quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Estava tudo a correr tão bem

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, saído ontem no jornal i
O Verão de 2017 vai ficar na nossa história como o Verão em que um governo triunfal, cheio de si e dos seus sucessos, presidiu à maior tragédia portuguesa da época contemporânea.


Estava tudo a correr tão bem
“A húbris é um conceito grego que pode ser traduzido como ‘tudo o que passa da medida; descomedimento’, e que atualmente alude a uma confiança excessiva, um orgulho exagerado, presunção, arrogância ou insolência, que com frequência termina sendo punida.” (citado da Wikipédia).

Entre junho de 2011 e outubro de 2015 foi lançada uma campanha de ódio contra o governo de coligação AD que teve a sua “consagração” com a grandiosa manifestação contra a TSU que uniu contra o governo desde as mães de família da burguesia urbana até aos operários da cintura industrial.

Apesar dessa campanha de ódio, o PSD e o seu presidente, Passos Coelho, conseguiram em outubro de 2015 uma vitória eleitoral ao serem o partido mais votado nas eleições; com o país partido ao meio e ansioso por virar a página, António Costa e o PS conseguiram dar a volta ao resultado e montar uma frente de esquerda com apoio maioritário na Assembleia da República.

A partir daí foram só boas notícias para o governo e desastres para a oposição: na frente social caiu uma calmaria regada a euros do Orçamento do Estado; na frente económica tivemos dois anos de crescimento razoável, queda do défice, estabilização aparente da dívida e saída do patamar de lixo em que as agências de notação nos tinham colocado. E Portugal ganhou o Euro 2016. Estava tudo a correr tão bem!...

Mesmo no trágico incêndio de Pedrógão Grande, o governo conseguiu reequilibrar-se rapidamente, deixando a Marcelo Rebelo de Sousa a despesa da consolação dos povos e a confirmação de que tinha sido “feito tudo o que podia ser feito”…

Foram encontrados com rapidez e a preciosa ajuda de uns tantos fazedores de opinião os culpados do tremendo incêndio: o SIRESP e os eucaliptos. Pronto, tendo sido feito tudo o que podia ser feito e havendo culpados óbvios, o governo estava absolvido e as boas notícias continuaram a fluir ao longo do Verão.

Entretanto, António Costa fez saber que ia proceder à maior reforma da floresta desde o tempo de D. Dinis, no século XIII (depois da tragédia de outubro, temos de convir que já conseguiu: o Pinhal de Leiria, plantado por D. Dinis, ardeu quase todo).

O início de setembro ainda trouxe a Costa novas e mais excitantes boas notícias: segundo as sondagens e os comentadores, teve retumbante vitória autárquica, ampliando as maiorias absolutas em Lisboa e no Porto e… parece que conseguiu mais 1,5% de votos que há quatro anos… e que ganhou dez câmaras ao PCP…

Como a primeira regra de um bom spin é a de não deixar os factos atrapalhar uma boa notícia, ninguém se deu ao trabalho de retificar a ideia da fabulosa vitória de 1 de outubro. Estava, portanto, tudo a correr tão bem!...

O que não estava nos cálculos de António Costa era que chovesse uma semana tarde demais, mas foi o que aconteceu e, tragédia, voltou a arder tudo o que podia arder e, mais uma vez, não foi feito nada do que devia ter sido feito. As mesmas falhas de junho, a mesma falta de coordenação, a mesma falta de prevenção, de cuidado, de autoridade útil, a mesma falência do Estado.

Depois de terem demonstrado aos pobres humanos que todos os cálculos são pó, os deuses fizeram chover ainda muita coisa ardia, mas só depois de terem morrido mais umas largas dezenas de pessoas e de ter ardido o coração de Portugal.
Arrogando-se da vox deo na sua versão de vox populi, surgiu Marcelo a castigar a húbris do governo costista, a exigir-lhe humilhação e confissão dos pecados, e Costa, o equilibrista, pareceu ceder, demitiu a ministra, avança com reformas. 
Se quisermos simplificar, foi a húbris de António Costa e do seu governo, a falta de humildade democrática, que causaram a desgraça. Se tivessem escutado o muito que havia para dizer sobre estas matérias, se não tivessem embandeirado em arco com os sucessos fáceis do governo, se não estivessem convencidos de que tudo se resolve com meia dúzia de palavras e de milhões de euros, se tivessem a convicção firme de que democracia é diálogo e respeito mútuo, talvez muito daquilo que aconteceu pudesse ter sido evitado.

Para além das mortes, das perdas materiais quantas vezes sem solução à vista para o modo de vida de quem as sofreu, da tremenda perda que todos sofremos, fica a sensação de que este é um governo para o bom tempo, para quando as coisas correm de feição, e não para crises ou dificuldades, e é isso que é aterrador, a sensação de se ficar a falar sozinho, de os avisos caírem em saco roto, de que quem está em posição de mandar não ouve nem quer saber.

Entre um governo que não ouve ninguém e só finge ouvir o Presidente e uma oposição à deriva, cada qual enquistado nos seus pequenos ódios e frustrações, quem são os mediadores que nos representam perante o poder instituído? Onde estão os nossos representantes, não os das oligarquias partidárias, não os ungidos dos diretórios, mas os nossos, aqueles que nós escolhemos e que responsabilizaremos se falharem em representar-nos?

O Verão de 2017 vai ficar na nossa história como o Verão em que um governo triunfal, cheio de si e dos seus sucessos, presidiu à maior tragédia portuguesa da época contemporânea. Queira Deus que o Outono e o Inverno nos tragam um reforço da sociedade civil e da nossa capacidade de afirmação, reclamação e indignação.


João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA:
artigo publicado no jornal i.

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