quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A hipótese de um Governo de iniciativa presidencial


A pior parte da intervenção de Cavaco Silva durante a crise de Julho correspondeu, a meu ver, ao facto de ter enunciado a tese da impossibilidade de governos de iniciativa presidencial. Afirmou o Presidente da República, no dia 18 de Julho:
«[Governo de iniciativa presidencial] É um plano que está totalmente excluído, porque desde 1982 com a revisão constitucional os Governos deixaram de responder politicamente perante o Presidente da República. Se um Governo que passa na Assembleia não responde perante o Presidente mas só perante a Assembleia, então não faz qualquer sentido um Governo de iniciativa presidencial.» 
Cavaco Silva, nesta declaração, diz coisas que são verdade e outras que o não são. Por um lado, é certo que houve essa revisão constitucional em 1982 - e que ela quis limitar a possibilidade de governos presidenciais, a que Ramalho Eanes recorrera algumas vezes. Mas, por outro lado, a conclusão de Cavaco Silva é excessiva: os governos de iniciativa presidencial continuam a ser uma possibilidade, ainda que em termos mais limitados do que antes de 1982.

Nota prévia fundamental a ter presente é a de que a interpretação do Presidente a respeito dos seus poderes nunca é uma interpretação neutra e "científica"; é uma interpretação interessada. Claro que está balizada pelo texto constitucional; e não se pode inventar o que lá não esteja. Mas, dentro das margens de interpretação que existam, pode seguir-se uma interpretação mais alargada ou mais restritiva, consoante o Presidente queira ser visto como tendo mais margem de intervenção ou menos margem de intervenção. 

Ora, a ideia que fui formando - pelo menos até hoje - é a de que Cavaco Silva sempre escolheu, nos momentos decisivos, uma leitura restritiva dos seus poderes presidenciais face ao Governo e à Assembleia da República, porque não quis que as pessoas pensassem que ele detinha mais poderes do que aqueles que estava disposto a exercer. Isto é, a interpretação restritiva é uma posição de recuo, defensiva: Cavaco Silva tem escolhido a interpretação que lhe dá menos margem de intervenção, porque efectivamente o que quer é intervir menos ou não ter de intervir mais.

Comecemos por recordar o que aconteceu na revisão constitucional de 1982

Anteriormente o artigo 193º (actual artigo 190º) tinha como epígrafe "Responsabilidade política do Governo"; e passou a indicar apenas "Responsabilidade do Governo" - ao mesmo tempo que se mantinha intocado o respectivo texto original: "O Governo é responsável perante o Presidente da República e a Assembleia da República."

Houve também uma alteração fundamental no texto do n.º 1 do artigo 194º (actual artigo 191º). Anteriormente dizia: "O Primeiro-Ministro é responsável politicamente perante o Presidente da República e, no âmbito da responsabilidade governamental, perante a Assembleia da República."  E passou a dizer: "O Primeiro-Ministro é responsável perante o Presidente da República e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República." 

Foi ainda aditado um novo n.º  2 ao artigo 198º (actual artigo 195º), a respeito da demissão do Governo:  "O Presidente da República só pode demitir o Governo quando tal se  torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado."

Por seu turno, nas normas que fixam as competências presidenciais, houve também modificações correspondentes. Anteriormente, o artigo 136º (actual artigo 133º) dizia o seguinte na respectiva alínea f): "Compete ao Presidente da República, relativamente a outros órgãos (...) Nomear e exonerar o Primeiro-Ministro, nos termos do artigo 190º". E passou a dizer, em duas alíneas sucessivas, f) e g): "Compete ao Presidente da República, relativamente a outros órgãos (...) Nomear o Primeiro-Ministro, nos termos do n.º 1 do artigo 190º; Demitir o Governo, nos termos do n.º 2 do artigo 198º, e exonerar o Primeiro-Ministro, nos termos do n.º 4 do artigo 189º." [Actualmente, os artigos citados correspondem respectivamente aos artigos 133º, 187º, 195º e 186º da Constituição.]

Por último, convém ainda ter presente, quanto à formação do Governo, a regra fundamental do nº 1 do artigo 190º (actual artigo 187º): "O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais." Esta norma não sofreu qualquer alteração desde o texto constitucional original de 1976, salvo quanto à eliminação, também em 1982, do dever de audição que era prevista do Conselho da Revolução (o qual foi extinto nessa altura). 

O que concluir de tudo isto? 

Sem dúvida que, no quadro do regime semi-presidencialista, a revisão constitucional de 1982 acentuou, quanto ao Governo, a vertente parlamentar e atenuou a vertente presidencial. Mas não apagou a vertente presidencial, nem os seus poderes. 

A vertente parlamentar prepondera, como, aliás, já acontecia antes de 1982; e, em caso de conflito, é a que passou a prevalecer. Mas o Presidente não perdeu totalmente o poder (e inclusive o dever) de iniciativa, caso as circunstâncias o exijam e imponham. O Presidente pode sempre, em última análise, nomear um Governo de iniciativa presidencial. Mas este está sujeito, como já estava, a passar na respectiva investidura parlamentar; e, se chumbar nesta, o Presidente deverá, então, partir para abreviar o final da legislatura e convocar novas eleições para a Assembleia da República.

