terça-feira, 22 de agosto de 2017

Autárquicas: democracia manipulada

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Eduardo Baptista Correia, saído na quarta-feira passada no jornal i.
O processo eleitoral coloca uma série de entraves à participação de grupos de cidadãos genuinamente interessados na política e no desenvolvimento da sua região. Inversamente, são frequentes os casos de candidatos fictícios.


Autárquicas: democracia manipulada
No modelo e sistema político em que vivemos, a política e as respectivas eleições autárquicas deveriam constituir o exemplo mais sólido de democracia participativa. É no poder autárquico que reside a maior atractividade à participação dos cidadãos na política e no exercício de direitos e obrigações de cidadania. É no poder e intervenção local que a política de proximidade se faz sentir e se constrói parte muito significativa do quotidiano daqueles que vivem, trabalham ou visitam determinada região.

Apesar desta lógica democrática, a tarefa daqueles que genuinamente se propõem fazê-lo em independência dos partidos políticos é extremamente complicada. A realidade mostra que o processo de recolha de assinaturas é difícil e moroso. Pois é... Cada candidatura independente necessita recolher na respectiva região assinaturas, cujo número varia em função da dimensão populacional, para a câmara municipal, assembleia municipal e juntas de freguesia a que se candidata, enquanto os partidos políticos estão automaticamente aptos a apresentarem as listas de candidatos para qualquer órgão autárquico a que se candidatem sem necessidade de validação popular. Também neste contexto é interessante perceber que o número de assinaturas necessárias recolher por estas candidaturas locais e independentes é, em vários casos, superior ao necessário recolher para a constituição de um partido político.

À difícil tarefa de recolha de assinaturas, e apesar dos manuais e indicações da CNE serem relativamente claros quanto ao processo de apresentação de uma candidatura independente, segue-se a aprovação ou rejeição por parte de um juiz que interpreta a lei e o respectivo processo de acordo com a sua própria convicção ou vontade. São públicos os despachos sobre esta matéria com argumentações totalmente opostas, inclusive por parte do mesmo juiz, levando a que em última instância a interpretação de um juiz possa invalidar o acesso a um acto eleitoral, prejudicando de forma directa a essência da democracia. Apesar da lei, o processo e a validação constituírem fortes desincentivos a lógica de uma democracia ocidental deveria ter por base o estímulo às candidaturas independentes de grupos de cidadãos genuinamente interessados em participar de forma activa na política e desenvolvimento da sua região.

Ao contrário do que é imposto aos independentes, o rigor aplicado à constituição e análise das candidaturas partidárias não se aplica. Pelo contrário; são recorrentes as manobras de continuada intrujice de candidatos fictícios. Encontramos ao longo de décadas um conjunto de candidatos que, apesar de serem eleitos, nunca exerceram os respectivos mandatos, tendo apenas servido de figura de cartaz, embusteando conscientemente os eleitores. Há também a classe dos que exercem os cargos de forma temporária, constituindo trampolim para outros membros menos conhecidos das listas. São vários os exemplos, mas gostaria de apontar alguns de peso e recentes. António Costa em Lisboa e a forma como serviu de trampolim para Fernando Medina; João Cordeiro pelo PS em Cascais, que, tendo sido eleito, não exerceu; o mesmo se passou com Ferreira do Amaral em Lisboa e, por exemplo, Moita Flores em Oeiras; também a actual candidata do PSD a Lisboa, com o seu recorde de faltas, pode ser incluída neste rol de exemplos de candidatos fictícios. Haverá vários outros exemplos espalhados pelo país provenientes das principais forças políticas, mas, neste contexto, parecem-me as mais óbvias as candidaturas de Maria Luís Albuquerque à assembleia municipal de Almada e a de Assunção Cristas a Lisboa. Nenhuma destas candidatas irá assumir os cargos para os quais irão ser eleitas. Coisa pouco séria a política portuguesa com sinais expressos de uma democracia manipulada e altamente proteccionista da partidocracia.

Há um longo caminho a percorrer para que a democracia funcione de forma genuína, séria e contemporânea. As referências aqui feitas mostram a forma manipuladora como o sistema trata a democracia que não passa de um disfarce de democracia. Num próximo artigo apresentaremos propostas sobre a organização do poder local, e o respectivo modelo eleitoral e de representação.

Portugal precisa de nova política e novos políticos; os portugueses merecem.


Eduardo BAPTISTA CORREIA
Professor da Escola de Gestão do ISCTE/IUL
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"
NOTA: artigo publicado no jornal i

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