quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Limitação de mandatos: pontaria falhada outra vez

Foi o Bloco de Esquerda que levantou esta última lebre, na reclamação apresentada contra a candidatura de Luís Filipe Menezes no Porto, como o PÚBLICO noticiou. E o jornal i correu logo atrás.

Noticiou o PÚBLICO, anteontem: «O BE recorda, por isso, dois projectos de lei do PSD e do CDS, de 2001 e 2003, que, apesar de rejeitados, demonstram que a "limitação dos mandatos pretendida pelos deputados é funcional e não territorial".» E acrescentava, ontem, em título, o jornal i: «PSD e CDS defenderam limitação de mandatos aplicada à função».

O Bloco de Esquerda - é preciso ter presente - não tem nesta matéria a mais leve independência. Por um lado, é o único partido que defende uma tese  restritiva própria, que, de facto, sempre sustentou continuamente em sucessivas legislaturas parlamentares - mas viu os seus projectos de lei sempre derrotados. Por outro lado, é um partido concorrente a estas eleições autárquicas e aquele que conduz precisamente a impugnação judicial de 11 candidaturas doutros concorrentes, com base neste fundamento da "limitação de mandatos".

Por isso, quando o BE apresenta um argumento, não é para acreditar, é para desconfiar: não se deve dar logo por certo, é preciso ir verificar bem a solidez do argumento ou a falta dela. Porquê? Porque o BE não possa ter razão? Não. Até pode ter. Mas apenas porque o BE é parte interessada: não tem isenção, nem imparcialidade; e a sua objectividade pode estar toldada. Neste caso, está efectivamente toldada e os advogados do BE procuraram induzir em erro os juízes. Isto é, "defenderam a sua dama", a impugnação.

À falta do texto da reclamação do BE (que, entretanto, foi já rejeitada), sigamos a notícia do i.

A notícia cita bem: «Dois anos antes de o parlamento aprovar a limitação de mandatos [ou seja, na IX Legislatura, em 2003], PSD e CDS apresentaram um projecto que impedia presidentes de câmara e de junta de cumprir "mais de três mandatos nas respectivas funções".» Mas conclui mal: o significado do projecto não é o que se pôs no título.

O mesmo se passa, quando a notícia vai mais atrás, à VIII Legislatura: «O histórico de tentativas, por parte de vários partidos, de avançar com a limitação de mandatos no poder local vai até ao início dos anos 90. Mas basta ir à legislatura anterior, a oitava, para encontrar outros projectos de lei que defendem esta medida. Da autoria do Bloco de Esquerda (que volta a apresentar uma proposta em 2005, num texto que é debatido em simultâneo com a proposta do governo que dará origem à actual lei de limitação de mandatos). E um outro do CDS. Assinado pelo deputado Basílio Horta (agora no PS), o texto "procura assegurar a renovação do sistema, criando-se condições para o exercício transparente das funções autárquicas, prevendo-se um limite máximo de mandatos para o exercício das funções de presidente da câmara e de vereadores do executivo a quem tenham sido atribuídos pelouros". O projecto foi chumbado: teve os votos contra da esquerda e a abstenção do PSD.» Tudo isto está globalmente certo. Mas o significado, uma vez mais, não é de todo aquele que se pôs em título.

Recapitulemos, então, os factos reais e objectivos.

VIII Legislatura (1999/02) foi aquela em que foi aprovada a actual Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais: a Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto, que resultou fundamentalmente da Proposta de Lei n.º 34/VIII, do então Governo PS (Guterres), apresentada a 20 de Junho de 2000 e cujo processo legislativo pode ser recordado ao pormenor através do portal da Assembleia da República. Entrada esta iniciativa do Governo, vários outros partidos (entre os quais CDS-PP, BE e PSD) apresentaram projectos de lei próprios, a fim de entrarem em discussão conjunta. A sequência fundamental pode ser vista aqui. A discussão conjunta de todos esses textos (e outros) teve lugar a 7 de Fevereiro de 2001, ocorrendo a votação na generalidade a 8 de Fevereiro. E a votação final global do diploma resultante dos variados trabalhos parlamentares ocorreu a 28 de Junho de 2001. A nova lei eleitoral teve os votos favoráveis dos PS, CDS-PP e BE; e as abstenções de PSD, PCP e PEV. E não tinha uma única norma sobre limitação de mandatos.

