sábado, 30 de novembro de 2013

O dissensual


Mário Soares chegou a ser o homem mais consensual de Portugal. Fê-lo por mérito próprio. A sua coerência e constância pela liberdade e pela democracia; a coragem e determinação com que liderou, no plano político civil, a luta dos portugueses contra a deriva totalitária, em 1975; a sua lendária bonomia; o modo como exerceu dois mandatos presidenciais, sobretudo o primeiro - fizeram-no personificar a expressão de que tanto gostava, "o Presidente de todos os portugueses", e encarnar longamente essa imagem. 

Hoje, está claro que corre o risco de acabar como o homem mais dissensual de Portugal. Fá-lo também por demérito próprio: assume-se como o cavador de cizânias, fracturas, conflitos e divisões por toda a parte. 

Não está em causa a combatividade politica que mantém e que é saudável, embora o exponha a riscos e a críticas: baixa-o do pedestal e vai pondo em causa o estatuto de impunidade que conquistara. Mas é antes a falta de noção da medida e a tendência para o excesso, para a demagogia e até para a falsidade e a irresponsabilidade. Chega a dar a ideia de que não escolhe alvos - vai tudo a eito. Como se diz na gíria: "chuta para onde está virado".

Ficou na memória a evocação por Soares, há meses, do regicídio, sem o condenar - ficando até a um milímetro de parecer que o recomendava. Choca a forma grosseira como distrata o Presidente da República, desrespeitando o cargo e a função que também foram suas. Espanta vê-lo falar, por vezes, como se fosse chefe de um pequeno partido radical e extremista, senão mesmo de uma facção. Choveram as críticas recentes aos apelos implícitos à violência social e política. Multiplicam-se episódios de verbo excessivo. E, hoje, em artigo no PÚBLICO, calhou a vez do Patriarca, a quem Soares se atira como gato a bofe.

No texto intitulado "O Papa Francisco e a Igreja portuguesa", Mário Soares finge elogiar o Papa Francisco, que é um estilo que sempre cultivou: aprecia muito elogiar os Papas, ao mesmo tempo que recorda não ter religião e ser agnóstico ou ateu. Mas este elogio ao Papa está ali como puro artifício retórico, para alvejar D. Manuel Clemente: elogia o Papa para o espetar no Patriarca. 

Soares chega a citar a recente «Exortação Apostólica "Evangelii Gaudium" do Santo Papa» (sic), que eu quase que aposto que ainda nem leu sequer. E, a seguir, prego a fundo sobre o novo Bispo de Lisboa :
«[...] A Igreja portuguesa tem mantido um silêncio inaceitável, tal como o actual patriarca, em relação ao Papa. Parece que não gosta dele ou mesmo que o detesta.
Prefere a corrupção e a imoralidade, que reinava no Vaticano, à solidariedade do Papa que respeita os pobres? Que patriarca é este que há meses não fala e, em especial, de Sua Santidade. Aliás, quando era bispo fazia-se passar por um homem desempoeirado e progressista – que afinal não é; tendo em conta o que não diz agora, parece que nunca foi.»
Tudo para acabar o texto num desforço histórico, carregado de torpeza:
«Não deixe que a Igreja portuguesa volte a ser o que foi no tempo do colonialismo e da ditadura...»
O texto de Soares revela, aliás, desconhecimento - ficando a dúvida sobre se decorre mesmo da ignorância do próprio autor ou se pretende apenas jogar com a ignorância dos leitores. É que D. Manuel Clemente tem falado múltiplas vezes sobre o novo Papa. E como poderia não o fazer? O Papa Francisco tem marcado de tal forma a actualidade que seria impossível não o citar, nem comentar.

A ignorância ou a falsidade reveladas por Mário Soares são tão fortes, que ignora que a Igreja portuguesa acaba de publicar uma mensagem apostólica sobre questões sociais (um dos temas incontornáveis da nossa actualidade) - «Desafios éticos do trabalho humano» -, aprovada há 15 dias pela Conferência Episcopal presidida por D. Manuel Clemente, onde o Papa e sua doutrina são directamente citados. Soares não a leu, como por certo também não leu a Evangelii Gaudium...

