quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Quem cria emprego não são as empresas, são os consumidores?


Ontem fui a uma conferência sobre a reforma do IRC. Quase todos os intervenientes estavam de acordo sobre que muitas das medidas previstas na reforma fazem sentido, podem de facto ajudar as empresas simplificando-lhes a vida e tornando o imposto mais justo.

Já quanto à descida da taxa já em 2014, ninguém pôde defendê-la uma vez que no actual contexto de redução de rendimentos, salários e pensões e aumento de IRS, poucos poderão entender que, por exemplo a EDP, com lucros superiores a mil milhões de euros, pague menos impostos.

Depois da parte técnica da conferência, sobreveio um debate, entre por um lado, Francisco Almeida Mendes, do CDS e João Galamba, do PS.

O representante do CDS, colega de escritório de António Lobo Xavier, disse previsivelmente, que era uma boa reforma, e que a descida da taxa seria sempre uma boa noticia, ou não?

Já Galamba, do PS, atacou a reforma in totum, por entender que faz parte de um “compacto ideológico” do actual governo que consiste em desvalorizar o factor trabalho e valorizar o capital. Ora, declarou, quem cria empregos não são as empresas, são os consumidores, citando a revista Forbes.

Esta conversa levava-nos longe, mas, abreviando: de facto, sem procura solvente, não pode haver oferta, e portanto, sem consumidores, as empresas não tendo a quem vender, não empregam nem produzem. É verdade.

Mas porventura escapa a Galamba que a procura solvente pressupõe que os rendimentos dos consumidores estejam em linha com a sua produtividade, pois caso contrário, a única forma de financiar esse consumo é através do endividamento.

Por outro lado, não é verdade que os consumidores são também produtores de bens e serviços, e que as empresas onde trabalham só lhes darão emprego se o puderem manter através de um financiamento adequado à sua actividade?

A frase de Galamba pressupõe que bastaria ter uma politica expansionista de rendimentos, salários e pensões para permitir às empresas portuguesas produzir mais, vender mais e crescer.

Ora, isto não é verdade: existe em Portugal um legado acumulado de dívida que tem de ser pago pelas empresas e cidadãos, antes de estes poderem consumir mais. É a isto que se chama ajustamento: a correcção do excesso de capacidade de consumo em face do crescimento da produtividade.

Mas não deixa de ser verdade que, sem consumidores, as empresas portuguesas não têm a quem vender. Pois é! Mas, quais consumidores?

A frase de Galamba, pressupõe uma estratégia de crescimento baseada no crescimento do consumo interno; a politica do Governo consiste em encontrar fórmulas para permitir às empresas portuguesas ganharem competitividade no mercado internacional, ou seja, encontrar os consumidores que lhes faltam cá, lá fora, um crescimento baseado nas exportações.

João Galamba tem visivelmente em mente um artigo que saiu no Foreign Affairs, há uns meses, intitulado Austerity Doesn't Work, de Mark Blyth. O mesmo autor escreveu um livro intitulado The Austerity Delusion, no qual desenvolve a tese do artigo, que consiste em dizer que a estratégia de crescer através das exportações mercê de ganhos de competitividade advenientes da austeridade, pode funcionar para uma empresa ou para um país, mas não para todos ao mesmo tempo.

Evidentemente que essa «corrida para o fundo» - como Galamba e o dito Blyth lhe chamam - não funciona para todos, mas pode funcionar para os primeiros e deve funcionar ao menos para aqueles cujos preços relativos já sejam mais altos que os da concorrência.

A politica «austeritária» (como a esquerda adora dizer) foi implementada na Alemanha, pelo Chanceler Schroeder (SPD), com o sucesso assinalável que se verificou quando a Alemanha recuperou uma competitividade perdida nos anos 90 e explodiu de novo nos mercados mundiais.

Agora, esta politica implica uma aposta: a de que os sacrifícios de hoje darão frutos amanhã, o que significa que não chega corrigir os rendimentos, salários e pensões, é necessário criar condições de investimento que permitam às empresas investir e crescer.

Veremos se o Governo de Portugal é capaz disto - tenho dúvidas pelo que vi até agora - mas a «via Galamba» não me deixa dúvidas, é o caminho sem retorno, para o abismo, no meio de muitos iPads, iPhones, e «vestidinhos clixs». E que se lixe a troica, claro!
 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O colapso do Estado de Direito - a propósito do caso «Maddie»


