Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, saído hoje no jornal i.
O que o referendo inglês provou é que é possível entrar e sair. Que a entrada deixou de ser irrevogável e que a saída é uma possibilidade a encarar.
Digressões à volta do Brexit e das sanções
Desde que, no passado dia 23 de junho, o Reino Unido (RU), para imensa surpresa dos próprios e do resto da Europa, votou pela saída da União Europeia, sentiu-se um movimento de choque como há muito não havia em matéria de integração europeia.
Nos anos 80, sobretudo na segunda metade, proliferaram cursos de “estudos europeus”, promovidos pelas nossas melhores universidades, em que a cadeira de “integração europeia” avultava.
Hoje em dia faria mais sentido introduzir também uma cadeira de “desintegração europeia”.
Não só o RU declarou querer sair como é a primeira vez que alguém quer sair. Até aqui tínhamos o exemplo suíço que, por referendo, em 92, declarou não querer entrar e nem sequer querer aderir a esse espaço vestibular que é o Espaço Económico Europeu (EEE). No resto da Europa, o sentimento prevalecente era o de que toda a gente queria aderir à União Europeia e que convinha pôr os postulantes em decorosa espera, suster--lhes a sofreguidão.
Já não é o caso. O Espaço Económico Europeu, de que fazem parte a Noruega e o Liechtenstein, deixou de ser um vestíbulo de acesso para ser um espaço de permanência. Das várias gradações que do coração da Europa (euro e Schengen) até aos tratados de associação, passando por aqueles que estão em Schengen mas não na União (Suíça), que estão na União mas não no euro (Dinamarca e Inglaterra) ou que, não tendo o opting–out que os ingleses e dinamarqueses negociaram, mantêm a obrigação teórica de aderir ao euro, e ainda por aqueles muitos que têm tratados de associação, de fixação de paridade de moedas, de acesso privilegiado ao mercado único, tendo de aceitar as suas regras e jurisprudência, a Europa é, de facto um verdadeiro arco-íris de possibilidades.
O que o referendo inglês provou é que é possível entrar e sair. Que a entrada deixou de ser irrevogável e que a saída é uma possibilidade a encarar.
O mundo à nossa volta muda e muda de acordo com os seus ritmos próprios, e não de acordo com as palavras de lei fixadas nos complexos tratados europeus.
O primeiro grande fator dessa mudança chama-se globalização, aquele movimento que trouxe os mercados para a vida quotidiana dos cidadãos, tirou da miséria milhares de milhões de seres humanos, criou um sistema financeiro global e pôs em confronto os trabalhadores europeus e americanos com os do Bangladesh e da Índia.
Tirando as diferenças de produtividade, esses trabalhadores do antigo Terceiro Mundo, que também têm direito à sua parcela de modesta prosperidade, são muito mais baratos do que os excelentes trabalhadores do nosso mundo ocidental; em muitos casos, fazem a mesma coisa…
Este facto tem gerado no Ocidente uma frustração progressiva com a globalização, que nos rouba postos de trabalho e crescimento económico em proveito de esses outros países. É esse o fator decisivo na sensibilidade extrema que as nossas sociedades estão a desenvolver. Vários politólogos começam a falar nos “angry voters”, os eleitores irritados, que votam em partidos que eram extremistas há uns anos e agora são quase do main-stream, os Trumps e LePens, os Orban, os Dutertes…
Este não é o ambiente propício para discussões serenas, princípios intransigentes ou dura lex, sed lex. Este não é o ambiente apropriado para impor sanções a ninguém. Menos ainda quando a União Europeia declara o seu amor ao princípio das sanções (as regras são para cumprir), mas só decide aplicá-las a quem pensa que não pode reagir, ou seja, Portugal e Espanha, mas não a França.
As sanções estão previstas nos tratados desde o Tratado de Maastricht, de 1992. Certo. Bem me bati contra o princípio na altura, sem sucesso.
Agora, parece-me que não é o princípio que está em causa: em dúzias de vezes que o teto orçamental dos 3% foi ultrapassado, ninguém falou em sanções. Mesmo agora, sendo o défice francês maior do que o nosso (!), ninguém fala em impor sanções à França. A Comissão invocou até uma causa de exclusão da responsabilidade francesa: os franceses tinham tido um “enorme” acréscimo de despesa com segurança pública, por causa dos atentados…
A impressão que dá é que um país – a Alemanha – decidiu subir a parada para todos os outros, martelar a mesa dos conselhos com o seu próprio e crescente poder, assumir o mando informal da Europa, e quem não aguentar a passada sai da formatura, como naqueles filmes sobre o treino dos serviços especiais em que os mais fracos vão sendo sucessivamente eliminados com exigências crescentes.
Digo eu, provavelmente muito minoritário, que neste cenário convém olhar com maior atenção para o exemplo britânico. Não queremos sair do euro, muito menos da “Europa”, mas se o cenário é de uma humilhação crescente perante a exposição das nossas fragilidades, que só podem acentuar-se, então convém pensar em alternativas realistas e nossas.
É bom saber que há mais vida para além da União, que há a EFTA (AECL), que há o Espaço Económico Europeu, que talvez termos a nossa própria moeda possa ser um fator de competitividade e realismo. Talvez. É que convém mesmo pensar nisto, sopesar os prós e os contras.
Para já, para já, não ficava mal ao governo português, se quer ser menos lambe-botas que o anterior, chamar a atenção nas instâncias próprias, a começar pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, para que ainda não nos habituámos a viver num sistema orwelliano em que todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros.
E, já agora, que cada vez que o irritante ministro das Finanças da Holanda ou o DDT alemão abrem a boca sobre Portugal, os juros da nossa dívida sobem e isso custa-nos dinheiro!
E mil parabéns a Portugal pela vitória da nossa seleção no Euro 2016.
João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.
1 comentário:
- ….no passado dia 23 de junho, o Reino Unido (RU), para imensa surpresa dos próprios e do resto da Europa,…
- …“desintegração europeia”.
- …a Europa é, de facto um verdadeiro arco-íris de possibilidades.
- …., aquele movimento que trouxe os mercados para a vida quotidiana dos cidadãos,…
- ….os Trumps e LePens, os Orban, os Dutertes…
- Este não é o ambiente apropriado para impor sanções a ninguém.
- ….sendo o défice francês maior do que o nosso (!), ninguém fala em impor sanções à França.
- ….e quem não aguentar a passada sai da formatura…
- E, já agora, que cada vez que o irritante ministro das Finanças da Holanda ou o DDT alemão abrem a boca sobre Portugal, os juros da nossa dívida sobem e isso custa-nos dinheiro!
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