Se tivesse lido a mensagem dos bispos, teria lido isto: "O Papa Francisco sublinhou, recentemente, que importa «voltar a colocar no centro a pessoa e o trabalho. A crise económica tem uma dimensão europeia global; no entanto, a crise não é apenas económica, mas também ética, espiritual e humana. Na raiz existe uma traição ao bem comum, quer da parte do indivíduo, quer da parte de certos grupos de poder. Por conseguinte, é necessário tirar a centralidade à lei do lucro e do rendimento, e voltar a dar a prioridade à pessoa e ao bem comum» (...) Seria contraditória, em si mesma, qualquer medida que procurasse promover o emprego à custa de outras dimensões da dignidade humana. Assim, recordou o Papa Francisco num encontro com os trabalhadores: «No centro deve estar o homem e a mulher, como Deus deseja, e não o dinheiro». A dignidade do capital está no serviço das pessoas e na promoção do seu progresso."

E, ontem mesmo, dir-se-ia que, por providencial coincidência, de novo o Patriarca de Lisboa fartou-se de falar do Papa e do seu exemplo, numa muito concorrida sessão pública por ocasião do encerramento do Ano da Fé, "Uma Esperança Sem Fronteiras".

Disse aí, nomeadamente, D. Manuel Clemente nessa sessão: «Por que é que o Papa Francisco admira tanto as pessoas? É porque é autêntico. As pessoas percebem que as suas declarações brotam de um vivência muito constante.» 

As notícias informam mais: "D. Manuel Clemente falava sobre o Papa a propósito da história da relação entre a fé e os direitos humanos, que antecedeu uma conversa entre o padre José Tolentino Mendonça e Nello Scavo." E continuava o Bispo de Lisboa: "Segundo D. Manuel Clemente, a forma natural como o actual Papa trabalhou activamente para defender os direitos humanos dos seus concidadãos resulta de uma transformação da relação entre a Igreja e a noção de direitos humanos que tem pelo menos dois séculos de história, apesar de «a generalidade das pessoas que lutaram pelos direitos humanos referirem Jesus como fonte de inspiração». Se essa relação nem sempre foi pacífica, isso deve-se em parte ao facto de no mundo latino, que inclui Portugal, as conquistas dos direitos humanos se terem feito à custa de conflitos com monarquias que estavam muito associadas à Igreja. Porém, em simultâneo, noutras partes da Europa onde os católicos eram e ainda são minoritários, são estes que tomam a dianteira para reivindicar os seus direitos humanos."

A notícia da Rádio Renascença anuncia outras figuras na sessão de ontem: "D. Manuel Clemente falava no primeiro painel de uma conferência que conta ainda com a presença de Jorge Sampaio e do arcebispo maronita de Damasco, Samir Nassar, (...) sobre a situação na Síria." Ou seja, bastaria Mário Soares ter falado com Jorge Sampaio e evitava escrever disparates... Assim, passa desnecessariamente por mentiroso - apenas intriguista e mentiroso.

O artigo de Mário Soares no PÚBLICO de hoje não é tanto ser violento e injusto. É ser revelador de intolerância, o pior do jacobinismo e um terrível defeito de carácter.

Este Soares azedo, avinagrado, venenoso e iracundo, depois de ter sido "o Presidente de todos os portugueses" corre o risco de acabar como o Presidente de quase nenhum português. Soares que, nas eleições presidenciais de 1991, chegou a colher 3,5 milhões de votos (70,35%), tombou para menos de 800 mil (14,31%) quando se reapresentou em 2001, ficando bem atrás de Manuel Alegre. Hoje, teria menos que isso.

O mal fatal das referências é quando as perdemos, porque se perdem e perderam a si próprias.