Num dia muito quente do inicio de verão de 2003, ia eu a meio da manhã, já passado Amarante a caminho de Mirandela para  celebrar com o Presidente da Câmara local um protocolo quanto à instalação do Tribunal Administrativo e Fiscal, entretido na leitura dos jornais, quando tocou o telemóvel: era o meu chefe de Gabinete.
Perguntava-me se tinha ouvido as noticias na rádio. Não tinha, estava a ler os jornais; então que ouvisse, o Paulo Pedroso tinha acabado de ser preso, no âmbito do processo da «Casa Pia».
Arredada ficava a possibilidade de ver nessa noite o Porto jogar contra o Celtic em Sevilha a final da taça UEFA.
Dizer que fiquei de boca aberta ou especado de espanto, é pouco. O Dr. Paulo Pedroso tinha sido Secretário de Estado e pouco mais de um ano antes era Ministro da Segurança Social. Nesse momento era Deputado e porta-voz do Partido Socialista. Dizia-se que era o nº 2 de Ferro Rodrigues. Preso? Nem era um caso de «sic transit gloria mundi». Era um caso de queda a pique, tão trágica e chocante que não havia palavras para explicar.
Nos dias seguintes a imprensa não falava de outra coisa. No Público, Augusto Santos Silva insinuava uma cabala, uma maquinação contra o PS, e se havia maquinação contra o PS que envolvesse a polícia judiciária e o sistema de investigação penal, o Ministério da Justiça estava na berlinda, claro.
Ninguém de entre os responsáveis do Ministério revelou saber mais do que as noticias saídas nos jornais e nas televisões: a prisão em directo, a invasão da Assembleia da República com as câmaras de televisão atrás, acusações vagas...
Senti um calafrio: que diabo, pode-se ser preso com base «nisso»? em directo? Na TV? Um deputado da República? Desde esse momento mantenho uma opinião: se a acusação contra Paulo Pedroso se viesse a revelar insubsistente, estávamos a assistir ao colapso do Estado de Direito.
Muitos meses depois Paulo Pedroso seria libertado após o Tribunal Constitucional ter declarado que o processo não se tinha revestido do mínimo de garantias de direitos e liberdades, e nem chegou a ser acusado porque a Relação de Lisboa revogou o despacho de acusação por entender que não continha o mínimo de indícios que permitissem formular uma acusação.
Para mim já não foi surpresa: sabia há meses que aquela acusação não podia dar em nada porque a prova era exclusivamente testemunhal e as testemunhas não pareciam ser fiáveis.
Surpresa foi não ter acontecido nada: nem aos investigadores do Ministério Público que com ligeireza deduziram uma acusação insubsistente, nem ao Mmº Juiz de Instrução, o célebre «justiceiro» da T-shirt, que depois de ter escaqueirado o crédito da Justiça Portuguesa foi à vida dele.
A Justiça interiorizou mais um fiasco, absorveu-o e esqueceu-o. Portugal ficou mais, mas muito mais pobre.
Em Maio de 2007 uma menina inglesa desapareceu no Algarve. Meses depois, os órgãos de investigação criminal chegavam à conclusão habitual: a culpa era de certeza dos Pais. Provas? Indícios? Motivos? Para quê, se há a imprensa? Os Pais foram constituídos arguidos.
Um ano depois o processo foi arquivado, por absoluta falta de provas, pistas ou indícios. Entretanto os Pais da menina ficaram amarrados ao pelourinho da opinião pública habituada e sedenta do sangue de crapulosos culpados que o «sistema» lhe serve, já confessados e até arrependidos do que possam ter feito, sobretudo depois de uma boa tareia pedagógica...
Mais uma vez, a Justiça interiorizou o fiasco e nada aconteceu.
São casos conhecidos que nos podem dar uma noção dos casos desconhecidos que todos os dias acontecem.
Num sistema onde o erro grosseiro, o abuso dos direitos liberdades e garantias, a ofensa da rectidão processual não têm consequências, não há qualquer estímulo para melhorar o que está visivelmente estragado, conduzindo a um sistema de investigação desleixado, permeável à influência política, corporativo, irresponsável, inamovível, incapaz de se regenerar e pior do que tudo, convencido da sua infalibilidade. Já nem os Papas...

É este o Estado de direito que queremos?
(este artigo foi escrito há anos e enviado ao jornal «Público» que recusou publicá-lo...)

sábado, 26 de outubro de 2013

"Vaudeville" parlamentar: ora agora adopto eu, ora agora adoptas tu...


A cena política da semana foi a do referendo sobre a adopção homossexual, último coelho tirado da cartola (agora pela JSD) para, uma vez mais, evitar decidir o assunto. Que a adopção homossexual fosse instituída em Portugal, na modalidade da co-adopção, e ainda por cima num quadro parlamentar em que PSD e CDS dispõem de uma folgada maioria de 34 votos sobre o conjunto da esquerda, é coisa que ninguém entenderia.

O PSD tem que deixar-se de curvas e contracurvas e assumir claramente as suas responsabilidades políticas. Não pode continuar a arrastar esta coisa, alternando com uma conhecida ala do PS o protagonismo do disparate no teatro das diversões. Em Julho, quando a questão podia e devia ter ficado decidida, empurrou um primeiro adiamento. E, agora, inventou a hipótese de um referendo, que a todos nos cobriria de ridículo e de embaraço. Se, nesta altura de Orçamento, troika e dificuldades, decidíssemos convocar um referendo sobre adopção homossexual e não aparecessem multidões a apedrejar São Bento, é porque seremos, na verdade, um país de brandos costumes.

Uma fonte do CDS, para não ferir susceptibilidades, logo chamou a atenção para a flagrante inoportunidade da coisa – e esteve bem.

Só que este teatrinho já cansa. E, ainda por cima, transmite ideias que não correspondem exactamente à verdade: dá ideia de que o PSD está contra a lei do PS, quando o problema é exactamente isso não ser de todo claro. O PSD tem que assumir, a sério, as suas responsabilidades políticas. Ser maioria é isso. E são tão evidentes os propósitos politiqueiros daquela conhecida ala do PS, que até dói ver tanta tibieza. E incapacidade.

Devo dizer que não sou contra referendos nestas questões. Pelo contrário: sou a favor. A esquerda ficou, aliás, a dever um referendo à sociedade civil portuguesa, ao recusar, em 2010, o referendo sobre o casamento gay, que uma iniciativa popular pôs em cima da mesa. Mas este não é nem o tempo, nem o momento e a oportunidade.

Os deputados estão lá para estarem em linha com a sociedade portuguesa. E para terem a noção clara das prioridades. 

O cativo oficial do regime


Foi noticiado que o deputado Rui Barreto foi suspenso do CDS por 5 meses por ter votado contra o Orçamento de Estado de 2013. Lamento esta decisão. E critico-a. Primeiro, porque considero que o processo disciplinar que foi movido contra Rui Barreto é ilegal. Segundo, porque, mesmo que não fosse ilegal o processo, a questão é política e não disciplinar. Terceiro, porque, se o desfecho do processo não foi combinado, parece – e essa aparência de dissimulação é péssima. Quarto, porque, por alguns dados vindos a público, a “suspensão” aplicada pode não ser uma sanção, mas um favor e um prémio.

Dito isto, discordo totalmente do voto do deputado Rui Barreto no OE 2013, como, na altura, disse. A recuperação financeira do país carece da solidariedade de todos, nomeadamente dos que carregam a responsabilidade de apoiar e suportar o Governo do país.

Vamos por partes.

Primeiro, a ilegalidade do processo. Nos termos dos Estatutos do CDS, quem tem competência para definir orientações de voto vinculativas para o grupo parlamentar e os deputados do partido é a Comissão Política Nacional (artigo 32º e artigo 38º, n.º 4 dos Estatutos). Ora, a Comissão Política não reuniu sequer - e muito menos deliberou sobre o que quer que fosse. Aliás, a Comissão Política esteve, nessa altura, seis meses consecutivos sem reunir de todo, o que é absolutamente espantoso – e ninguém se queixa, o que é ainda mais espantoso. Seis meses! Tinha reunido em Setembro de 2012, aquando da crise da TSU; voltou a reunir, salvo erro, em Março de 2013. Se não reuniu, ainda, não foi porque o assunto não fosse lembrado – eu, pelo menos, lembrei-o. Não reuniu, porque não se quis que reunisse: quis-se que não reunisse.