Foi neste contexto que o PSD apresentou, em 30 de Janeiro de 2001, o seu Projecto de Lei n.º 357/VIII, já em cima do referido debate na generalidade. Pela respectiva folha do processo legislativo, verificamos que ainda foi aprovado na generalidade (com a abstenção do PS), para o efeito de baixar também à comissão para os trabalhos na especialidade. Mas não viu as suas orientações acolhida, razão por que o PSD se absteria na votação final da lei. O projecto do PSD não tinha, aliás, nada sobre limitação de mandatos.

E foi também neste quadro que, efectivamente, como o i recorda, BE e CDS apresentaram propostas que tocavam já o tema da limitação de mandatos. Ambas entraram a 31 de Janeiro de 2001, em cima do aprazado debate na generalidade.

Projecto de Lei 360/VIII do BE procurava introduzir a limitação a dois mandatos dos presidentes e vereadores a tempo inteiro, usando uma redacção, porém, que hoje seria igualmente equívoca na querela que se montou entre a "função" e o "território": «O cargo de presidente ou de vereador a tempo inteiro não pode ser exercido pelo mesmo cidadão por mais de dois mandatos consecutivos.» Mas, seja como for, a ideia do Bloco foi logo chumbada na votação na generalidade e não teve qualquer sequência, como se verifica na respectiva folha de processo parlamentar. Curiosamente, porém, como já acima referi, o BE votaria ao lado do PS e do CDS a aprovação da nova eleitoral autárquica, apesar de esta nada conter sobre limitação de mandatos.

Por seu turno, o Projeto de Lei 364/VIII do CDS-PP tem, na verdade, o conteúdo que o jornal i recorda, mas sem o alcance que pretende. Logo na Exposição de Motivos, o CDS declara que «procura-se assegurar a renovação do sistema, (...) prevendo-se um limite máximo de mandatos para o exercício das funções de presidente da câmara e de vereadores do executivo a quem tenham sido atribuídos pelouros.» E explica que, «ao consagrar-se uma limitação de três mandatos, ou seja um período de 12 anos, assegura-se a legítima aspiração dos titulares destes órgãos de apresentarem obra feita em prol da suas populações, evitando-se, ao mesmo tempo, a criação de dependências, temores reverenciais ou cumplicidades indesejáveis num sistema que se pretende livre, plural e transparente. Acresce que, com esta alteração, promove-se a renovação da classe política estimulando a participação dos mais novos.» E, desde logo, esta fundamentação é clara a apontar para a limitação territorial, quer ao querer proteger a realização de obra (a tese do CDS quanto aos três mandatos: planear, executar, concluir), quer ao identificar como ratio legis afastar o condicionamento do eleitorado por uma rede de "dependências, temores e cumplicidades" gerada pelo prolongado exercício do poder no mesmo local. E, na verdade, no articulado, este propósito não é contemplado nas normas relativas a inelegibilidades, fossem as absolutas (art.º 5º), fossem as relativas (art.º 6º) - como seria tecnicamente o correcto se se quisesse efectivamente barrar a candidatura a Presidente de Câmara Municipal em qualquer lugar a um presidente que já o tivesse sido por três vezes consecutivas. Antes a questão é tratada já na parte final do projecto, num Capítulo sobre "mandato", dizendo-se: «Os titulares dos mandatos de presidente da câmara municipal e de vereadores que têm ou tenham tido pelouros atribuídos na gestão municipal, não podem ser reeleitos mais de três mandatos consecutivos.» (cfr. art.º 216º, n.º 3) O uso do verbo "reeleger" indicia suficientemente o que o CDS pretendia: impedir a reeleição para além do terceiro mandato consecutivo, ou seja, sempre na mesma autarquia tanto para o "consecutivo", como para se ser "reeleito". Mas, fosse como fosse, o projecto de lei do CDS foi logo rejeitado na votação na generalidade, não tendo sequência, como se vê na respectiva folha de processo parlamentar. E, curiosamente, como já recordei há pouco, o CDS viria a aprovar a versão final da lei, a par do PS e do BE.

