Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, saído hoje no jornal i.
De farsa a comédia, de comédia a drama, de drama a tragédia, de tragédia a palhaçada, eis a representação da geringonça. Esgotando-se no mau teatro e na retórica vã, deixou de lado a função primordial de assegurar a defesa e o bem-estar dos cidadãos.
Teatro político em modo de pantomima
Vivemos numa democracia sem qualidade. No teatro parlamentar, a representação ultrapassou a normal divergência partidária e o palco tornou-se o lugar da mais insuportável e deseducativa violência verbal. Bons de um lado, maus do outro, numa linguagem de ódio, como se a coexistência de diferentes vias políticas não fosse a essência da democracia.
Mas neste grande teatro de uma democracia sem qualidade, é a geringonça que monta as grandes encenações. Modernizou a picareta falante transmigrada de um seu ilustre avatar, aumentou-lhe potência e cobertura e colocou-a a funcionar em vários canais estereofónicos que propagam, alto e longe, a voz e o grito da nova e vasta sorte de artistas ilusionistas, contorcionistas e prestidigitadores que ocuparam o palco, tomaram--no como seu e dele querem fazer modo de vida.
Pedrógão foi tragédia bem real, mais de 60 pessoas queimadas vivas. Em vez de respeito e assunção de responsabilidades, repetem-se as encenações alternativas. A diretora de cena chorou publicamente no palco da tragédia, porventura como forma de melhor coordenação e comando do tablado. De onde, cercado de fogo, logo o encenador se afastou para férias, saindo de mansinho pela esquerda baixa e deixando à boca do palco os principais personagens em tumultuosos diálogos homicidas, atribuindo uns aos outros as culpas da tragédia. No fim, mutuamente inocentados, responsabilizaram as forças da natureza, a trovoada seca, o aquecimento global, o raio da árvore, o downburst e a própria estrada, os deuses, como na tragédia grega, contra quem até seria perigoso lutar. E assim apaziguados, fora das vistas do palco, no recato dos camarins, os farsantes maiores da geringonça resolveram fazer uma sondagem à popularidade das suas representações!...
E já em pós-cena, subidas e descidas as cortinas dos alegados responsáveis, o encenador-mor autoiliba-se e a toda a sua companhia, apresentando à plateia o operador de telecomunicações como o grande culpado.
Numa outra encenação em que, num primeiro ato, os comediantes penosamente filosofavam sobre as causas e consequências do assalto ao principal forte das munições do país, a trama foi radicalmente alterada pelo encenador, mal regressado de férias. E o episódio transformou-se num hino aos heróis que despejaram gratuitamente o forte do material sem serventia, poupando incómodos à tropa e despesas de abate ao país. O forte era mera concentração de lixo e, obviamente, não se assaltam caixotes de lixo. No apoteótico coro final, Tancos nunca existiu, nem sequer no mapa, fim da peça. E o encenador foi publicamente louvado pelo seu contrarregra parlamentar como um criativo que colocou o problema que havia acontecido em Tancos no seu devido lugar...
Na encenação educativa, os alunos representam e passam de ato para ato sem saber qualquer das suas falas, e a peça é apresentada como mais um êxito de real fantochada.
Entretanto, o coro anuncia, solene, a chegada definitiva à ribalta de todos os figurantes ocasionais e auxiliares dos bastidores, estagiários, bolseiros e investigadores de cena. Os espetadores pagarão os cachês.
No enredo da economia, com o inevitável fracasso do tão aclamado programa alternativo, encenador e coro fazem como o cuco, cantando alegremente êxitos nos ninhos alheios que usurparam e para os quais em nada contribuíram. Com o hino repetitivo a subir de tom a cada momento.
Quando a peça não corresponde ao cartaz, o encenador-mor faz entrar em cena a trupe malabarista a entreter os espetadores, que vão aplaudindo gato por lebre, mal pensando serem eles mais uma vez os bombos que dão vida à representação e sem os quais não haveria pantomina.
Se fosse honesta peça de teatro, a geringonça poderia ser uma comédia, mas a trama é tão medíocre que se vem tornando uma palhaçada. E quem se fica a rir são os comediantes, jovens boys e velhos farsantes semeadores de ilusões, e não os espetadores que, além de pagar, acabam por ser os bobos da festa.
De farsa a comédia, de comédia a drama, de drama a tragédia, de tragédia a palhaçada, eis a representação da geringonça. Esgotando-se no mau teatro e na retórica vã, deixou de lado a função primordial de assegurar a defesa e bem-estar dos cidadãos.
Caído o pano, nada fica para além da ribalta escurecida, buraco negro, símbolo de um Estado geringôncico que semeia ilusões para tudo absorver, mas que desaparece quando mais dele se necessita.
Sem uma reforma eleitoral, persistirá esta democracia da pior qualidade. Lamentavelmente, há quem a aplauda.
António PINHO CARDÃO
Economista e gestor - Subscritor do Manifesto por Uma Democracia de Qualidade