quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Um, dois, três, lá vamos nós outra vez…

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, saído hoje no jornal i
Ai desta classe política, que se não se corrige rapidamente e de forma drástica, se continuar enredada nos seus joguinhos bizantinos, vai descobrir um dia que foi submersa por uma onda de indignação popular.


Um, dois, três, lá vamos nós outra vez…
Mohamed El-Erian, um conhecido economista, publicava há dias mais um artigo no blog Project Syndicate com o título “Toxic Politics Versus Better Economics”.

Sustenta que a relação entre a política e a economia está a mudar: a classe política dos países desenvolvidos está comprometida em conflitos frequentemente tóxicos e bizarros em vez de discutir e tentar chegar a um consenso alargado sobre a questão de como escapar a um período, que já vai muito longo, de crescimento anémico e desigual.

O risco desta situação, adverte-nos, é que a má política pode acabar por expulsar a boa economia e que a frustração e indignação das populações acabe por submergir a boa política e tornar o debate ainda mais tóxico.

Numa nota complementar, o falecido sir Ralf Dahrendorf (1929-2009) escrevia em 2006 um artigo, “Parties and Populists” (Project Syndicate), em que sustentava que o centro social estava a desaparecer e que, se nada fosse feito para travar a deriva polarizadora do debate político para os extremos, cedo ou tarde nos veríamos confrontados com fenómenos populistas e autoritários. Premonitório…

Também já aqui escrevi sobre estes temas e sobre a nova vaga dos angry voters, aquela parte das classes médias que sente estar a perder com a globalização e não vê as suas preocupações representadas pela classe política.

São os angry voters que dão sustento à inacreditável campanha de Donald Trump, aos líderes autoritários que surgem com frequência crescente na Europa, que invertem os resultados mais óbvios e lógicos dos referendos sobre questões essenciais (Brexit é um bom exemplo) e que votam em partidos de extrema-esquerda (e extrema-direita), pulverizando o quadro político e tornando os países ingovernáveis.

Enquanto as classes médias – e antigamente ascendentes – sentirem na pele o peso excessivo dos impostos, a diminuição crescente da rede de apoio social e a distância cada vez maior de uma classe política embrenhada em discussões tóxicas, desagradáveis e bizantinas, sem dúvida que estarão abertas, também crescentemente, a apoiar populistas e demagogos.

Aqui, na Península Ibérica, posso dar dois exemplos recentes do absoluto desprezo que a classe política manifesta pelas preocupações dos seus “constituintes”: recentemente, em Espanha, o governo de Mariano Rajoy foi obrigado a aceitar a demissão de um ministro envolvido em mais um escândalo de corrupção. No dia seguinte à última votação nas Cortes em que o governo foi mais uma vez chumbado, o ex-ministro foi nomeado para um altíssimo cargo no Banco Mundial. Corrupto mas não imprestável, pelos vistos…

Em Portugal temos o caso da Caixa Geral de Depósitos, em que é nomeada uma nova administração que vai ganhar o triplo da anterior. Trata-se de uma instituição à beira da falência, em que o Estado injeta, para a “recapitalizar”, ou seja, salvar, milhares (muitos) de milhões de euros que vão sair, obviamente, dos bolsos de quem paga impostos.

Verifica-se que a nova administração aceitou o encargo depois de ter contribuído para estabelecer um plano de reestruturação da Caixa, tendo-o feito enquanto os seus membros eram administradores de um banco concorrente da Caixa. Pedro Passos Coelho, presidente do PSD, interroga-se sobre se os pressupostos do plano foram fornecidos aos administradores de um banco concorrente, que assim passou a ter acesso aos segredos mais íntimos da Caixa. É uma interrogação válida e legítima.

O novo presidente da Caixa, um banco público salvo com muito dinheiro público, vem responder ao líder do partido mais votado e maior partido da oposição que, se ele soubesse alguma coisa de contas, nem colocaria a questão: os dados usados para o plano são públicos, são as contas da CGD.

Ou seja, não responde à pergunta feita e ainda é impertinente: se o grande e maravilhoso plano que consiste em injetar na Caixa uns largos milhares de milhões de euros foi feito em cima do joelho com base em informação do domínio público, é estarrecedor. Se não foi e foram usados elementos da Caixa que são segredo seu, foram ou não postos à disposição de um banco concorrente?

De tudo isto resulta que António Domingues, o “salvador” da Caixa, afinal é mais um apparatchik socialista, mais preocupado em pôr em cheque Passos Coelho do que em levar a bom porto a sua missão no banco.

Como é evidente neste combate, em vez de estarmos a discutir o interesse nacional de reestruturar e pôr a funcionar devidamente o maior banco – público – do país, estamos a assistir a um debate puramente politiqueiro. Os contribuintes, que pagam o plano, assistem a mais este episódio e podem fazer o quê?

Deste filme só podemos sair emigrando, que é uma forma pessoal de fazermos o nosso próprio bailout: fugir para onde não haja uma dívida pública tão elevada que ponha em causa o nosso futuro. É isto que se espera de nós?

Ai desta classe política, que se não se corrige rapidamente e de forma drástica, se continuar enredada nos seus joguinhos bizantinos, vai descobrir um dia que foi submersa por uma onda de indignação popular, não para bem da democracia nem da qualidade da democracia, mas para mal de todos. Já faltou mais, e não era pior que “essa” gente se convencesse que ou muda de vida, ou a vida muda-os a eles.
João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA:
artigo publicado no jornal i.

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