Dito de outra maneira:
  1. Um Governo de iniciativa presidencial, no nosso regime constitucional, só é legítimo como ultima ratio, isto é, depois de esgotadas todas as outras soluções de base parlamentar exclusiva. Frise-se, de resto, que isto fora já o que acontecera com Ramalho Eanes, na legislatura de 1976/79: primeiro, houve um Governo minoritário PS; depois, houve um Governo com apoio parlamentar maioritário PS/CDS; e Eanes só partiu, em 1978, para os Governos de iniciativa presidencial, quando se verificou que a base parlamentar era incapaz de gerar Executivos com maioria e condições de estabilidade. 
  2. Um Governo de iniciativa presidencial, no nosso regime constitucional, está sempre sujeito à investidura parlamentar e não pode de todo subsistir com a desconfiança política da Assembleia da República. E, aberto que fosse um conflito político e institucional entre o Presidente da República e a Assembleia da República, ou porque a Assembleia recusasse logo a investidura parlamentar de um Governo de iniciativa presidencial, ou porque, tendo-o deixado passar num primeiro momento, o derruba mais à frente pela aprovação de moção de censura ou pela reprovação de moção de confiança - a saída para esse eventual conflito Presidente/Assembleia é a antecipação do final da legislatura, marcando-se logo a realização de eleições legislativas antecipadas, de cuja recomposição parlamentar resultará, então, novo Governo. 
Este foi, a meu ver, o alcance efectivo da revisão constitucional de 1982: Ramalho Eanes ainda pôde recorrer, na mesma legislatura parlamentar, a três sucessivos Governos de iniciativa presidencial - Nobre da Costa, Mota Pinto e Maria de Lourdes Pintasilgo. Já, depois de 1982, o derrube de um eventual Governo de iniciativa presidencial (como o de Nobre da Costa, reprovado logo no momento da investidura parlamentar) determinaria, de imediato, a precipitação do final da legislatura e a necessidade de antecipação das eleições legislativas. Por outras palavras, Eanes já não poderia ter recorrido nem ao governo Mota Pinto, nem ao governo Pintasilgo (que, historicamente, já foi, aliás, um mero governo de gestão, designado após o derrube parlamentar do governo Mota Pinto e em paralelo com a convocação de eleições para a Assembleia da República); antes teria de partir logo para a dissolução parlamentar e convocação de eleições legislativas, mantendo o chumbado governo Nobre da Costa no estatuto intercalar de governo de gestão.

Por isso, a Constituição não impedia, nem impede Cavaco Silva de nomear um Governo de iniciativa presidencial, em situação limite e não havendo melhor solução de exclusiva base parlamentar no quadro da legislatura.

A meu ver, era isso que Cavaco Silva já deveria ter feito em final de 2010 e antes da elaboração do Orçamento para 2011, por ocasião do chamado PEC 3. Tive ocasião de o dizer várias vezes e de o escrever: a crise política que se manifestou nessa altura e que levou o Presidente da República a chamar todos os partidos a Belém, deveria ter-se concluído pela exoneração do Governo minoritário de José Sócrates e pela nomeação de um Governo de iniciativa presidencial.

Nessa altura, em Outubro de 2010, o Presidente já não podia dissolver a Assembleia, pois estávamos no termo do mandato presidencial; mas não estava impedido de demitir o Governo e nomear outro, com estatuto intercalar e podendo anunciar logo que, sendo reeleito, convocaria eleições para a primeira data constitucionalmente possível (exactamente Junho de 2011, como viria a acontecer). Estava claramente em causa "o regular funcionamento das instituições financeiras": na circunstância, a capacidade de um governo parlamentar minoritário aprovar e aplicar um Orçamento de Estado rigoroso e exigente, estando Portugal a braços com uma terrível crise financeira que se agravava a cada mês que passava e em que éramos já fustigados pelos mercados. Como chamei a atenção na altura, o impedimento constitucional transitório de dissolução do Parlamento resultava até num reforço temporário do quadro dos poderes do Presidente: se a Assembleia chumbasse o Governo do Presidente, este haveria de continuar até que as eleições legislativas pudessem realizar-se.

