Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, saído hoje no jornal i.
Numa democracia de qualidade, em que deputados não fossem meros delegados à ordem do chefe, o plano político e económico da ‘geringonça’ seria rejeitado no parlamento.
A geringonça e o stick de hóquei
Quando trabalhava na banca de investimentos, era frequente analisar planos de reestruturação de empresas. Tratava-se geralmente de entidades com desequilíbrios de balanço, investimentos financiados por capitais alheios, grande endividamento, dificuldades de tesouraria, resultados operacionais e prejuízos avultados.
No entanto, pressupostos criteriosamente selecionados por ilustres consultores, acompanhados de alguma racionalização interna, conduziam de imediato a um aumento das vendas, a uma diminuição de custos e à obtenção de resultados positivos crescentes, situação que obviamente recomendava o apoio do banco a um alongamento da dívida, ao fortalecimento do fundo de maneio, a um estimulante período de carência de capital e juros, ao financiamento dos investimentos em curso, garantia de cash flow no curto prazo.
Os resultados, de crescentemente negativos passavam a crescentemente positivos e, se traduzidos num gráfico, configurariam a imagem de um stick de hóquei. O que não deixaria de ser excelente, não fora os sofisticados pressupostos escolhidos escaparem, quase sempre por completo, à capacidade de controlo da empresa e dos gestores. Na primeira reunião com os responsáveis, a imagem do stick era normalmente suficiente para demonstrar que a evolução estimada era um mero passe de mágica que poderia começar por iludir o banco, mas a empresa seria certamente a vítima final.
Passados anos, muitos ainda me perguntam como vai o stick. O facto é que a aplicação da ideia, que não inventei, apenas repliquei, levou a verdadeiras reestruturações das propostas de reestruturação iniciais.
Lembrei-me destes episódios quando, faz pouco mais de um ano, o gestor do PS apresentou aos portugueses, com o suporte da “autoridade” dos ilustrados consultores que o elaboraram, um macro plano de reestruturação da economia e das finanças do país, de modo a conseguir o crescimento da produção, no caso do PIB, a diminuição dos prejuízos, no caso do défice, e o fim da austeridade. O que seria excelente, não fora o plano baseado em pressupostos que escapavam ao seu controle, mas que um afinado power point considerou jeitosos para consubstanciar um modelo inovador capaz de colocar, de uma penada, o país a crescer, a dívida a diminuir, o défice a definhar, a austeridade a acabar. Crescimentos das exportações a 5,9% e do investimento a 7,8% vinham mesmo a calhar.
Os trabalhos de construção da geringonça e do OE para 2016 levaram a que o plano fosse retocado, alterando pressupostos à medida para que se mantivessem os grandes objetivos iniciais.
Claro que qualquer observador sensato e autoridades independentes, nacionais e internacionais, verificaram que os pressupostos se tornaram ainda menos controláveis e mais incapazes de produzir os resultados previstos.
O que se confirma no “crescimento” da produção, que andará abaixo de 1%, efeito de pressupostos irrealizáveis, com a receita fiscal a crescer o triplo do produto, aumentando a carga tributária e estagnando consumo e investimento, a despesa a aumentar, o investimento público a cair para compensar o aumento dos funcionários e o fim do IVA da restauração. As exportações de 2016 apresentaram o valor mais baixo desde 2009, enquanto a dívida atingiu o valor mais alto de sempre.
Numa democracia de qualidade, em que deputados não fossem meros delegados à ordem do chefe, o plano político e económico da geringonça, padecendo da síndroma do stick de hóquei, tal a ficção dos seus pressupostos, seria rejeitado no Parlamento. O stick configurado no programa seria mesmo o instrumento ideal para lançar a ficção para bem longe. Ao contrário, ofereceram-no como presente à geringonça, que teima em manter pressupostos e modelo.
E cá estamos todos a aguentar as stickadas, máximos na dívida, zero na economia.
António PINHO CARDÃO
Economista e gestor - Subscritor do Manifesto por Uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.
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