Um dos piores problemas da nossa democracia é legislar pela calada: fazer leis sem que ninguém se dê conta disso. Numa sociedade democrática e aberta, é grave violação política e condenável erro moral. E, num parlamento democrático, dir-se-ia impossível: como seria possível que, com tantos deputados, vários partidos, maioria e oposição, numerosas comissões, reuniões disto e daquilo, assessores e adjuntos, imprensa, rádio e televisão, publicações na
internet, possam adotar-se normas sem que ninguém se dê conta delas? Não pode!
Pois a verdade é que pode… Às vezes, ferindo gravemente interesses e direitos dos cidadãos. A extensão e complexidade das leis, a sobrecarga e fragmentação dos trabalhos parlamentares (com cada um cuidando do seu quintal), a quebra da democracia interna, a falta de participação e a destruição do trabalho colegial dos grupos parlamentares facilitam o manejo e a obscuridade, com duas consequências muito negativas: ou a possibilidade de manipulação deliberada, ou a maior facilidade do erro grosseiro. É possível fazer às escondidas com toda a gente a olhar; ou não ver aquilo para que se olha.
O caso recente mais conhecido contei-o no prefácio do livro
“Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade”. Correspondeu, em 2014, ao que Bagão Félix denunciou na televisão como o
“cúmulo da estupidez legislativa”: a proibição imposta a reformados e aposentados de trabalharem à borla, sob ameaça de sanções pesadas. Essa anormalidade legislativa ainda levou tempo a ser corrigida, mas o mais absurdo são as circunstâncias em que tudo aconteceu, aparentemente sem que ninguém se desse conta, após longos trabalhos parlamentares. Uma nódoa.
Estava escrito que não seria caso único. O meu amigo Zé Augusto vive, angustiado, o segundo. Querem-no (e à família) forçar a pagar mais 2 mil euros de IRS, quando teria 500 a receber. Tudo por causa de outra trapalhada legislativa daquele calibre, também em 2014. Outra nódoa.
O Zé Augusto é casado e tem filhos. Têm rendimentos médios. Apresentou sempre a declaração conjunta de IRS com a mulher – e diz-me, irritado, que nem sabe fazer doutra maneira, nem percebe como é que puderam forçá-lo
“a separar-me”. Quando, no Verão, me ligou a protestar, ripostei que tinha sido enganado, pois podia fazer a declaração conjunta. De facto, em 2014, o governo fizera uma reforma do IRS em que apontava para a tributação separada dos cônjuges, mas mantinha a possibilidade da tributação conjunta. Eu lembrava-me bem disso, pois não compreendia como é que “o partido do contribuinte e da família” ia romper com a tributação conjunta e impor a tributação individual, desprezando a família e penalizando o contribuinte. Recordo-me que, na altura, me responderam haver uns estudos segundo os quais seria assim mais benéfico para os contribuintes e, em qualquer caso, mantinha-se a possibilidade de optar pela tributação conjunta. Não gostei muito, mas, havendo liberdade, menos mal: cada qual faria como achasse melhor. E li ao meu amigo o artigo da nova lei. Afinal, eu é que fora enganado.
O Zé Augusto respondeu-me que isso era se tivesse entregue a declaração até 31 de Maio. Explicou-me que estava a mudar de casa, tivera dificuldade em organizar a papelada com a mulher, e quando, pela primeira vez com atraso, tentou entregar a declaração, já não pôde. Comunicaram-lhe que, agora, tinham de ser declarações separadas, o que lhe provocou mais atrasos, pois tiveram de andar a desagregar rendimentos e despesas. Só em Julho conseguiu entregar os papéis. E em Agosto, além da coima (contra a qual não protestava), levou o tiro: fora notificado para pagar um pouco mais de 2 mil euros de IRS, quando
“o normal é receber estornos de 400 ou 500 euros”.
De facto, a mesma lei de 2014 introduzira uma habilidade manhosa para a qual ninguém alertou ninguém e que não foi objeto de debate parlamentar. Não no artigo principal, que define a incidência pessoal do imposto, mas noutra norma muito mais à frente entrou o texto criptado que continha o diabo:
“A opção só é considerada se exercida dentro dos prazos previstos no artigo seguinte, sendo válida apenas para o ano em questão.”
O Zé Augusto ficou fora de si. E assim tem andado. Lamentou-se-me de andar nas manifestações de apoio à PàF, no início da legislatura –
“Tu e os teus amigos nunca mais me apanham!”
2 comentários:
Ha uns anos atrás, tinha eu uma proposta para dar 900h de formação para dar, fui as finanças para me colectar. Atendeu-me o mancebo da reparticao. Perguntou-me quanto rstimava ganhar aquele ano, ao que respondi, certo são as 900h x x€, faça aí a conta ssf. Posso, e espero, ganhar mais. Mas diga um n°!diz-me ele. Perguntei-lhe 500x que diferenca fazia e como iria adivinhar o futuro a que nunca me respondeu. Dizia nao faz diferenca é so uma estimativa. No meio daquela confusão e daquele paleio, fui na conversa dele. O "homem" enganou-me, e isso custou-me milhares de euros lara a seguranca social, sem apelo nem recurso... ja tentei perguntar a funcionários, ler a lei e interpreta-la, etc. Mas a minha interpretação era errada -diziam. Nao sei ler? Sou burro? Podem explicar? Cala-te e paga, se nao queres ir preso... Claro que me fartei de escrever e perguntar...
Experimentem, caso sejam cidadãos comuns, confrontar um órgão publico. Esta é a minha sugestao.
Ps levem a propria vaselina. Correm o risco de ter areia aquela que vos vão passar...
Excelente, Dr Ribeiro e Castro!
Maria do Carmo Neves-CDS-Soure
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