Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Clemente Pedro Nunes, hoje saído no jornal i.
O Estado, para investir no recrutamento de doutorados, tem de ter chefias que os saibam gerir e enquadrar numa perspetiva estratégica de interesse nacional.
Bolseiros pós-doc: um colapso estratégico
Um dos mais graves sintomas da falta de uma estratégia para o desenvolvimento económico-social de Portugal que a atual solução governativa tem evidenciado é a forma como tem lidado com o problema dos doutorados que têm vivido de bolsas de pós-doutoramento, sucessivamente renovadas. E isto fora de qualquer sistema estruturado para promover a prosperidade económica e a coesão social do nosso país.
É lamentável vermos milhares de pessoas com as mais altas formações académicas e que, ao mesmo tempo, têm graves dificuldades em se inserirem no mercado de trabalho. Só que as soluções para que o atual governo aponta apenas irão agravar a situação, em termos duma estratégia nacional digna desse nome.
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) tem olhado para esta questão apenas de um ângulo “político-social”, considerando os doutorados com bolsas como um problema corporativo de trabalhadores em situação de “precariedade” que têm vindo a pressionar o governo reivindicando uma situação de “estabilidade laboral”. O que, na prática, quererá dizer o terem direito a adquirir um “lugar na administração pública”.
Numa perspetiva de valorização de recursos humanos de que o país dispõe, é de facto trágico! Mas não tem de ser assim!
Desde logo porque, em termos de coordenação estratégica, não faz qualquer sentido ser apenas o MCTES a tratar duma questão tão relevante para pôr o conhecimento tecnológico ao serviço do desenvolvimento económico-social do país.
A atual Agência Nacional de Inovação articula obrigatoriamente as perspetivas de dois ministérios: o da Ciência/Ensino Superior e o da Economia. Por isso, como já referido em anterior artigo, em abril de 2017, considero prioritário que seja retomado um programa de inserção de doutorados nas empresas, semelhante àquele que foi incompreensivelmente descontinuado em 2006 e pelo qual a então ADI (a Agência de Inovação, entretanto substituída pela Agência Nacional de Inovação) suportava o custo de 50% dos vencimentos dos três primeiros anos de trabalho efetivo de doutorados contratados pela primeira vez para trabalhar nas empresas – incluindo, como é óbvio, as startups e as “novas digitais”, atualmente tão fomentadas – para os doutorados serem incentivados a ir reforçar, com as suas competências, o “músculo competitivo” do tecido empresarial.
Mas, além disso, fica-se perplexo com o facto de, mesmo em termos do setor público, o MCTES, para resolver o problema reivindicativo que tem em mãos, apenas ter ido bater à porta (nalguns casos parece querer mesmo ir arrombar a porta…) das universidades.
É que vivemos num país que tem pelo menos um organismo do Estado que soube articular com sucesso a ciência, a tecnologia e a engenharia e pô-las ao serviço do desenvolvimento económico-social da sociedade: o LNEC – Laboratório Nacional de Engenharia Civil. Ora, o LNEC foi criado já há cerca de 70 anos pela visão de Manuel Rocha e de Eduardo Arantes e Oliveira, mas, depois disso, os casos de sucesso não abundam nesta área.
A gestão estratégica do trabalho de pessoas altamente qualificadas em termos científicos, como é o caso dos doutorados, é sempre uma tarefa difícil que exige, simultaneamente, elevadas competências científico-tecnológicas e de gestão estratégica, incluindo a capacidade de liderança de equipas multidisciplinares.
E mesmo em áreas não tecnológicas, como é o caso das ciências sociais e políticas/relações internacionais, certamente alguns destes bolseiros pós-doc poderiam dar um contributo em termos operacionais, por exemplo apoiando a nossa diplomacia no reforço do “músculo económico e político” de Portugal na cena mundial.
Mas o Estado, para investir no recrutamento de doutorados, tem de ter chefias que os saibam gerir e enquadrar numa perspetiva estratégica de interesse nacional. Porque, se as não tiver, estará apenas a destruir os recursos que os cidadãos e as empresas lhe pagam através dos impostos para pagar “subsídios para empregos avulsos”. E estará também a destruir uma perspetiva de carreira digna aos que assim permanecem à custa do contribuinte num “limbo tolerado”.
Estamos, pois, a assistir a um colapso estratégico nesta área fundamental por parte do governo, que apenas se propõe pôr dinheiro para resolver uma reivindicação laboral. Mas uma democracia de qualidade tem de ser muito mais que isso. Tem de saber transformar os desafios em oportunidades que reforcem a sociedade no seu conjunto, e não apenas uma pequena parte em detrimento de todas as restantes.
Clemente PEDRO NUNES
Professor Catedrático do Instituto Superior Técnico
Subscritor do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.
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