Acrescente-se ainda que, pelos Estatutos, a Comissão Política Nacional deve reunir ordinariamente todos os meses e extraordinariamente em determinadas circunstâncias – e, neste caso, faltou quer a reunião ordinária mensal (durante 6 meses consecutivos!), quer a reunião extraordinária que, se necessário fosse, deveria ter sido convocada para apreciar o OE 2013. Na verdade, era isto que deveria ter acontecido por três razões: 1ª razão – por se tratar de um Orçamento de Estado; 2ª razão – porque a direcção do partido deu vários sinais para o exterior, ao longo do processo orçamental, de que discordaria do OE 2013 e de que o voto era incerto, questão que cabia esclarecer e resolver cabalmente; 3ª razão – porque o CDS/Madeira acabou, nesta onda, por tomar posição contra, o que abria um problema político, que cabia avaliar e decidir. Mas o Presidente e a direcção do partido entenderam não efectuar qualquer reunião da CPN. Não se pode, por isso, procurar transferir para um deputado individualmente a responsabilidade que é unicamente da direcção política do partido.

Já ouvi esgrimida a tese de que a violação da disciplina pelo deputado Rui Barreto resultaria directamente do acordo de coligação, o qual, como é natural, prevê a votação favorável de todos os Orçamentos, o que – sustenta essa tese – vincularia individualmente todos e cada um dos deputados. Não é assim. 

Não vou dizer que é uma tese sem pés, nem cabeça. Mas não passa de uma tentativa de habilidade talvez com pés… mas sem cabeça. Por um lado, as obrigações disciplinares não se presumem, nem são genéricas – carecem de ser afirmadas e são específicas. A entender-se daquele modo, toda a política teria sido suspensa durante a coligação – nada mais haveria a debater e a discutir e tudo teria ficado, ali, decidido de uma vez por todas. Por outro lado, o acordo de coligação não vincula os deputados ou os militantes individualmente; vincula unicamente os partidos, que guardam o direito – e o dever – de acompanhar a sua execução e de decidirem livremente sobre como agirem. Ora, o órgão que tem a principal responsabilidade de apreciar o desempenho da coligação e de validar, endossar, apoiar, criticar, ajustar os seus actos é justamente a Comissão Política Nacional. De resto, nesta linha, volto ao que já disse: face aos múltiplos sinais de dissensão quanto ao OE 2013 emitidos pela alta direcção do partido e pelas suas diligentes “fontes” (em violação do acordo de coligação?), cabia exactamente à CPN repor linha e esclarecer: e também a questão aberta pelo CDS/Madeira tinha que ser enquadrada politicamente.

A falta, portanto, foi unicamente da direcção nacional do CDS. Não do deputado Rui Barreto – que, de resto, votou em estrita obediência à orientação de voto definida pelo único órgão político do partido que reuniu e deliberou politicamente sobre a matéria: a Comissão Política Regional do CDS/Madeira. Não houve desobediência, mas houve obediência.

Em segundo lugar, a natureza política da questão. A decisão do CDS/Madeira de tomar posição contra o OE 2013 e determinar ao deputado do CDS eleito pelo círculo da Madeira que votasse contra o Orçamento abriu um problema político novo para o CDS. É um problema que tem acontecido frequentemente com o PSD e algumas vezes com o PS, mas nunca acontecera com o CDS. A razão é simples: desde 1979 que o CDS não tinha qualquer deputado pela Madeira e, na I Legislatura, este tipo de questões não surgiu. Esse problema deveria ter sido tratado no plano político pela Comissão Política Nacional – e não o foi, porque o Presidente e a direcção do partido não o quiseram.

O problema, aliás, eram dois. Um, é o do “jardinismo”, um vírus que infectou profundamente a política madeirense (com muito más consequências) e que, creio eu, convém não alastrar e deixar contagiar, ao ponto de sair Jardim, mas ficar o “jardinismo”. Outro, é o da autoridade política sobre os deputados: os deputados são distritais, regionais ou nacionais? E em que medida? Ora, nada disto foi tratado, porque o Presidente e a direcção do partido não quiseram. E são problemas políticos que permanecem em aberto.

É absurdo tratar disciplinarmente uma questão que não é disciplinar, ao mesmo tempo que as questões políticas não são sequer abordadas no plano político.

Terceiro e quarto, a aparente "administração" do resultado do processo disciplinar, que é bem conveniente tanto no timing , como na medida.

O que é uma “suspensão do partido por 5 meses”? Ninguém parece saber muito bem, mas o que se vai sabendo aponta para que não seja bem uma sanção, talvez um prémio e um estímulo a que o exemplo se repita. O deputado Rui Barreto continuará deputado. Continuará no grupo parlamentar do CDS talvez, durante cinco meses, como “independente” – um falso independente, um “independente disciplinar”. Continuará também a ser estimado pelos seus colegas – falo, desde logo, por mim. Continuará, enfim, toda a sua actividade política como membro do CDS/Madeira, sem qualquer hiato ou interrupção. Não se percebe, por isso, onde esteja a sanção.

E, na nova condição de “independente”, até poderá vir a votar de novo contra o OE 2014, agora sem que nada lhe aconteça, pois a “suspensão do partido” funciona como blindagem ou protecção: quem está suspenso dos direitos (sejam eles quais forem), suspenso está também dos deveres, nomeadamente do de votar neste ou naquele sentido. Ou seja, o “castigo” é um prémio.

Se alguma dúvida houver ainda quanto à tremenda tutela disciplinar, poderá até, já agora, retardar por umas semanitas a sua pertença formal ao grupo parlamentar do CDS até se concluir a votação do OE 2014, a fim de ficar absolutamente blindado quanto a qualquer orientação de voto que lhe pudessem ditar fosse pelo grupo, fosse pela Comissão Política Nacional – se reunisse… coisa que não aprecia fazer.

O deputado Rui Barreto é um bom deputado: inteligente, trabalhador, dedicado. E assim deve continuar. Deu também recentemente um contributo importante a que o CDS vencesse as eleições municipais na sua terra – Santana, na ilha da Madeira –, onde passou a ser também o Presidente da Assembleia Municipal.

