Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José António Girão, hoje saído no jornal i.
É chegada a hora de uma tomada de consciência por parte da sociedade civil e da sua mobilização para uma inflexão no caminho que vem sendo percorrido.
Uma pedrada no charco
Chegámos ao fim do normal período de férias, o que em termos políticos significa o fim da silly season. Devia agora seguir-se-lhe a rentrée, ou seja, o período anual de reflexão sobre as reformas e medidas políticas a implementar, com vista à melhoria, progresso e sustentabilidade do processo de desenvolvimento do país. Mas será isto que podemos antever nesta rentrée de 2016? Dificilmente...
Em primeiro lugar, porque não é esse o padrão de responsabilidade a que os sucessivos governos nos habituaram. Pelo menos na última década, para não dizer neste século, aquilo a que assistimos é a um agravamento da crise em que o país há muito mergulhou, consequência, em larga medida, do sistema corporativo de partidos que se instalou, empenhados primordialmente na sua sobrevivência. Daí a luta fratricida de interesses a que se dedicam, limitando-se a constatar e a tornar públicos os resultados da sua sucessiva desgovernação. Ninguém é culpado, ninguém é julgado, ninguém é preso. E nem o poder político nem os órgãos de soberania parecem ter consciência da responsabilidade que lhes cabe. A impunidade é total.
Face a esta situação, parece oportuno e mais do que necessário que os cidadãos se interroguem sobre a representatividade do poder político em Portugal – poder que há muito deixou de representar os interesses da generalidade dos cidadãos, como o comprova o crescente desinteresse destes pela “causa pública” e o seu progressivo alheamento do sistema eleitoral. Esta desmotivação é bem patente e está bem refletida no anedotário nacional que perpassa pelas redes sociais.
Do que precede retiramos uma conclusão. É chegada a hora de uma tomada de consciência por parte da sociedade civil e da sua mobilização para uma inflexão no caminho que vem sendo percorrido. Mas como, se é também um facto insofismável a fraqueza da nossa sociedade civil? A resposta só pode vir de um amplo movimento de contestação e “civil desobedience”. Foi este o método utilizado nos casos em que houve que pôr cobro e inverter caminhos pressentidos como desajustados dos princípios humanistas e dos interesses das maiorias. Como afirmou H. Thoreau, no célebre ensaio de 1849, o “governo pode expressar a vontade da maioria, mas pode igualmente expressar nada mais do que a vontade da elite política”. Daí a legitimidade de se opor resistência à governação, pela recusa em cumprir leis, pagar impostos e satisfazer outras exigências, como forma de influenciar a legislação ou a política governativa, na convicção de que tais exigências são moralmente injustas e que o sentir da consciência se sobrepõe às obrigações para com o Estado.
Como é óbvio, a desobediência civil não é isenta de controvérsia e de alguma ambiguidade. Desde logo, em virtude da legalidade do protesto e pela natureza violenta, ou não, do mesmo. Mas o que é inquestionável é o papel que tem desempenhado ao longo da História, sobretudo no contexto dos movimentos de independência, direitos humanos e várias formas de resistência.
Em face do que precede, parece pois justificar-se, e de forma premente, a necessidade de promover o aparecimento de um amplo movimento de contestação civil à situação com que nos confrontamos relativamente à governação do país. Porém, para ser eficaz e conseguir os seus intentos, este movimento terá de ser seletivo e definir objetivos e prioridades que permitam alcançar o desiderato visado. Não é possível ser eficaz contestando sistematicamente tudo e todos. Neste contexto, parece-nos prioritário eleger como objetivos a alteração (1) do sistema eleitoral; (2) do sistema subjacente à política orçamental; e (3) do sistema de Justiça.
