Ontem, o Governo anunciou, finalmente, os traços gerais da proposta que, no quadro do OE 2014, tenciona apresentar em matéria de cortes nas pensões de sobrevivência.
Independentemente de se concordar, ou não, com a proposta, há um dado importante a reter: o debate gerado ao longo de uma semana inteira teve utilidade evidente e indiscutível. Primeiro, o Governo reviu aparentemente, de forma significativa, o que pareciam ser as intenções iniciais: não se atingem já pensões acima de 629 €, mas apenas pensões de valor acumulado superior a 2.000 €. E, em segundo lugar, a ideia da “condição de recursos” parece ter ido realmente à vida, por muito – vá lá perceber-se porquê – que, do lado do Governo, continue a usar-se esse erro técnico.
Na verdade, o que o Governo ontem apresentou não tem nada a ver com “condição de recursos”, mas com um regime de escalões de redução progressiva no acesso à pensão de sobrevivência acumulada, isto é, algo muito semelhante a um imposto progressivo (como o IRS) ou à Contribuição Extraordinária de Solidariedade.
Não contesto a ideia de, em tempo de escassez, de sacrifícios e de cortes, se pedir mais àqueles que mais podem e menos aos que podem menos. É de elementar justiça que seja assim. Mas isto não tem nada a ver com “condição de recursos” – e é bom que não tenha.
A “condição de recursos” aplica-se somente às prestações sociais não contributivas – e as pensões de sobrevivência decorrem do regime contributivo, integrando-se no seguro social para que cada um descontou ao longo da vida. Misturar uma coisa e outra seria nacionalizar as pensões e as contribuições na parte correspondente – pode ser que alguém a tanto se atreva, mas seria estranho e particularmente condenável que fosse um Governo CDS e PSD a inaugurar essa “nacionalização” ou “socialização”.
O blogue 4R - Quarta República dava já, na sexta-feira passada, uma boa ajuda a compreender do que se trata: O que é a "condição de recursos"... E quem explica bem o que é “condição de recursos” é a Segurança Social, por exemplo no GUIA PRÁTICO do Instituto da Segurança Social:
A condição de recursos é o conjunto de condições que o agregado familiar deve reunir para poder ter acesso às Prestações Familiares, ao Subsídio Social de Desemprego e aos Subsídios Sociais de Parentalidade, bem como a outros subsídios e apoios do Estado.
Define o limite máximo de rendimentos até ao qual as pessoas têm direito a estas prestações sociais.
E, a seguir, o mesmo GUIA PRÁTICO explica como se verifica a dita “condição de recursos”:
A condição de recursos é verificada através dos rendimentos da pessoa que pede a prestação e dos elementos do seu agregado familiar, do seguinte modo:
1.º Avaliação do valor do Património Mobiliário do agregado familiar
2.º Avaliação do rendimento global do agregado familiar
Como se vê, isto não tem nada a ver com aquilo que o Governo, ontem, anunciou com destaque para o novo regime das pensões de sobrevivência – e é bom que não tenha.
Todavia, além da tabela de reduções que encheram o noticiário geral, as notícias acrescentam, quase a terminar, uma parte que tem passado praticamente despercebida. É esta:
E dito isto, revelou que o Governo vai também tentar encontrar uma forma para avaliar os rendimentos dos contribuintes ainda no activo e que tenham rendimentos de capital ou mesmo pensões de sobrevivência.
Ou seja, o Executivo quer encontrar uma forma de avaliar os rendimentos das pessoas que auferem uma pensão de viuvez e que tenha um “salário ou rendimentos de capital”. Se, no final das contas, os rendimentos que geram, além da pensão de sobrevivência, foram “muito altos”, “não fará sentido que não” haja um impacto também para estas pessoas, adiantou Paulo Portas.
Se vier a ser assim, já pode perceber-se a teimosa insistência na “condição de recursos” – e já não seria apenas um erro técnico de linguagem, mas um erro político de vontade.
Ainda assim, também essa nova bisbilhotice orweliana sobre os rendimentos e os capitais dos que pagaram para o regime contributivo não seria ainda exactamente uma “condição de recursos” proprio sensu; mas já seria uma priminha muito chegada. Além da carga burocrática que geraria, seria mais uma nova intromissão inqualificável na situação pessoal e patrimonial dos que pagaram as suas contribuições. Perigoso. Muito perigoso.
Ainda assim, também essa nova bisbilhotice orweliana sobre os rendimentos e os capitais dos que pagaram para o regime contributivo não seria ainda exactamente uma “condição de recursos” proprio sensu; mas já seria uma priminha muito chegada. Além da carga burocrática que geraria, seria mais uma nova intromissão inqualificável na situação pessoal e patrimonial dos que pagaram as suas contribuições. Perigoso. Muito perigoso.
O melhor é mesmo deixar cair o infeliz erro da expressão e agir com escrupuloso rigor técnico e alguma normalidade jurídica.
3 comentários:
Caro José Ribeiro e Castro
Agradeço a chamada para o meu texto no Quarta República. Teremos que aguardar pela proposta do OE para perceber como vai o governo aplicar a medida a pensionistas com rendimentos de trabalho e rendimentos de capitais.
Atenção que os pensionistas de sobrevivência abrangidos pela medida, tal como ontem foi apresentada, também podem ter rendimentos de capitais. Acho perigoso ir por este caminho. A Segurança Social não é um sistema fiscal.
É por causa desta confusão e da lamentável invocação de uma "condição de recursos" que o DN titulou assim:
"Viúvos obrigados a provar rendimentos para ter pensão"
e escreveu isto:
"Reforma deixa de ser automática e beneficiários terão de revelar o total dos seus recursos."
http://www.dn.pt/inicio/tv/interior.aspx?content_id=3461821&seccao=Media&page=-1
E na SIC também:
"Viúvos vão ser obrigados a provar total dos seus recursos"
http://sicnoticias.sapo.pt/economia/2013/10/07/viuvos-vao-ser-obrigados-a-provar-total-dos-seus-recursos
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