Em plena campanha das autárquicas, saiu a notícia de que Rui Barreto seria punido com a pena pesada (…) de seis a nove meses. A notícia trazia água no bico: uma notícia literalmente caída do céu, sem que ninguém a pudesse confirmar, o que serviu tacticamente os interesses eleitorais do partido, engrossando a voz no Funchal. Existe a convicção de que a “tensão com o CDS nacional”, recriando a coreografia com que, no PSD, Alberto João Jardim, anos a fio, habituou os madeirenses e os portugueses, traz benefícios eleitorais locais. Não creio que seja necessariamente assim, mas sei que há quem pense assim.

Afinal, a pena não foi tão "pesada". E a suspensão agora decretada também serve a mesma imagem: músculo duro com o CDS nacional, já que o “CDS Madeira não verga”.

É assim. Por um lado, parece que se agiu. Por outro lado, realmente… no pasa nada.

Não concordo. Não é uma forma séria de fazer política. E, na verdade, todos os problemas políticos ficaram por enquadrar, avaliar e decidir. E assim continuam. Andou-se à volta. E geriram-se imagens e sombras.

As questões políticas são políticas, não são disciplinares.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Da “TSU dos pensionistas” à “TSU das viúvas”, a "TSU dos aposentados"


Tenho para mim que é mau – e é muito errado – inventar e usar linguagem figurada para tratar matéria de tão grande sensibilidade quanto as alterações nos regimes de Segurança Social. Dá ruído e esconde a verdade.

Nas medidas preparadas pelo Governo nas conversações com a troika, falou-se muito de uma tal “TSU dos pensionistas”, que ficou pelo caminho sem nunca sabermos o que seria exactamente. Gostava de saber o que fosse. Agora, surgiu a badalada “TSU das viúvas”, que redundou numa semana de sarilho político-mediático.

Da primeira, além dos traços vagos que foram surgindo na imprensa aquando da sétima avaliação da troika e da tensão politica que gerou, apenas foi dito, na altura do seu abandono definitivo, “que atingiria o regime onde estão mais de 80% dos pensionistas e cuja pensão média é de 420 euros”. Todavia, esta linguagem vagamente estatística nada esclarece e os elementos vindos a público permitem antes concluir que 75% a 90% dos 3,5 milhões de pensionistas do respectivo universo não seriam, por certo, minimamente atingidos pela medida concreta que fosse. Repito: gostava mesmo de saber o que era.

Tomemos, por exemplo, o caso recente da badalada “TSU das viúvas”. Ficámos a saber que o valor anual das pensões de sobrevivência pagas é 2.700 milhões de euros. E foi-nos dito também que os beneficiários dessas pensões são cerca de 800 mil. Assim, podíamos apresentar a seguinte estatística: “a nova TSU das viúvas atinge um universo de pensionistas que recebe uma pensão média de sobrevivência de 241 euros”. Na verdade, 2.700 milhões de euros a dividir por 800 mil beneficiários, dá uma pensão de sobrevivência média de 3.375 euros. E, dividindo a pensão média anual por 14 meses, obtemos o valor médio de 241 euros de a pensão média anual (se fizermos o cálculo apenas a 12 meses, o valor médio mensal é de 281 euros).

Ora, já sabemos que não é isto; e foi até assegurado que 96,5% do universo dos beneficiários das pensões de viuvez não serão atingidos pela medida.

É o problema da “mentira estatística”: com a verdade me enganas. Se eu comi uma galinha e tu não comeste nenhuma, a estatística assegura que comemos ½ galinha per capita – é verdade, mas é mentira.

A verdade que hoje sabemos quanto à dita “TSU das viúvas”, é semelhante na dita “TSU dos pensionistas”. O Governo – e bem – tem poupado os pensionistas das pensões mais baixas a qualquer esforço contributivo. E o seu número é, em Portugal, enorme. Para, num universo de3,5 milhões de pensionistas, a pensão média ser de 420 euros, como foi dito, o número de pensionistas com pensões inferiores à média é seguramente de 2 milhões ou mais, a maioria com regimes não contributivos. Todos esses seriam naturalmente isentos de qualquer esforço, bem como certamente os com pensões inferiores a 600 euros, que é um referencial que o Governo tem usado. Ora, isto significa que 75% a 90% do universo respectivo não seria abrangido por qualquer esforço. Era bom conhecermos o que é que esteve efectivamente em cima da mesa.

Na verdade, o que sabemos hoje é apenas isto:
  • A “TSU dos pensionistas” não é uma TSU e não foi para a frente, sem chegarmos a saber o que fosse ou pudesse ser.
  • A “TSU das viúvas” vai para a frente. Também não é uma TSU e, aos poucos, vamos sabendo o que seja.
  • Entre os trovões de uma e outra, avançou a “TSU dos aposentados” (só no regime da CGA) que, se calhar, mais merece a alcunha de TSU e é, por sinal, particularmente dura.
Era bom ser tudo mais claro. Mais factos, menos ilusão estatística. Menos alcunhas, mais exactidão técnica.  Para se poder avaliar a justiça da distribuição do esforço que a situação do país impõe.

A “nacional-barafunda”: pensões de sobrevivência e condição de recursos

 

Ontem, o Governo anunciou, finalmente, os traços gerais da proposta que, no quadro do OE 2014, tenciona apresentar em matéria de cortes nas pensões de sobrevivência.

Independentemente de se concordar, ou  não, com a proposta, há um dado importante a reter: o debate gerado ao longo de uma semana inteira teve utilidade evidente e indiscutível. Primeiro, o Governo reviu aparentemente, de forma significativa, o que pareciam ser as intenções iniciais: não se atingem já pensões acima de 629 €, mas apenas pensões de valor acumulado superior a 2.000 €. E, em segundo lugar, a ideia da “condição de recursos” parece ter ido realmente à vida, por muito – vá lá perceber-se porquê – que, do lado do Governo, continue a usar-se esse erro técnico.

Na verdade, o que o Governo ontem apresentou não tem nada a ver com “condição de recursos”, mas com um regime de escalões de redução progressiva no acesso à pensão de sobrevivência acumulada, isto é, algo muito semelhante a um imposto progressivo (como o IRS) ou à Contribuição Extraordinária de Solidariedade.