Essa solução, que praticamente sozinho defendi na altura, teria tido várias vantagens, que hoje podemos ver melhor do que nunca: (1) ter-se-ia abreviado aqueles meses deploráveis de agonia final do Governo minoritário, cercado no Parlamento e cujo preço temos pago todos; (2) se Cavaco nomeasse para Primeiro-Ministro desse governo de 9 a 10 meses uma personalidade com solidez e capacidade financeira internacional (um Monti português), teríamos porventura evitado a vinda da troika; (3) como Itália e Espanha, teríamos conseguido a definição de planos de reajuste mais abertos e flexíveis; (4) a imagem de Portugal não teria decaído para os níveis da Grécia, donde nos custou tanto sair e onde tão facilmente podemos recair; (5) é minha convicção que a Assembleia deixaria passar esse Governo e ninguém apresentaria uma moção de rejeição, atenta a gravidade da situação do país e avançada que fosse a garantia de realização de eleições legislativas antecipadas na primeira oportunidade (Junho 2011); (6) mesmo que BE e PCP avançassem com uma moção de rejeição, creio que até o PS (bastaria a abstenção) viabilizaria a passagem desse Governo de salvação nacional; (7) se, porém, o PS quisesse obstruir esse Governo e se juntasse para o chumbar, o novo Governo continuaria em gestão até à realização de novas eleições (Junho 2011) e Cavaco Silva obteria certamente ainda mais força (e, portanto, mais legitimidade) nas eleições presidenciais de Janeiro; (8) a própria campanha presidencial passaria, com este facto, a ter um conteúdo político forte e valioso em lugar de se degradar naquele clima inútil, vazio e pantanoso em que se afundou; (9) a maioria parlamentar mudaria provavelmente em Junho 2011, com uma vitória PSD/CDS, mas o Presidente manteria um importante ascendente político no quadro geral, que infelizmente desperdiçou e deixou perder; (10) ou seja, hoje, estaríamos provavelmente num programa de reajuste, exigente mas sem troika, e também com uma maioria de governo PSD/CDS, mas num quadro de muito maior coesão, consistência e estabilidade política.

A teoria dos poderes presidenciais limitados custou-nos perder tudo isto. Custou ao Presidente em legitimidade e autoridade política. E custou a todos nós o preço que já pagámos e ainda vamos pagar.

Agora, de novo na crise de Julho aberta com a demissão de Paulo Portas, a mesma assombração acabou aparentemente por impor-se.

Na comunicação de 10 de Julho, o Presidente pareceu entreabrir a porta da iniciativa presidencial. Nunca o disse, como também sublinhei na altura, corrigindo alguns comentadores mais precipitados. Mas pareceu deixar essa porta aberta. E, na verdade, tinha razões e circunstâncias para isso: (A) o governo maioritário desfizera-se por dentro; (B) eleições imediatas seriam gravemente inconvenientes e perigosas para Portugal, como sublinhou; (C) as responsabilidades externas de Portugal e o interesse do país pressionavam num sentido claro; (D) o quadro temporal da legislatura podia ser abreviado, por causa da troika, para até algures no 2º semestre de 2014, como o Presidente sinalizou; (E) em síntese, estava bem definido e balizado o quadro legitimador de um Governo de iniciativa presidencial que governaria até a um novo Governo de base parlamentar que resultasse das eleições antecipadas.

É evidente que um tal Governo teria de passar a prova da investidura na Assembleia da República. Mas creio que passaria essa prova, até porque a consequência do seu chumbo seria eleições logo, já em Setembro. PSD e CDS iriam opor-se a um Governo do "seu" Presidente e precipitar eles o país em eleições imediatas? Não o creio. E, se isso acontecesse, o país tinha solução: eleições. A responsabilidade política seria de quem as provocasse.

Esse recurso não foi necessário, em virtude do segundo fôlego dado, em 21 de Julho, à maioria PSD/CDS para um "novo ciclo". Mas foi mau que o Presidente tivesse, entretanto, a 18 de Julho, enunciado o propósito da sua auto-limitação e afixado a doutrina da não intervenção por um Governo de iniciativa presidencial. Se as coisas forem mesmo assim, a verdade é que ficámos mais fracos e mais cativos da resvalante degradação das instituições e da decadência contínua do sistema político.

Ora, precisamos de outro espírito. E outras palavras do Presidente permitem pensar que aquela não será uma porta totalmente fechada em caso de necessidade, nomeadamente quando em 21 de Julho, afirmou e quis afirmar solenemente que: «o Presidente da República nunca abdicará de nenhum dos poderes que a Constituição lhe atribui.»

O Presidente, na verdade, não deve fechar portas, nem recusar caminhos possíveis que a Constituição permite e as circunstâncias podem exigir e aconselhar. 

Contudo, o que também pode acontecer é que o Presidente possa  pensar em agir, mas não tenha com quem o fazer: isto é, não encontrar ninguém com estatuto e competência que tenha o patriotismo, o sentido cívico e a disponibilidade de serviço público indispensáveis para chefiar (ou mesmo só integrar) um Governo de iniciativa presidencial na presente situação do país.

Pode ter sido isto que a ter acontecido no final de 2010 e, de novo agora, em Julho de 2013, arrefecendo eventuais ímpetos presidenciais e seus conselheiros: Cavaco Silva não dispor de recursos de qualidade com quem pudesse decidir avançar. E, nessa eventualidade, compreende-se bem que, sabendo que não poderia dar o passo, quisesse atalhar logo as teorias que aumentassem a pressão e a expectativa para que agisse.

Essa é uma difícil condicionante do cargo de Presidente da República: muitas vezes, a extrema solidão de um órgão de soberania decisivo, mas unipessoal. E a outra uma difícil circunstância de Portugal: são mais os dispostos a falar do que os dispostos a servir. Vivemos, na verdade, tempos medíocres, em que abundam o medo ou apenas comodismo e em que preponderam os que pesam acima de tudo as suas próprias conveniências.

Esse já não é um problema de regime constitucional. Mas de carácter.

Sem comentários: