Num dia muito
quente do inicio de verão de 2003, ia eu a meio da manhã, já passado Amarante a
caminho de Mirandela para celebrar com o
Presidente da Câmara local um protocolo quanto à instalação do Tribunal
Administrativo e Fiscal, entretido na leitura dos jornais, quando tocou o
telemóvel: era o meu chefe de Gabinete.
Perguntava-me
se tinha ouvido as noticias na rádio. Não tinha, estava a ler os jornais; então
que ouvisse, o Paulo Pedroso tinha acabado de ser preso, no âmbito do processo
da «Casa Pia».
Arredada
ficava a possibilidade de ver nessa noite o Porto jogar contra o Celtic em
Sevilha a final da taça UEFA.
Dizer que
fiquei de boca aberta ou especado de espanto, é pouco. O Dr. Paulo Pedroso
tinha sido Secretário de Estado e pouco mais de um ano antes era Ministro da
Segurança Social. Nesse momento era Deputado e porta-voz do Partido Socialista.
Dizia-se que era o nº 2 de Ferro Rodrigues. Preso? Nem era um caso de «sic
transit gloria mundi». Era um caso de queda a pique, tão trágica e chocante que
não havia palavras para explicar.
Nos dias
seguintes a imprensa não falava de outra coisa. No Público, Augusto Santos
Silva insinuava uma cabala, uma maquinação contra o PS, e se havia maquinação
contra o PS que envolvesse a polícia judiciária e o sistema de investigação
penal, o Ministério da Justiça estava na berlinda, claro.
Ninguém de
entre os responsáveis do Ministério revelou saber mais do que as noticias
saídas nos jornais e nas televisões: a prisão em directo, a invasão da
Assembleia da República com as câmaras de televisão atrás, acusações vagas...
Senti um calafrio:
que diabo, pode-se ser preso com base «nisso»? em directo? Na TV? Um deputado
da República? Desde esse momento mantenho uma opinião: se a acusação contra Paulo
Pedroso se viesse a revelar insubsistente, estávamos a assistir ao colapso do
Estado de Direito.
Muitos meses
depois Paulo Pedroso seria libertado após o Tribunal Constitucional ter
declarado que o processo não se tinha revestido do mínimo de garantias de
direitos e liberdades, e nem chegou a ser acusado porque a Relação de Lisboa revogou
o despacho de acusação por entender que não continha o mínimo de indícios que
permitissem formular uma acusação.
Para mim já
não foi surpresa: sabia há meses que aquela acusação não podia dar em nada
porque a prova era exclusivamente testemunhal e as testemunhas não pareciam ser
fiáveis.
Surpresa foi
não ter acontecido nada: nem aos investigadores do Ministério Público que com
ligeireza deduziram uma acusação insubsistente, nem ao Mmº Juiz de Instrução, o
célebre «justiceiro» da T-shirt, que depois de ter escaqueirado o crédito da
Justiça Portuguesa foi à vida dele.
A Justiça
interiorizou mais um fiasco, absorveu-o e esqueceu-o. Portugal ficou mais, mas
muito mais pobre.
Em Maio de
2007 uma menina inglesa desapareceu no Algarve. Meses depois, os órgãos de
investigação criminal chegavam à conclusão habitual: a culpa era de certeza dos
Pais. Provas? Indícios? Motivos? Para quê, se há a imprensa? Os Pais foram
constituídos arguidos.
Um ano depois
o processo foi arquivado, por absoluta falta de provas, pistas ou indícios.
Entretanto os Pais da menina ficaram amarrados ao pelourinho da opinião pública
habituada e sedenta do sangue de crapulosos culpados que o «sistema» lhe serve,
já confessados e até arrependidos do que possam ter feito, sobretudo depois de
uma boa tareia pedagógica...
Mais uma vez,
a Justiça interiorizou o fiasco e nada aconteceu.
São casos
conhecidos que nos podem dar uma noção dos casos desconhecidos que todos os
dias acontecem.
Num sistema
onde o erro grosseiro, o abuso dos direitos liberdades e garantias, a ofensa da
rectidão processual não têm consequências, não há qualquer estímulo para
melhorar o que está visivelmente estragado, conduzindo a um sistema de
investigação desleixado, permeável à influência política, corporativo, irresponsável,
inamovível, incapaz de se regenerar e pior do que tudo, convencido da sua
infalibilidade. Já nem os Papas...
É este o
Estado de direito que queremos?
(este artigo foi escrito há anos e enviado ao jornal «Público» que recusou publicá-lo...)
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