Fica, assim, suficiente revista a história de 2001, que não tem nada a ver com aquilo que o Bloco procurou, agora, aparentemente, dar a entender e o jornal i amplificou. E passemos à história de 2003.

Na IX Legislatura (2002/05), vários partidos apresentaram, de facto, textos apontados à limitação de mandatos autárquicos (além de outros), cujo teor e tramitação podemos seguir, uma vez mais, ao pormenor, nas respectivas folhas de processo: os PSD e CDS (então em coligação de governo) apresentaram o Projecto de Lei 276/IX; o BE apresentou o Projecto de Lei 277/IX; e o PS apresentou o Projecto de Lei 280/IX.

Todos estes textos foram apresentados na mesma data - 24 de Abril de 2003 - e todos tiveram o mesmíssimo percurso e destino: foram encaminhados para a Comissão Eventual para a Reforma do Sistema Político e caducaram. Ou seja, não passaram de textos que, na prática, serviram para continuarem a alimentar um debate político mais geral que então decorria no Parlamento.

Este debate, mais alargado e profundo, teve, aliás, quanto ao tema específico da limitação de mandatos, um eco prático na revisão constitucional que foi efectuada nessa mesma legislatura. A revisão constitucional de 2004 aditou um novo n.º 2 ao artigo da Constituição relativo ao princípio da renovação (art.º 118º, nº 2 CRP: «A lei pode determinar limites à renovação sucessiva de mandatos dos titulares de cargos políticos executivos.»), o que viria a permitir a futura lei de limitação de mandatos finalmente adoptada na X Legislatura, já em 2005.

Aqueles textos legislativos de 2033 não tiveram, assim, o menor andamento prático.

projecto PSD/CDS tem, de facto, a redacção muito pouco feliz que o jornal i refere: «Não podem exercer mais de três mandatos sucessivos nas respectivas funções os seguintes titulares: (a) Presidentes de câmara municipal; (b) Presidentes de juntas de freguesia (...)» (cfr. art.º 1º)  Mas, sendo embora um texto pouco claro (sobretudo com os olhos de hoje), não se pode de todo extrair dele a conclusão peremptória de que PSD e CDS visavam a "função" e não o "território", entrando na querela confusa e absurda que, agora, se abriu por aí. Na verdade, a expressão "três mandatos sucessivos nas respectivas funções" tanto pode ter uma interpretação, como outra. Para o pouco cuidado neste texto poderão ter contribuído quer o contexto especial já acima referido (meros contributos para um debate de fundo mais alargado, que decorria), quer a circunstância de este projecto de lei remeter ainda para outra alteração específica da lei eleitoral que, essa sim, tudo determinaria (cfr. art.º 2º).

Por seu turno, o projecto do BE, que sempre perfilhou a tese mais restritiva, adopta a técnica que viria a tentar novamente em 2005 e actua, por isso, no quadro das inelegibilidades - e não apenas de uma limitação de mandatos, em sentido estrito. Por isso, propunha-se aditar um novo n.º 4 ao artigo 7º da Lei Eleitoral sobre "Inelegibilidades especiais", que diria o seguinte: «Não são elegíveis, durante um quadriénio, para os cargos de carácter executivo dos órgãos autárquicos, os cidadãos que tenham exercido esses mesmos cargos a tempo inteiro durante dois mandatos completos consecutivos, ou por um período superior a oito anos.» 

E, por último, o projecto do PS dizia: «O presidente da câmara municipal e o presidente da junta de freguesia só podem ser reeleitos até ao limite de três mandatos consecutivos, não podendo ser eleitos durante o triénio imediatamente subsequente ao termo do terceiro mandato consecutivo.» (cfr. art.º 3º, n.º1) - o uso do verbo "reeleger" indica claramente que visava impedir apenas uma reeleição, ou seja, unicamente na mesma autarquia.

Porém, a IX Legislatura nada legislaria uma vez mais nesta matéria - nem tentou sequer. A limitação de mandatos seria fixada já na X Legislatura (2005/09), por debates parlamentares que decorreram entre Maio e Julho de 2005, quando o PS detinha maioria absoluta parlamentar.

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