Quanto ao primeiro objetivo, ele está na origem do “Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade” e tem sido objeto de amplas e variadas justificações e sugestões, nos artigos que, semanalmente (às quartas-feiras), alguns dos subscritores do referido documento têm publicado neste jornal. No entanto, nada acontece, não se mostrando os partidos interessados em alterar a atual situação, como, aliás, se constatou nas audiências havidas com os promotores do Manifesto ou através de quaisquer desenvolvimentos subsequentes. Justifica-se, pois, que este tema seja objeto de iniciativas de desobediência civil. Como exemplo de iniciativas neste âmbito, poder-se-ia avançar com um forte apelo a uma participação nas eleições legislativas através do voto nulo (ou em branco). Assim se daria um sinal claro de desagrado e repúdio pelo atual sistema, suscetível de “acordar” os políticos e mobilizar os eleitores.
Que a atual política orçamental é insatisfatória e gravosa do ponto de vista nacional, também não há lugar para dúvidas. Continua longe de garantir o equilíbrio das contas públicas e de contribuir para a solvência do Estado, exibindo um nível de exaustão incapaz de permitir a estabilidade da política fiscal e um financiamento eficaz da economia compatíveis com a acumulação de capital exigida por um crescimento sustentável do processo de desenvolvimento.
O combate a esta fragilidade financeira e económica só poderá ser conseguido com uma alteração da política orçamental com vista à sua estabilização e consolidação a médio prazo, assente na análise rigorosa das prioridades e qualidade da despesa e numa política fiscal estável que permita o eficaz financiamento da economia, com vista ao seu crescimento e desenvolvimento sustentáveis. Este é, assim, um objetivo primordial em que a cidadania deveria empenhar-se, nomeadamente protestando ativamente e recusando qualquer alteração de impostos e da carga fiscal que não se alicerce numa estratégia e num programa económico e orçamental de médio prazo, devidamente fundamentado e discutido em termos dos seus pressupostos, e transparente nas medidas a implementar, bem como no acompanhamento da sua execução, inclusive por parte de movimentos representativos da cidadania. Trata-se, como é óbvio, de formas organizadas de pressão política sobre o governo, mas que deverão contribuir decididamente para se sair do rumo pantanoso em que o país está a afundar-se.
Por último, há que ter em conta a ineficácia e descrédito do atual sistema de Justiça. Os exemplos são bem conhecidos e não necessitam de mais comentários. O que se torna premente é dotá-lo de eficácia, até porque nele assenta o Estado de direito. E sem isso, o país não terá a credibilidade nem haverá confiança para o investimento, crescimento e desenvolvimento social e humano. Que formas deverá a desobediência civil revestir neste caso, deixo para proposta dos especialistas na matéria. Lembraria somente que o recurso às redes informáticas, como via de divulgar opiniões e fazer reivindicações, está ao dispor de grupos de cidadãos empenhados e vem-se revelando cada vez mais eficaz; isto para já não falar no recurso a manifestações de protesto.
À guisa de conclusão, diríamos que não há lugar para dúvidas quanto ao facto de a generalidade dos cidadãos estar consciente da encruzilhada em que o país se encontra; austeridade versus crescimento não passa de um dilema com que nos confrontamos, mas insuscetível de solução no atual quadro económico, social e político. Urge, pois, alterar este estado de coisas. Só que tal não parece possível no quadro partidário vigente. Por conseguinte, surge como inevitável que seja a sociedade civil a promover e lutar pelo desbloqueamento da situação, através de movimentos organizados em torno de projetos e propostas devidamente alicerçados em estudos, levados a cabo por instituições independentes e competentes da sociedade (think tanks), como forma de pressão política, no âmbito da desobediência civil.
Dir-se-á que não é bonito! É fácil concordar. Só que parece não haver outro meio (pacífico) de alterar a situação. Além de que ele já deu provas em múltiplos casos, incluindo entre nós. Nomeadamente quando da manifestação contra a tentativa de alterar a TSU pelo anterior governo (15 de setembro de 2012). E por muito pouco bonita ou ortodoxa que seja a desobediência civil, sempre poderá criar as “ondas” que nos permitam sair do atoleiro...
José António GIRÃOProfessor da FE/UNL
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.
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