Não contesto a ideia de, em tempo de escassez, de sacrifícios e de cortes, se pedir mais àqueles que mais podem e menos aos que podem menos. É de elementar justiça que seja assim. Mas isto não tem nada a ver com “condição de recursos” – e é bom que não tenha.

A “condição de recursos” aplica-se somente às prestações sociais não contributivas – e as pensões de sobrevivência decorrem do regime contributivo, integrando-se no seguro social para que cada um descontou ao longo da vida. Misturar uma coisa e outra seria nacionalizar as pensões e as contribuições na parte correspondente – pode ser que alguém a tanto se atreva, mas seria estranho e particularmente condenável que fosse um Governo CDS e PSD a inaugurar essa “nacionalização” ou “socialização”.

O blogue 4R - Quarta República dava já, na sexta-feira passada, uma boa ajuda a compreender do que se trata: O que é a "condição de recursos"... E quem explica bem o que é “condição de recursos” é a Segurança Social, por exemplo no GUIA PRÁTICO do Instituto da Segurança Social:
A condição de recursos é o conjunto de condições que o agregado familiar deve reunir para poder ter acesso às Prestações Familiares, ao Subsídio Social de Desemprego e aos Subsídios Sociais de Parentalidade, bem como a outros subsídios e apoios do Estado.
Define o limite máximo de rendimentos até ao qual as pessoas têm direito a estas prestações sociais.
E, a seguir, o mesmo GUIA PRÁTICO explica como se verifica a dita “condição de recursos”:
A condição de recursos é verificada através dos rendimentos da pessoa que pede a prestação e dos elementos do seu agregado familiar, do seguinte modo:
1.º Avaliação do valor do Património Mobiliário do agregado familiar
2.º Avaliação do rendimento global do agregado familiar
Como se vê, isto não tem nada a ver com aquilo que o Governo, ontem, anunciou com destaque para o novo regime das pensões de sobrevivência – e é bom que não tenha.

Todavia, além da tabela de reduções que encheram o noticiário geral, as notícias acrescentam, quase a terminar, uma parte que tem passado praticamente despercebida. É esta:
E dito isto, revelou que o Governo vai também tentar encontrar uma forma para avaliar os rendimentos dos contribuintes ainda no activo e que tenham rendimentos de capital ou mesmo pensões de sobrevivência.
Ou seja, o Executivo quer encontrar uma forma de avaliar os rendimentos das pessoas que auferem uma pensão de viuvez e que tenha um “salário ou rendimentos de capital”. Se, no final das contas, os rendimentos que geram, além da pensão de sobrevivência, foram “muito altos”, “não fará sentido que não” haja um impacto também para estas pessoas, adiantou Paulo Portas.
Se vier a ser assim, já pode perceber-se a teimosa insistência na “condição de recursos” – e já não seria apenas um erro técnico de linguagem, mas um erro político de vontade.

Ainda assim, também essa nova bisbilhotice orweliana sobre os rendimentos e os capitais dos que pagaram para o regime contributivo não seria ainda exactamente uma “condição de recursos” proprio sensu; mas já seria uma priminha muito chegada. Além da carga burocrática que geraria, seria mais uma nova intromissão inqualificável na situação pessoal e patrimonial dos que pagaram as suas contribuições. Perigoso. Muito perigoso.

O melhor é mesmo deixar cair o infeliz erro da expressão e agir com escrupuloso rigor técnico e alguma normalidade jurídica.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O trono da velhacaria

A propósito deste debate, que só agora começou, dos cortes nas pensões de sobrevivência, envolvi-me num debate no excelente blogue "4R - Quarta República", que merece maior divulgação. Foi nos comentários ao post Cortes a conta gotas..., onde os leitores interessados poderão acompanhar, no espaço de comentários, o debate travado, em que intervim.

Um comentador remeteu para a notícia saída no portal da TVI24, com o título Pensões de sobrevivência cortadas a partir dos 629 euros. Foi aí que pude ler este mimo, para justificar a medida do Governo: "Um caso conhecido, que pode tornar-se polémico, é o de Vítor Constâncio, ex-governador do Banco de Portugal, e atual vice-presidente do Banco Central Europeu, cuja mulher faleceu no final de agosto passado. Constâncio, que aufere quase 27 mil euros brutos mensais, pode receber uma pensão de sobrevivência de 2.400 euros brutos por mês, pelas regras atuais, segundo as contas do «Correio da Manhã»."

Isto é o cúmulo da ignomínia! A ninguém parecerá injusto que, assim tendo de ser, uma pensão de sobrevivência num quadro desses seja cortada e eliminada. Mas esta exposição pessoal, apontada e dirigida a um adversário político, é absolutamente miserável. Falta de respeito absoluta pelas pessoas, falta de respeito pelos mortos, falta de respeito pelos viúvo(a)s. Um Estado assim não presta.

A notícia, no original do «Correio da Manhã», é, aliás, pior e reveladora. Contém pormenores que só poderiam ter provindo de fontes altamente colocadas no aparelho do Governo ou da Administração. E, se atendermos ao pormenor de os cortes das pensões de sobrevivência só terem sido conhecidos por uma "fuga de informação" no domingo, não seria possível que um jornal adivinhasse e investigasse este "caso" picante para o publicar logo, convenientemente, pela 2.ª feira de manhã. A notícia, com o ataque a Constâncio, foi, evidentemente, "plantada" por altas fontes do Estado com acesso a informação privilegiada e restrita. E serve dois propósitos políticos evidentes: 1º - tentar justificar uma medida do Governo; 2º - de caminho, enxovalhar um "inimigo". Deixo, aqui, para memória futura e leitura completa, esse monumento à velhacaria:

