sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Um país sem escrutínio público

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José António Girão, anteontem saído no jornal i.

O compadrio e a dependência do Estado são ancestrais e notórias, e onde tanto a esquerda como a direita se comprazem em críticas recíprocas e se mostram incapazes de conseguir a resolução dos problemas que nos afetam, incluindo a necessária emergência de uma pujante classe média.


Um país sem escrutínio público
É sabido que a saúde de uma democracia assenta em larga medida na natureza, qualidade e estabilidade das instituições que a enquadram. De há muito que diversos autores e organizações internacionais vêm pondo em destaque o papel decisivo que as instituições desempenham no processo de progressiva melhoria e sustentabilidade do desenvolvimento económico-social (v.g. “Why Nations Fail” de D. Acemoglu e J.A. Robinson). Daqui decorre como corolário a importância de um rigoroso escrutínio da qualidade e vitalidade das instituições nacionais, incluindo a natureza das interligações que entre elas se estabelecem, como forma de assegurar a sua eficácia, enquanto suportes da democracia. Mas como levar a cabo esse escrutínio essencial?

Como seria de esperar, a própria essência da democracia levou a que esta se tenha dotado de instituições destinadas a garantir que o processo de decisão subjacente à governação é não só consentâneo com os interesses dos cidadãos, como também com a necessidade de as mesmas se vigiarem e controlarem mutuamente, num exercício de “checks & balances”, que assegurem não só a representatividade das opções feitas, mas também que nelas os cidadãos maioritariamente se revêm.

É neste contexto que surgem os designados órgãos de soberania (PR, AR, governo e Justiça) com poderes e atribuições distintos, mas também os diferentes órgãos reguladores (sectoriais), fiscalizadores (Tribunal de Contas, Conselho de Finanças Públicas, etc.) e de Concertação Social. É, pois, vital que cada um destes organismos formais da democracia exerça as suas funções de forma competente, independente e responsável, sem interferência nas competências dos demais, mas numa postura de vigilância recíproca, em prole do bem comum.

No entanto, uma sociedade democrática requer que para além das instituições formais que a integram existam outras, tais como as de cidadania e parceria social, os “think-tanks”, etc., cujo objetivo é o de contribuir igualmente para a vitalidade da democracia, através da discussão fundamentada da governação, enquanto escrutínio da prática política e do processo conducente à tomada de decisões, incluindo a sua transparência e o grau de satisfação a que conduz.

Ora, como todos podemos constatar diariamente, este desiderato está longe de corresponder ao ambiente vivido em Portugal. O que não é novo. De facto, de há muito que se vem sentindo, e se encontra documentado, o desfasamento entre a prática política e os resultados da governação, face às expectativas e anseios dos cidadãos. É ele que é responsável pelo progressivo desinteresse destes pela política e pela causa pública em geral. Individualismo e populismo são as consequências mais visíveis de um tal percurso.

Contudo, a dimensão do referido desfasamento e os factos que o acompanham são de molde a impor que todos nos interroguemos sobre se estaremos a viver no contexto de um Estado verdadeiramente democrático, ou apenas formalmente democrático, porque assente no resultado de eleições livres de base constitucional.

Com efeito, não são só os casos mediáticos no âmbito da justiça, associados a comportamentos que no mínimo terão de ser considerados de menos éticos, envolvendo figuras do Estado – que vão desde um ex-primeiro-ministro, a ex-membros do governo e outros governantes autárquicos e da alta administração pública –, mas também empresários e gestores de empresas relevantes e cotadas na Bolsa, que se arrastam perante a opinião pública sem julgamento oficial, mas acarretando desprestígio (e na prática, implícita condenação). Porém, mais recentemente assistimos a uma outra dimensão da implosão do Estado, resultante de, em face de crises, evidenciar que não tem capacidade para prever e assegurar o normal funcionamento do país, ou então fazê-lo de forma ineficiente, revelando inúmeras fraquezas. As tragédias recentemente registadas e relacionadas com os fogos e a queda de árvores, bem como o roubo de armas e destruição de empresas relevantes, em óbvios jogos de poder, são um claro testemunho da incapacidade e ineficácia do Estado em assegurar o bem comum e a defesa dos cidadãos. Acresce a tudo isto a imagem de descrédito dos governantes e demais responsáveis, ao não assumirem claramente os factos evidentes e de generalizado conhecimento público. Não admira, assim, que o desprestígio da governação e dos políticos tenha chegado ao ponto a que chegou!

É claro que o triste resultado que constatamos é também em larga medida resultante do excesso de confiança que todos nós depositamos no sistema político e na governação, quanto à sua capacidade para enfrentar e resolver problemas estruturais. Com efeito, ele resulta igualmente de um excesso de confiança nos talentos das elites, resultantes de acreditarmos que as melhorias são óbvias e só não ocorrem porque são incompetentes ou ideólogos facciosos os que nos governam. Ambas as visões ignoram os limites da governação, face à dimensão das ambições de todos nós, e em particular que os “trade-offs” excedem o número de problemas a resolver. Daí que o sistema não tenha uma solução única e óbvia, o que implica uma realidade bem mais complexa: impede o sonho … mas exige esperança.

De tudo o que precede decorre a importância de um escrutínio criterioso da governação por parte dos cidadãos, mas igualmente de reflexão e de diálogo. Só assim será viável alcançar maior compatibilidade entre o bem comum e os conflitos que decorrem dos interesses de grupo, e conseguir-se a resolução satisfatória dos problemas, assim se evitando a polarização. Tal não é sempre fácil, nomeadamente num país em que a cunha, o compadrio e a dependência do Estado são ancestrais e notórias, e onde tanto a esquerda como a direita se comprazem em críticas recíprocas e se mostram incapazes de conseguir a resolução dos problemas que nos afetam, incluindo a necessária emergência de uma pujante classe média. Esta basicamente anseia por emprego, segurança e melhores perspetivas de vida. É este o desafio que se coloca a um centro reformista e para o qual um escrutínio efetivo por parte de uma cidadania vigorosa e esclarecida muito poderá fazer. Atuemos, então, por forma a conseguirmos ultrapassar as nossas debilidades. Ação em vez de lamentos. É urgente…

José António GIRÃO
Professor da FE/UNL
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.

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