Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José António Girão, hoje saído no jornal i.
Sejam de esquerda ou de direita, os populismos conduzem a uma governação musculada e autocrática. Só com o reforço da democracia representativa se consegue evitar as consequências nefastas que lhes estão associadas.
Cabeçalho da proposta SEDES/APDQ |
Globalização, democracia e populismo
Múltiplos e variados factos recentes parecem apontar para o emergir de uma nova ordem (político-económica) internacional. A que vigorou até agora, alicerçada nas consequências desastrosas de duas grandes guerras à escala global, assentava na cooperação e integração entre nações como via para o desenvolvimento sustentável e a prosperidade e como forma de evitar a autossuficiência e os nacionalismos extremos, de que o nazismo foi paradigmático. É neste contexto que surge a moderna globalização, resultante da eliminação de barreiras à livre circulação de bens, serviços e fatores de produção (capital e trabalho) entre nações, facilitada pela inovação e pelos grandes avanços tecnológicos (transportes e comunicações) registados nos últimos 50 anos.
Não obstante a teoria demonstrar e a experiência confirmar as vantagens da globalização, resultantes do comércio livre, via economias de escala e vantagens competitivas, é igualmente sabido que os ganhos assim realizados não se distribuem equitativamente entre todos os participantes no processo. Com efeito, os custos e benefícios associados ao mesmo repartem-se de forma assaz assimétrica entre nações e classes sociais. Daí a necessidade de monitorização criteriosa de todo o processo, com vista à implementação de políticas suscetíveis de promover a harmonia entre todos os participantes e de assegurar o bem-estar coletivo. Caso contrário, em vez destes, teremos desavenças, conflitos e a desintegração do processo, com todos os custos inerentes. É este o momento que, tudo indica, estamos a viver. E é neste cenário que se agiganta a importância da democracia e das suas elites políticas. Com efeito, torna-se agora ainda mais premente garantir a vitalidade da democracia, se necessário revitalizando-a, zelando pelo seu correto funcionamento e pondo fim à abordagem laissez-faire (i.e. desregulada) da globalização pelos mercados. Assim se contrariará de forma eficaz o populismo. Contudo, é aqui que reside a dificuldade e o aparente paradoxo.
O populismo apela à vontade da maioria, mas rejeita os controlos e contrapesos (checks & balances) fornecidos pelas instituições da democracia representativa do Estado de direito. No fundo, o populismo resulta de um antagonismo entre as elites e/ou os culturalmente diferentes e o povo, traduzindo-se em larga medida num apelo a formas de democracia direta. Contrapõe-se, assim, à democracia representativa, já que a identificação que faz com a “vontade do povo” implica a marginalização e desconsideração das “vontades minoritárias”. É aqui que reside a essência do populismo e é por isso que é possível considerar existirem populismos de esquerda e de direita: os primeiros identificáveis com regimes defensores da democracia direta e os segundos resultantes de visões nacionalistas extremas. No fundo, ambos conduzem a uma governação musculada, de tipo autocrático, por líderes ditos “fortes”. A conclusão básica e essencial que daqui se extrai é a de que só com o reforço da democracia (representativa) se consegue evitar o populismo, com todas as nefastas consequências que lhe vêm associadas.
Ora, como todos sabemos e é patente no caso português, é o fraco/mau desempenho dos ditos representantes eleitos que gera descontentamento popular, desinteresse pela causa pública e pela participação política e a elevada abstenção eleitoral a que estamos assistindo. Que via de solução adotar? Estamos convictos de que ela passa necessariamente por melhorar de modo significativo a qualidade dos agentes políticos, por forma que também a governação possa melhorar de modo significativo, incluindo nela não só o governo propriamente dito como o funcionamento das suas instituições e órgãos de Estado – em particular, da Assembleia da República, enquanto órgão de representação dos cidadãos e seus anseios. No contexto presente do país, tal exige, como vem sendo referido por muitos, uma reforma do sistema eleitoral para a AR, tendo em vista, nomeadamente: (1) retirar a exclusividade aos partidos políticos na escolha dos candidatos a eventuais representantes eleitos, i.e. permitir que os cidadãos eleitores que assim o desejem possam igualmente propor-se como candidatos a deputados; (2) que a votação nas listas apresentadas pelos partidos possa passar a ser objeto de votação nominal; (3) que os eleitos passem a ser o conjunto dos nomes mais votados pelos eleitores, sejam eles candidatos a título individual ou inseridos em listas partidárias; eventualmente (4) que os votos considerados nulos ou em branco passem a corresponder a lugares de “não eleitos”, assim traduzindo (percentualmente) o descontentamento dos eleitores com os programas eleitorais apresentados pelos partidos e pelos candidatos, os quais não possibilitaram a adesão e não mereceram a necessária confiança duma parte do eleitorado.
Os princípios enumerados são, obviamente, suscetíveis de serem inseridos e traduzidos numa lei eleitoral para a Assembleia da República que garanta a justeza da representatividade e proporcionalidade dos escolhidos face aos resultados expressos. Sendo possíveis várias formulações para a lei, deixamos esse trabalho para consideração dos especialistas e dos partidos atuais. Na ausência de outras, existe para já a proposta “Reforma eleitoral em Portugal”, apresentada conjuntamente pela SEDES e pela Associação Por Uma Democracia de Qualidade (APDQ), que pode ser consultada em http://sedes.pt/multimedia/File/ 180404_APDQSEDES_ReformaEleitoral.pdf.
Resta formular o voto de que o poder partidário em Portugal se dinamize por forma a que o atual sistema eleitoral possa ser revisto antes de se completar meio século sobre o pós-25 de Abril e, obviamente, antes de o populismo poder ganhar foros de representatividade em Portugal.
José António GIRÃO
Professor da FE/UNL
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.
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