CORREIO DA MANHÃ, 7-10-2013, pag. 8

Transcrevo ainda, sobre este episódio deplorável, dois comentários que fiz no citado debate:
«Ninguém poderia pôr em causa a "justiça" da eliminação da pensão de sobrevivência num caso como esse e com tais números apresentados. Mas:
1º- usar um caso absolutamente extremo (e penso que único: não temos outro administrador no BCE) para embrulhar e mascarar o debate das situações que atingem o beneficiário médio;
2º- e, sobretudo, aproveitar para, de caminho, colocar no pelourinho e tentar enxovalhar um adversário político, colocando-o de modo traiçoeiro diante dos ataques da populaça
é do piorio que já se viu.
É bem revelador o pormenor, delicioso, cínico e bem apontado, de dizer: «Um caso conhecido, que pode tornar-se polémico,...»
De facto, assim, nem os mortos têm descanso e nenhum viúvo ou viúva pode ter sossego.
O Estado, feito "big brother" miserável e velhaco, está aí para nos perseguir, nos expor e nos humilhar. Uma vergonha!
Uma nota final: Maria José Constâncio, que (concordemos, ou não, com ela; eu nunca estive no seu campo) foi uma grande servidora pública, merecia também, depois de morta, mais respeito do Estado que serviu. Assim, está a servir e ser usada como arma de arremesso contra o seu marido (viúvo) por causa daqueles que, manifestamente, não sabem o que fazem.»
«Alimentar deliberadamente a canzoada com exemplos de escândalo é absolutamente miserável. Mostra completa falta de respeito pelas situações médias e comuns, que vão atropeladas de roldão e em silêncio. E é também uma demonstração de velhacaria ao mais alto nível do Estado e da Administração: o Estado bufo, o Estado delator, o Estado perseguidor. Esse não é o Estado que nos defende e protege, mas o Estado que a todos espia e alguns manda açoitar.
De onde é que pode vir a bufaria sobre o tal "caso" Constâncio?
É o piorio. E torna tudo mais difícil, porque menos sério.»
Há muitas razões para criticar e discordar de Vítor Constâncio. Fi-lo muitas vezes. E fá-lo-ei sempre que o entenda. Não aqui! Aqui, expresso total solidariedade, pessoal e incondicional, a Constâncio perante a velhacaria com que o procuraram atingir - e, porventura, para condicionar o PS.

Este caso é revelador de absoluta falha de critério moral e da mais soez irresponsabilidade. Mesmo nessa situação extrema (e única) - que ninguém contestará que fosse corrigida - convém ter presente dois pontos: primeiro, esses rendimentos pagam impostos, altamente progressivos e que têm sido agravados; segundo, mesmo quando cortemos esses direitos, em virtude da situação a que o país chegou e da necessidade imperiosa de reformas, é preciso ter sempre presente que estaremos a cortar direitos constituídos, para que as pessoas descontaram longos anos (e muito), tudo integrado num sistema de seguro social que alteramos retroactivamente.

Além disso, esta demagogia populista dos casos extremos é gravemente ofensiva dos cidadãos médios e comuns que vão suportar o grosso dos sacrifícios, que têm sofrido já cortes sucessivos e agravamento das suas condições de vida e que, ainda por cima, são reduzidos ao absoluto silenciamento dos seus casos, por debaixo do ladrar das matilhas, procurando gerar-se-lhes, contra os descontos que fizeram, complexos de culpa.

Quem se senta no trono tem de ser gente séria. Ou nenhum de nós estará seguro. Nem eles próprios, quando saírem e derem lugar a outros.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O discurso da dependência

 

Hoje, em notícia do jornal PÚBLICO, a deputada Teresa Leal Coelho, que é vice-presidente do PSD, enuncia,  talvez levada por entusiasmos de revisão constitucional, uma tese perigosíssima: a de que devemos rever a Constituição para nos adequarmos ao direito europeu. Ou seja, já não somos nós que conformamos a Europa (junto com outros), mas a Europa que nos conforma e manda em nós. Independência nacional... viste-la!

Teresa Leal Coelho, chamada a comentar o tema da eventual revisão das leis eleitorais, começou por dizer que «o PSD tem também total disponibilidade para ajustar temas de revisão constitucional e não apenas em matéria eleitoral».  E logo avançou para afirmar que «a Constituição deve ser garantística, mas mais flexível, para que se adapte às actuais circunstâncias de Portugal», o que até estaria muito bem. Mas logo lhe escorregou o pé para o deslize fatal: «Somos um Estado-membro da União Europeia, a Constituição foi sendo revista e adaptada às normas europeias, mas temos de ter uma Constituição compatível com o direito europeu.»

A tese parece amadurecida, pois logo explica que a sua opinião é a de que «há incompatibilidade entre o primado do direito europeu e as obrigações decorrentes dos compromissos que Portugal assinou no plano da União Europeia e as interpretações soberanistas/positivistas da Constituição», frisando que esta incompatibilidade «traz efeitos colaterais no que diz respeito ao cumprimento das obrigações decorrentes do vínculo de Portugal à União». A jornalista do PÚBLICO elogia-a mesmo como "contundente", quando Teresa Leal Coelho convoca o velho estribilho anti-salazarista do "orgulhosamente sós" para embelezar a sua tese: «A visão positivista da Constituição, ignorando o plano da União Europeia, coloca Portugal numa posição de quase orgulhosamente sós, pelo facto de não nos compatibilizar com o quadro normativo da União Europeia, quando fomos nós que nos vinculámos à União.» E logo conclui que «tem de haver conciliação ou convergência que permita que não surjam danos colaterais.»

Sou, de há muito, desde sempre, um estrénuo defensor da revisão constitucional. Tenho  escritos incontáveis e várias intervenções nesse sentido. Quando passaram 30 anos da Constituição, em 2006, era eu Presidente do CDS, organizei um ciclo de três colóquios preparando e apontando à "emergência de um novo espírito constituinte". Hoje, vou até mais longe e simpatizo com a ideia, lançada por Narana Coissoró, de uma "nova Constituição". Lamento - e critico - que a questão da revisão constitucional tenha sido totalmente abandonada pela direcção do CDS, levando a que o PSD a deixasse cair também, por falta de condições e de companhia. Conheço - e reconheço - as muitas dificuldades da empresa, que, todavia, é estratégica e absolutamente necessária. Mantenho-me nessa orientação e direcção.

Mas, ai de nós, se abandonamos a ideia-matriz da nossa plena liberdade constituinte! Nesse dia, seríamos vassalos. Por aí, não! Teresa Leal Coelho tem razão em defender a revisão constituional. Mas não com aquele espírito e argumento.

