quinta-feira, 5 de abril de 2018

A sociedade suicida

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, saído ontem no jornal i
Da família alargada passámos à família nuclear, desenraizada e desestruturada, fora do seu ambiente tradicional, e desta à atomização social em que o paradigma da família de pai, mãe, filhos, avós, primos, tios passou a ter o nome de “família tradicional”.  
A sociedade suicida
“Tenho defendido que vivemos em sociedades capitalistas, coloniais e patriarcais, por referência aos três principais modos de dominação da era moderna: capitalismo, colonialismo e patriarcado, mais precisamente heteropatriarcado” – Boaventura Sousa Santos, “Público”, sexta-feira, 30 de março de 2018.

Não há democracia com qualidade que possa singrar numa sociedade desequilibrada que não cumpra adequadamente as cláusulas do contrato social entre o Estado e os cidadãos.

Portugal, tal como muitas outras sociedades do mundo ocidental a que pertencemos, é uma sociedade profundamente desequilibrada, atravessada por desigualdades enormes e falta de coesão social e de crença nos seus próprios princípios fundadores, em que os cidadãos consideram ter sido traídos pelo Estado e pelas elites.

É no âmbito da estruturação social ou, mais precisamente, da desestruturação social, que este desequilíbrio mais se faz sentir: de uma sociedade que há meio século era ainda profundamente rural, atávica, que tinha uma taxa de fecundidade e de poupança superiores à média europeia, passámos para uma sociedade de consumo, com uma taxa de fertilidade das mais baixas da Europa, até negativa, com famílias profundamente endividadas, por via de uma urbanização/litoralização crescente e caótica que subverteu completamente os pilares estruturais da organização territorial do país.

Da família alargada passámos à família nuclear, desenraizada e desestruturada, fora do seu ambiente tradicional, e desta à atomização social em que o paradigma da família de pai, mãe, filhos, avós, primos, tios passou a ter o nome de “família tradicional”, como se estivéssemos a descrever uma reserva de índios…

A esta engenharia social, nas palavras de Adriano Moreira, a sociedade portuguesa não deu durante décadas qualquer resposta, antes pelo contrário, assistiu imperturbável – e com aplauso – à destruição da “sociedade patriarcal, mais precisamente heteropatriarcal”, que a esquerda portuguesa considera a forma de “dominação” a abater.

Uma forma de combater esta sociedade “heteropatriarcal” foi a invenção de uma novilíngua destinada a desmerecer os princípios fundadores da sociedade e a promover em seu lugar novos paradigmas sociais, apresentados como merecedores de aplauso. Helena Sacadura Cabral escrevia há dias um artigo em que denunciava precisamente esta novilíngua como arauto da nova sociedade que estamos a criar.

Uma das características desta nova sociedade é a imposição à opinião pública de noções desmerecedoras daquilo em que fomos educados a acreditar e que constitui a pedra de base e o cimento de qualquer sociedade, que necessita, para poder funcionar, dos seus mitos fundadores e dos seus heróis. Sem isso não há uma sociedade, há um conjunto de pessoas que nada liga entre si.

É-nos vendida a ideia de que o “Portugal que deu novos mundos ao mundo” era antes uma sociedade racista e esclavagista, que a nossa gesta universalista foi, antes do mais, um ato de agressão religiosa e racial contra povos que subjugámos, que a nossa pretensa superioridade cultural, no mundo de relativismo em que vivemos, é uma falsidade, que a nossa cultura judaico-cristã foi apenas uma invenção para permitir a elites racistas e gananciosas dominar o resto do mundo.

Muito a propósito, num filme recentemente chegado às salas de cinema, “7 Dias em Entebbe”, que conta a história do desvio de um avião da Air France com dezenas de judeus a bordo por terroristas alemães e palestinianos, um combatente palestiniano diz a um alemão que não entende porque é que ele está a fazer aquilo e conclui: “Eu faço isto porque amo o meu país, tu fazes isto porque odeias o teu.” E é isso mesmo.

Este ódio da esquerda ao nosso país, à sociedade em que nascemos e crescemos, aos seus princípios fundadores, tem consequências gravíssimas que os anos estão a cavar e a aprofundar.

De particular relevo é o ódio da esquerda à dita sociedade “heteropatriarcal”, em tudo o oposto à sociedade que a parte caviar dessa esquerda se habituou a sonhar no Frágil e que hoje tem finalmente a oportunidade de pôr em prática.

Indiferente ao facto de essa sociedade “heteropatriarcal” ser a pedra de toque da estabilidade social, o motor último da poupança, da aposta na educação dos filhos, a esquerda procura imprimir uma especial nota de desvalor a esse tipo de família, ridicularizando-a como um reduto de reacionários sociais.

Mais preocupada em acolher dignamente os desvalidos do mundo, a esquerda parece indiferente à sorte das centenas de milhares de jovens casais portugueses, famílias em potência, que não conseguem encontrar numa cidade como Lisboa um porto de abrigo familiar, uma casa que os acolha, bem como aos seus sonhos, aos seus filhos e, em suma, à sua vida.

Só isto daria um longo artigo, um tratado, mas permitam-me fazer, tão ao jeito da esquerda, uma “modesta proposta”: o que falta à Câmara Municipal de Lisboa, cujo presidente e vereadores hão de ter olhos na cara para ver o que se passa, para decidir urbanizar, de uma forma civilizada e com o fito de criar milhares de domicílios com rendas ao alcance da classe média, as dezenas e dezenas de hectares que existem por urbanizar em Lisboa, em vez de empurrar para periferias cada vez mais desestruturadas e desumanizadas esses jovens casais cujo crime é o de não serem milionários para poderem comprar casa em Lisboa?

O que lhes falta, a eles e aos municípios circundantes, para implementar e pôr a funcionar uma eficiente rede de transportes urbanos que torne suportável a vida a quem já vive longe do centro?

Uma sociedade que não cuida dos seus, que os abandona à sorte ingrata, que é indiferente ao seu próprio futuro, endividada e em regressão, é uma sociedade suicida que a prazo terá perdido o direito de existir.

Nessa sociedade, que é o contrário de tudo o que defendo, não há qualquer democracia, nem de qualidade nem outra.
João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade


NOTA: artigo publicado no jornal i.

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