Sendo a Assembleia da República, diz a Constituição, "a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses", os cidadãos devem conhecer a forma como a Assembleia aceitará tratar-se.
Vem isto a propósito da eliminação de feriados, preparada à sorrelfa no bojo da revisão do Código do Trabalho. Tenho-me batido, como é sabido, pelo 1.º de Dezembro, o feriado dos feriados, que celebra o valor fundamental da independência de Portugal. E, no meio de um processo que alveja dois feriados civis e dois religiosos, deparei, na proposta de lei enviada à Assembleia, com uma norma assaz curiosa: Artigo 9.º (Feriados religiosos) - "A eliminação dos feriados de Corpo de Deus e de 15 de Agosto, resultante da alteração efectuada pela presente lei ao n.º 1 do artigo 234.º do Código do Trabalho, apenas produz efeitos depois de cumpridos os mecanismos previstos na Concordata celebrada, em 18 de Maio de 2004, entre a República Portuguesa e a Santa Sé e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 80/2004, de 16 de Novembro."
O que quer isto dizer? Quer dizer que foi proposto aos deputados decretarem já a eliminação de dois feriados religiosos (o Corpo de Deus e a Assunção de Nossa Senhora), mas sem que essa decisão seja efectiva. É uma lei sob condição suspensiva: quanto aos feriados religiosos, os senhores deputados decidem, mas fica tudo em suspenso até que se conclua a pertinente revisão (ou ajustamento) da Concordata.
Nunca vi tal coisa. Já em Março tomei posição: alertei a comissão parlamentar competente para coisa tão bizarra e obnóxia. Quer-se talvez contornar uma inconstitucionalidade: se os feriados religiosos estão fixados por um tratado em vigor (a Concordata e o seu artigo 30.º), não pode uma lei vir dispor diversamente contra o ali directamente estatuído, enquanto a Concordata não estiver revista nesse ponto. A habilidade da condição suspensiva não passa disso mesmo: uma habilidade; e uma habilidade, creio eu, inválida e inconsequente.
Mas deixemos de lado a discussão jurídica, que não sabemos onde conduziria e nem é o mais relevante. É que, mesmo não havendo inconstitucionalidade, a norma representaria vexame para a Assembleia da República e indignidade para os deputados.
Por que consta da proposta? Porque o Governo não concluiu o diálogo com o Vaticano e não se sabe o que a Santa Sé aceitará, ou não. Mas, se fosse o Governo a legislar por decreto-lei, faria uma coisa destas? É evidente que não: concluiria normalmente a negociação diplomática com a Santa Sé e, depois de esta encerrada, decidiria, então, em conformidade com o acordado.
A esperteza, algo sonsa, da condição suspensiva inscrita na lei traduz, objectivamente, menos respeito pela Assembleia da República - que é, importa lembrá-lo, a sede por excelência do Poder legislativo. Os deputados são olhados como funcionários manga-de-alpaca, tabeliães de turno, devidamente adestrados para irem adiantando o servicinho sem saberem bem o que estejam a decidir.
As últimas semanas adensaram, aliás, dúvidas e perplexidades sobre tudo isto. Primeiro, a especulação sobre se haverá acordo com a Igreja. Segundo, a notícia de que não se eliminará o feriado de Assunção de Nossa Senhora (15 de Agosto), mas Todos-os-Santos (1 de Novembro), embora a proposta de lei mantenha a previsão ultrapassada. Terceiro, a informação de que, precatando-se- e muito bem - perante um processo político sem sombra de consenso e solidez, o Vaticano aceitaria unicamente uma alteração transitória, limitada ao período de crise, na celebração de algumas festas religiosas, sem rever materialmente a Concordata e o artigo 30.º.
Neste quadro, como ficaria a anunciada paridade na decisão quanto a feriados civis e religiosos? Há paridade eliminando feriados civis, mas, afinal, nada decidindo (ou sequer sabendo ao certo) quanto aos feriados religiosos? Não, não haveria paridade.
E faz algum sentido uma lei sob condição suspensiva? Não, não faz. Nenhum sentido.
Por tudo isso, o adequado seria deixar a questão dos feriados para tempo próximo, vindo a tratá-la autonomamente com seriedade quando todo o quadro decisório estiver reunido e decisões sólidas, bem informadas, puderem ser tomadas. Isto, é claro, se a Assembleia e a maioria quiserem dar-se ao respeito.
Faltam poucos dias para sabermos se o(a)s deputado(a)s são sede efectiva do Poder legislativo ou aceitam ajeitar-se ao papel de agentes do carimbo.
José Ribeiro e Castro
[artigo publicado na edição de 1-mai-2012 do jornal PÚBLICO]
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