Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota de Campos, saído hoje no jornal i.
Portugal tem impostos de país rico: a carga fiscal e parafiscal sobre o trabalho dependente situa-se em 41%. As classes médias foram transformadas em vacas de dar leite e mungidas até não sobrar nada.
Um berro de indignação
Portugal tem impostos de país rico: a carga fiscal e parafiscal sobre o trabalho dependente situa-se em 41%. As classes médias foram transformadas em vacas de dar leite e mungidas até não sobrar nada
Declaração de interesses primeira: sou advogado e trato de muitos casos de estrangeiros que pretendem por razões várias instalar-se em Portugal. Declaração de interesses segunda: sou contribuinte e pago dolorosamente os meus impostos.
Posto isto, aquilo que aqui hoje me traz é uma profunda indignação com a situação que se vive no nosso País. Ao longo dos últimos anos, e sobretudo depois do início da “crise”, a classe média portuguesa tem levado golpes cada vez mais fundos e dolorosos que a estão a proletarizar e a empobrecer.
Num país sem capital disponível, as classes médias poupam o que podem, que é cada vez menos, e aplicam as suas parcas poupanças nas poucas coisas que estão ao seu alcance: alguma terra que herdaram e teimosamente não vendem, casa própria e nos melhores casos uma residência secundária de férias e títulos do tesouro. A mera ideia de investir em carteiras de ações ou fundos especulativos é anátema para quem, sucessivamente ao longo dos anos, foi roubado e ludibriado, sem que ao menos aconteça alguma coisa aos ladrões.
A outra coisa em que as classes médias investem é na educação dos filhos.
Esta escassa carteira de investimentos está sob ameaça permanente, até porque como dizem as Mortáguas desta vida, é preciso ir buscar dinheiro “a quem mais acumula”. Como em Portugal “quem mais acumula” são as classes médias, foram transformadas em vacas de dar leite e abundantemente mungidas até não lhes sobrar nada.
Para um cidadão normal, a mera ideia de enriquecer ou ao menos investir alguma coisa com base num salário ou numa remuneração profissional é uma anedota de mau gosto. Depois de pagas as despesas essenciais da família, os custos de educação dos filhos, as mil e uma taxas e corveias com que o Estado nos presenteia em permanência, o que sobra mal dá para merecer o nome de poupança.
Entretanto, o País tem impostos de país rico: de acordo com os dados da OCDE, a carga fiscal e parafiscal (impostos diretos e segurança social) sobre o trabalho dependente situa-se em 41%. Isto, antes de o dinheiro que sobra ser consumido com um IVA de 23%, um dos mais altos da Europa.
Poupando no que podem, tentando viver a sua vida com a dignidade possível, manter a cabeça à tona de água, rezando a Deus que não lhes envie uma das pragas dos 3 D’s (doença, desemprego e divórcio), as classes médias portuguesas, habituadas a ser tratadas como gado reprodutor e sem direitos, olham atónitas para o que se passa no País.
Ao contrário do que seria de supor num país em que o preâmbulo da Constituição diz que estamos a caminho do socialismo há 43 anos, Portugal transforma-se debaixo dos nossos olhos num país profundamente desigual, de alguns muito ricos, para quem há tudo, e muitos remediados ou pobres.
Acontece até que muitos dos “ricos” são estrangeiros que vieram viver para Portugal, porque para eles Portugal é um paraíso fiscal. Tomemos um exemplo ao nível mais rico para Portugal: um reformado português que receba por mês a fortuna de 5.000 €, daqueles que foram sujeitos à Contribuição Especial de Solidariedade, e um reformado francês que receba os mesmos 5.000 €. No fim do mês, o francês recebe e mete ao bolso 5.000 €, porque paga 0% de impostos sobre a sua pensão de reforma; o português recebe 3 mil e tal euros. Podem até viver no mesmo prédio, mas são cidadãos de dois mundos diferentes.
Da mesma forma, dois engenheiros, um português e um alemão, pagos ao mesmo nível, pagarão o primeiro talvez 40% de impostos e o segundo 20% de impostos. Porquê? Porque o alemão terá reclamado o estatuto de Residente Não Habitual e apenas paga 20% sobre os seus rendimentos.
Mas, o francês e o alemão pagam zero por cento sobre todos os seus outros rendimentos obtidos fora de Portugal; os portugueses, bem, nós sabemos o que pagamos quando temos o azar de ter alguma coisa a que o fisco se possa agarrar...
Como é evidente, a profunda desigualdade que progressivamente se instala no nosso País, não se resume a isto. É muito mais funda e reflete-se nos mais variados aspetos da nossa vida: tente alguém investir em imobiliário e verá a completa panóplia de problemas insolúveis que a Câmara Municipal de Lisboa lhe põe no caminho, ao ponto de um licenciamento de obra demorar anos e inviabilizar qualquer investimento; mas se porventura for um fundo poderoso, uma grande empresa bem relacionada, tiver os arquitetos e os advogados certos (sei do que falo…), tudo se torna fácil, os direitos adquiridos são para valer, a CML desdobra-se para o ajudar. Tente plantar uns hectares de eucaliptos (o texto não dá para explicar porque é que é a única produção florestal rentável) e é tratado como um criminoso. Mas, se for uma grande empresa de celulose ou uma empresa com a capacidade necessária, torce todas as regras criadas para castrar quem tem pouco e até consegue que o Estado subsidie o investimento!
É assim que alguns passeiam pelo País como se fossem donos disto tudo, vivendo num mundo maravilhoso e “chique a valer”, na expressão de um grande semanário de referência do fim de semana passado, e outros labutam diariamente para manter a cabeça à tona.
Presidindo a tudo isto, e limitei-me a aflorar sintomas daquilo que é uma doença profunda e gangrenosa do tecido social, o Estado gordo, balofo, sanguessuga e inoperante que temos limita-se a reproduzir um discurso retórico e cansativo, indiferente à vida e às necessidades reais do País, com uma câmara de eco chamada Assembleia da República que nos transmite um espetáculo que chega a parecer imbecil.
Estamos naquele limiar em que “para os amigos tudo, para os indiferentes justiça lenta e cara”. Depois da crise, Portugal está pior, mais feio, mais desigual, menos justo e com uma democracia doente e que não tem qualidade nenhuma. Convém ter presente, caro leitor, que os “indiferentes” somos nós todos…
João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.
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