A história do "primado do direito europeu", invocado por Teresa Leal Coelho, aliás, é uma questão que não acabou, nem está acabada - e ainda fará correr muita tinta. É das histórias mais tristes da nossa decadência e da disponibilidade residente nas nossas elites para vergarem a cerviz (a delas e... a nossa): fizemos, a respeito dessa matéria, em 2004, uma revisão constitucional para acomodar,  com uma redacção tautológica (o actual artigo 8º, n.º 4 CRP), uma muito contestada norma que constaria da Constituição Europeia e, depois, nem houve Constituição Europeia, nem essa norma do tratado ficou como estava de início. Ou seja, agachámo-nos... para nada. Ficámos apenas de cócoras.

É indispensável não prosseguir esse caminho de abdicação, decadência e apagamento.  E mudar de espírito. Portugal somos nós. Certamente, Portugal na Europa. Mas nós na Europa; não a Europa em cima de nós.

Vou descobrindo, dia a dia, que a causa do 1º de Dezembro é bem mais importante do que, à primeira vista, até a mim me parecia.


sábado, 5 de outubro de 2013

O regresso da Censura


Hoje, estive na Caminhada pela Vida, organizada em apoio da Iniciativa de Cidadania Europeia UM DE NÓS. Vi, portanto, com os meus olhos. Ninguém me contou. Vi.

Entre o Marquês de Pombal e o Rossio, em Lisboa, desfilaram mil a duas mil pessoas. Afirmaram o direito à vida e promoveram em Portugal uma petição dirigida à Comissão Europeia, que, para ser válida e eficaz, tem de reunir um milhão de subscritores nos 28 países da União Europeia até 1 de Novembro próximo. O ambiente foi de festa e alegria, com muitos, muitos jovens a participar. Houve um pequeno comício no final, no Rossio. As imagens falam por si.

E, amanhã, domingo, 6 de Outubro, decorre em todo o país o dia nacional de recolha de assinaturas na petição UM DE NÓS, como aí foi anunciado e promovido.

Estive a ver o Telejornal da RTP-1. Nem uma notícia, nem um segundo de atenção.

Fui espreitando o que se passaria no Jornal da Noite da SIC e no Jornal das 8 da TVI. Idem. Confirmei, depois, com amigos. Nem um segundo. Nada.

Silêncio. Omissão. Ocultação. Censura. Para quem se informa pela televisão, nada aconteceu.

Receio que, na imprensa, o mesmo irá acontecer. A agência Lusa fez uma notícia pelos mínimos, tendo deflaccionado os participantes para 500 pessoas, número que depois é replicado por todos os outros.  Ainda assim, obrigado, Lusa! Pois quase que aposto que nem essa notícia sairá em qualquer jornal. Apenas a RR - Rádio Renascença lá esteve e tem reportado alguma coisa. No mais, é o férreo império da Censura.

E, todavia, vi nos telejornais:
  • Longas reportagens sobre a "manifestação" e provocações do movimento Que Se Lixe a Troika, que, na Praça do Município, não juntou mais de 20 pessoas! (Também o vi com os meus olhos, pois também lá estive, de manhã, nas cerimónias do 5 de Outubro, onde isto aconteceu.)
  • A reportagem de uma manifestação "com 100 pessoas" em homenagem aos bombeiros, que se desenrolou do Marquês de Pombal para a Assembleia da República. (Esta homenagem é mais do que devida e ainda bem que a manifestação foi coberta. Aliás, também apoio a indignação pela muito baixa participação nesta outra manifestação, merecidíssima, mas que pouca divulgação tivera.)
No processo de desenvolvimento da Iniciativa de Cidadania Europeia UM DE NÓS, dei também duas conferências de imprensa na Assembleia da República com os meus colegas deputados Carina Oliveira e António Proa. Numa, em 4 de Abril, só houve notícia da RR e da Lusa. Noutra, em 19 de Setembro, apenas da Lusa. Mais nada em sítio algum.

No início, em 21 de Março, os promotores da Iniciativa em Portugal haviam já feito uma apresentação à imprensa na representação da União Europeia, em Lisboa, no Edifício Jean Monet. Nem uma só notícia. Zero.

Para a censura estabelecida, a ordem é esconder do público e da opinião pública que:
  • Estão em marcha as Iniciativas de Cidadania Europeia, uma inovação do Tratado de Lisboa que obriga a Comissão Europeia a agir no sentido pedido por 1 milhão de cidadãos de toda a União Europeia.
  • A Iniciativa de Cidadania Europeia UM DE NÓS, lançada em Maio de 2012, vai ser a segunda a atingir esse objectivo, difícil e exigente. (A outra que o conseguiu anteriormente foi uma sobre o direito à água.)
  • A Iniciativa de Cidadania Europeia UM DE NÓS, apesar dos boicotes e da censura, não só atingiu já a exigência de 1 milhão de assinaturas, como superou o objectivo seguinte de alcançar 1 milhão e 200 mil em toda a U.E., trabalhando agora por chegar ao milhão e meio até ao final deste mês.
  • A Iniciativa de Cidadania Europeia UM DE NÓS, apesar dos boicotes e da censura, já conseguiu recolher 17.500 subscritores em Portugal.
  • A Caminhada pela Vida fez desfilar em Lisboa 1.000 a 2.000 pessoas, com uma impressionante participação de jovens.
  • Na Caminhada pela Vida participaram, pelo menos, dois deputados, que discursaram, entre outros, no comício final: eu próprio e Carina Oliveira.
  • Amanhã, domingo, 6 de Outubro, será o dia nacional de recolha de assinaturas na petição UM DE NÓS.
  • Este  dia nacional de recolha de assinaturas tem o apoio da Conferência Episcopal Portuguesa.
É tudo isto que a Censura abafa e cala. Os menos de vinte estroinas do Que Se Lixe a Troika é que são notícia - e longa notícia.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O preço de não ir a votos e desaparecer das listas


O preço a pagar por um partido político pelo facto de não se apresentar de todo a eleições nalgum lugar, nem entrar sequer em coligação, é sempre potencialmente elevado e duradouro. Por alguma razão, aliás, a lei eleitoral fixou que as coligações eleitorais se identificam pelos símbolos dos partidos coligados e não por uma qualquer simbologia "ad hoc". É uma norma que, por um lado, protege a transparência política, mas, por outro lado, também protege os partidos do seu desaparecimento e apagamento diante dos eleitores.

Dou um exemplo da história do CDS.

