou investigações eléctricas, que rebentavam frequentemente o quadro. A verdade é que ficámos peritos em fusíveis e a electricidade não tem segredos para nós. Mas, hoje, com os disjuntores, imagino que, acima de certa carga, possa ser mais complicado.
Continuo a cruzar-me com pessoas que, não só na Marinha, se cruzaram contigo e me falam com saudade de ti. Não há dúvida, Fernando: deixaste uma boa pegada ecológica. Fizeste bom ambiente por onde passaste.
E os meus filhos, quando falamos de ti, dizem-me sempre que somos iguais. Os teus filhos também dizem isso. Eu não acho, mas talvez seja assim, à medida que fomos caminhando para velhos. Os nossos filhos o mais citam, como prova, são as nossas gargalhadas, de que se lembram quando estávamos juntos. Esta parte é que é a parte chata: não se consegue gargalhar sozinho.
No outro dia, dei-me conta de que, agora, sou mais velho que tu. Fui sempre o mais novo e, agora, sou mais velho. Tu paraste o teu contador e o meu continua a contar. Já vou com um pouco mais de três anos do que aqueles que fizeste. E tinha um ano e meio para menos. Esta parte também não gosto. Não me dá jeito nenhum ser mais velho. Como estava é que estava bem. E podíamos gargalhar os dois.
Olha: não sei se poderás responder-me e não estou a contar com isso. Nas nossas conversas agora, falo eu. E está bem assim. Mas, se me responderes, não quero que me contes como é onde tu estás. Se tiver a sorte de, um dia, ir ter contigo onde tu estás, eu quero ter o prazer de o descobrir e conhecer por mim próprio. Depois, poderás mostrar-me algum recanto de que gostes mais, como o pai e o tio fizeram connosco em Luanda naquele 1970 do naufrágio. Não contes agora.
Olha pelos teus filhos e netos. E, já agora, olha também pelos meus filhos e netos. Obrigado pelo tempo que passámos juntos. Obrigado por tudo o que crescemos.
José Ribeiro e Castro