Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José António Girão, hoje saído no jornal i.
Confrontada com os graves problemas que enfrenta, e depois de avanços e recuos, não restou à UE senão a decisão de não impor quaisquer sanções a Portugal e Espanha.
Uma prova de confiança
O mês que há dias terminou foi, entre nós e em larga medida, dominado pela “crise das sanções”. Por outras palavras, pela polémica em torno da aplicação (ou não) por parte da UE de sanções a Portugal (e Espanha) pelo não cumprimento dos requisitos exigidos pelo denominado Pacto Orçamental. A questão tornou-se, desde logo, controversa a múltiplos títulos.
Em primeiro lugar, por as sanções resultarem da ultrapassagem do défice do Estado em 2015, ano em que a troika, responsável pelo plano de ajustamento imposto ao país, em contrapartida do empréstimo que lhe foi concedido e permitiu a continuação do seu acesso aos mercados financeiros, declarou o resultado como de sucesso, permitindo uma “saída limpa” do mesmo. É claro que, para muitos (entre os quais representantes dos partidos da oposição), esta penalização retrospetiva era vista não como tal, mas sim como uma crítica à política orçamental do atual governo, considerada como retrocedendo no caminho da austeridade anteriormente prosseguido e nos resultados alcançados. Porém, não só a anterior austeridade não tinha conseguido o cumprimento dos défices acordados nos anos transatos como, de acordo com os dados da execução orçamental no ano corrente, o governo considera que não há razões para não acreditar no cumprimento do défice constante do Orçamento aprovado pela UE. Era, pois, inaceitável a aplicação de quaisquer sanções em conexão com os resultados orçamentais alcançados em 2015, após todo o esforço realizado com vista ao reequilíbrio da situação económico-financeira do país, validado pela troika com uma “saída limpa” do Programa de Ajustamento Económico acordado. Por outro lado, admitir-se que as sanções eram uma forma antecipada e alternativa de manifestar desconfiança quanto ao cumprimento do défice em 2016 revelava, obviamente, um comportamento inaceitável por parte das autoridades comunitárias, digno da maior repulsa por parte dos cidadãos.
Perante tais factos e confrontada simultaneamente com os graves problemas que enfrenta (Brexit, crise dos refugiados, crise bancária, terrorismo, nacionalismos, etc.), e depois de avanços e recuos, não restou à União Europeia senão a decisão de não impor quaisquer sanções a Portugal (e Espanha).
Como é lógico, e tendo em conta as informações veiculadas para a opinião pública, o resultado da batalha (de argumentos) traduziu-se numa clara vitória para Portugal e para o seu governo. Contudo, se analisarmos mais profundamente a recomendação da Comissão Europeia, que tudo indica (na data em que escrevemos) irá ser adotada pelos Estados-membros (decisão final a 9 de agosto), constata-se que da mesma constam exigências claras quanto ao défice no corrente ano, sob pena de se concretizar uma suspensão de fundos estruturais em 2017. Ou seja, para já não há sanções, mas continua a exigir-se que o país respeite os compromissos decorrentes do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Nesta perspetiva, Portugal vence apenas uma batalha, com base numa prova de confiança por parte da UE nas afirmações do governo, que repetidamente tem garantido respeitar os compromissos assumidos, em particular no que respeita ao défice.
Este sinal positivo e de bom senso que a UE, após várias hesitações, acabou por manifestar e dar a Portugal deve, assim, constituir um estímulo adicional para que o governo e o país não frustrem a prova de confiança que nos foi testemunhada e se mostrem dignos da sua manutenção. Caso contrário, teremos de assumir as consequências gravosas daí decorrentes, bem conhecidas e para as quais temos sido devidamente alertados.
Mas será que tal é possível sem medidas adicionais? O governo continua a afirmar que sim, e que o rigor e contenção que vem exercendo na execução do Orçamento, conjuntamente com as cativações de verbas orçamentais a que procedeu, são suficientes para atingir o défice de 2.5% do PIB, agora estabelecido para o corrente ano na decisão aprovada. Há, porém, razões para que muitos sejam levados a ter dúvidas fundamentadas sobre a possibilidade de um tal resultado. Consideram-no fruto de um otimismo exagerado, suscetível de redundar em fracasso. Deste ponto de vista partilha, aliás, o Conselho de Finanças Públicas e outras entidades responsáveis. Com efeito, é sabido que, fruto das medidas (de reversão) adotadas e do seu faseamento no decurso do ano, não parece aceitável admitir que o 2.º semestre seja uma simples duplicação do 1.º. Nunca é, mas em 2016 ainda é menos legítimo assumi-lo.
Por último, e como argumento acrescido e decisivo para a necessidade de o governo estar permanentemente vigilante quanto à evolução da situação do país, surge o facto de estarmos longe de conseguir uma fase de equilíbrio socioeconómico e de desenvolvimento sustentável minimamente credível e satisfatório. Como procurei salientar em artigo anterior, não basta clamar por crescimento em alternativa à austeridade. Para tal, há que ter uma visão realista para o país e definir objetivos prioritários que a tornem possível, sem esquecer o papel determinante das políticas públicas na sua concretização. Tal não parece ser o caso, a avaliar pelos resultados que vêm sendo obtidos. O crescimento do valor da produção nacional permanece diminuto (pouco mais de 1%), não tendo ainda recuperado o seu valor em 2008. A sua componente mais dinâmica são as exportações (embora em desaceleração e com peso idêntico às importações), continuando, apesar de tudo, o consumo privado (nomeadamente o dos bens duradouros) a dar o principal contributo para o crescimento do PIB. O investimento continua anémico – a refletir uma poupança global negativa –, apesar da quebra de cerca de 30% relativamente ao seu valor em 2008. Se a este quadro juntarmos o nível de endividamento do Estado, das famílias e das empresas, bem como a concomitante crise do setor bancário e da dívida externa, não é demais nem ousado pedir ao governo que não defraude a prova de confiança que resulta da decisão comunitária e da oportunidade que lhe está eminentemente associada de pôr o país no caminho da “good governance e accountability”, de que indiscutivelmente todos beneficiaremos e pela qual há muito ansiamos.
José António GIRÃOProfessor da FE/UNL
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.
Sem comentários:
Enviar um comentário