A implantação do CDS no Alentejo foi sempre difícil. Mas, na cidade de Évora, chegou a ter uma expressão relevante. Em 1976, nas eleições municipais, o CDS teve um resultado de 6,5%, não muito longe do PSD, que teve 10,9% no mesmo acto. No distrito de Évora, no mesmo ano, o CDS tinha conseguido - muito a partir do forte núcleo existente na cidade de Évora - um resultado de 8%, não muito longe do PSD, que alcançara 9,2%. Os resultados eram muito encorajadores e auspiciosos, já que, nas eleições constituintes em 1975, um ano antes, o CDS tinha tido no círculo de Évora apenas 2,8%.

Aconteceu, porém, que a primeira Câmara Municipal de Évora eleita democraticamente não tinha maioria, entrou em crise e caiu, levando à realização de eleições intercalares, que ocorreram em Novembro de 1978.

Houve, então, um debate que dividiu o CDS de Évora: de um lado, os que queriam ir normalmente a eleições; do outro lado, os que achavam que era melhor não ir, na ideia de impedir que o PCP conquistasse a Câmara com maioria absoluta. Foi esta linha que ganhou a decisão; e o CDS não foi a votos. 

O facto provocou um vazio, com consequências profundas: o CDS nunca mais foi relevante em Évora e quase desapareceu. Só conseguiu voltar a apresentar-se a eleições locais na cidade de Évora em 1993 - quinze anos depois! - e, a partir de 1997, teve sempre percentagens na casa dos 1% a 3%... Da última vez que foi a votos em Évora, nas autárquicas de 2009, alcançou 2,2%, ainda três a quatro vezes menos do que o prometedor começo de 1976, que foi deitado fora.

As promessas encorajadoras de 1976 esfumaram-se por inteiro naquela decisão desastrada de o CDS não ir a votos em 1978: apagou-se totalmente do boletim de voto, apagou-se do futuro seguinte. O povo diz: "longe da vista, longe do coração". Em matéria de escolhas eleitorais, podemos ecoar: "longe da vista, longe da votação".

terça-feira, 1 de outubro de 2013

A abstenção


A abstenção foi outra das estrelas do dia das eleições autárquicas. Tem sido hábito nos últimos actos eleitorais - e voltou a subir, atingindo novamente valores record.

Bem sei que os números estão empolados em quase 10 pontos percentuais, segundo os especialistas, em virtude das imperfeições dos nossos cadernos eleitorais: não é possível, na verdade, que haja 9,5 milhões de eleitores em Portugal. Mas, em qualquer caso, a percentagem de desinteresse dos eleitores é muito elevada e tem vindo a subir.

Nas eleições europeias, que têm o record absoluto, a abstenção subiu de 61,2% em 2004 para 63,2% em 2009 (participação eleitoral de apenas 38,8% e 36,8%, respectivamente). Nas presidenciais, que também tiveram uma deterioração anormal, a abstenção subiu de 37,4% em 2006 para 53,5% em 2011 (participação eleitoral de 62,6% e apenas 46,5%, respectivamente). Nas legislativas, apesar do agudizar da crise e do dramatismo das decisões a tomar, a abstenção aumentou de 40,3% em 2009 para 41,9% em 2011 (participação de votantes em 59,7% e 58,1%, respectivamente). E, nas eleições autárquicas, a abstenção cresceu de 41,0% em 2009 para, em 2013, os 47,4% de domingo passado (participação eleitoral de 59,0% e apenas 52,6%, respectivamente).

Curioso é que a ideia feita de que "há mais participação nas eleições locais por causa da proximidade e de os eleitores se sentirem mais envolvidos" deixou há muito de se verificar.  Apesar do desprestígio dos deputados e da Assembleia da República, as eleições legislativas têm sido mais participadas; e, não fosse o pico anormal de desinteresse nas últimas presidenciais, a abstenção nas eleições autárquicas apenas seria superada pela indiferença profunda que habitualmente rodeia as eleições para o Parlamento Europeu.

Ou seja, a doença do nosso sistema democrático começa na própria democracia local. 

Os independentes


Uma das notas mais salientes destas eleições autárquicas foi o aumento assinalável das candidaturas independentes, quer para os municípios, quer para as freguesias. A imprensa deu conta de que aumentaram 35% relativamente a 2009. Desconheço se houve outros estudos mais pormenorizados sobre o fenómeno.

A profundidade deste facto confirmou-se no dia das eleições, no passado domingo, 29 de Setembro, como a imprensa não deixou de destacar:  Independentes quase duplicam presidências de câmara

De facto, os presidentes de Câmara Municipal eleitos como independentes, que tinham sido 7 há quatro anos, passaram a ser já em número de 13 e com rotação de concelhos - e, se só 3 tinham tido maioria absoluta, agora foram 8 os que a alcançaram. 

Nas freguesias, onde o fenómeno das candidaturas independentes já tinha uma expressão significativa, conheceu nova expansão: em 2009, tinham sido 332 os presidentes de Junta de Freguesia eleitos por listas de cidadãos; agora, o número subiu para 340. Mas a variação é ainda mais significativa, pois o número das freguesias diminuiu: neste momento em que escrevo, estão atribuídas 3071 presidências (ou seja, os presidentes independentes são 11%) e, no mesmo universo territorial, estavam atribuídas 4107 presidências (ou seja, os presidentes independentes eram 8%).

E a expressão em votos também é importante. Votaram em listas independentes 344.566 eleitores (6,9%) para as Câmaras Municipais, 325.516 eleitores (6,5%) para as Assembleias Municipais e 477.258 eleitores (9,6%) para as Assembleias de Freguesia. Números bem significativos!

O fenómeno merece ser saudado, já que, em parte, é expressão da liberdade política e da liberdade local. Mas, noutra parte, é um sintoma claro da crise larvar do nosso sistema político e partidário. O problema não é que o fenómeno aconteça. O problema é que tenha já esta expressão ao nível dos resultados e escolhas finais.

Tem tendência, aliás, a crescer, tamanhos são os sinais de desvinculação que se vêem crescer na cidadania. Não tenho a mais pequena dúvida de que, se houvesse novas eleições locais dentro de meses, as candidaturas independentes explodiriam depois do encorajamento recebido nestas últimas.

Mas, em quatro anos, os partidos políticos terão tempo e oportunidade para se reformarem e melhorarem os seus processos. Veremos se são capazes de responder a esse desafio.