segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

A crise do fim do ano e o ano de 2015


Quando pensávamos que as coisas estavam a acalmar, como naqueles incêndios que estão em «rescaldo», verificamos que, por baixo das cinzas, o fogo ainda lavra.

Os Gregos caminham para eleições no momento em que discutem com a Troika o prolongamento do resgate. O partido com mais intenções de voto, o Syriza, é um partido de esquerda radical, que pretende renegociar a divida grega e os termos da relação grega com a Europa.

Nada de que não tenhamos ouvido falar aqui, perante os protestos do establishment de que esse tipo de conversa é fantasista.

Pois será. Vamos ver agora na Grécia se a fantasia se confirma como realidade e ainda poderemos ver os nossos «tão, mas tão sérios, que são mais troikistas que a Troika» embarcar numa renegociação da divida à boleia da esquerda radical grega, mas sem terem a mínima ideia do que estão a fazer.

No fundo, no fundo, os cobardes que nos governam (se se pode chamar a isto «governar») adorariam ser umas «marias vai com as outras» e beneficiar de boleias. Ou seja, em vez de controlarem um processo de negociação razoável, arriscam-se a entrar num processo de derrapagem descontrolada, quer queiram, quer não.

Pode ser que a perspectiva de eleições crie as condições para que alguém que queira governar o País decida apresentar um plano coerente de Governo e acabar com estas águas paradas. Pode ser que a crise grega acabe por ser uma coisa boa para nós, ao lancetar este tremendo abcesso em que se transformou a crise do Euro. Deus queira…

Bom Ano Novo de 2015!

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

A democracia Ketchup

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, hoje saído no jornal i.

O regime é top-down como as embalagens de ketchup nas mesas dos fast food. O regime é comida rápida de cima para baixo

A democracia Ketchup 
O Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade não teria préstimo de qualquer espécie se vivêssemos num regime de democracia representativa. Mas não vivemos. A democracia representativa atingiu um estádio de fraude generalizada. Vivemos mergulhados num teatrinho: a democracia só é representativa no sentido de representação teatral - a representação política esvaiu-se e perdeu por inteiro sentido e autenticidade. 
Num quadro europeu, integrado, de ambiente democrático, quem se sente representado nas decisões que são tomadas? Quem crê ter contribuído para essas decisões europeias, que preponderam cada vez mais nas nossas vidas e que apenas nos são comunicadas? A nível nacional, quem sente que as decisões governamentais ou parlamentares ecoam debates sociais em que tenhamos tido palavra e gesto? Salvo um ou outro voto divergente, qual é o deputado que, com verdade, pode dizer que realmente fez parte? Quem, não sendo chefe, pode dizer que teve voz? Onde estão as reuniões dos grupos parlamentares onde, lei a lei, decisão relevante a decisão relevante, uma vontade colectiva se tivesse verdadeiramente formado? Quem, além de ninguém, pode dizer que participou? Nos partidos europeus, integrados, onde estão os maiores partidos nacionais, quem pode dizer que contribuiu? Onde está o debate, que viesse da base? Onde sobra o sentido de efectivamente se pertencer, ser-se parte do conjunto europeu? E, nos partidos políticos nacionais, chave da democracia, quem participa, quem debate, quem decide? Quais são os órgãos que efectivamente funcionam? Onde é que há debate prévio, orgânico, aberto e informado? Onde são tomadas as decisões que nos governam?
O regime está capturado. Tornou-se processional. Se a vontade colectiva não se forma como deveria formar-se, se os órgãos de representação não funcionam correctamente, se a escala da representação foi invertida, onde são tomadas as decisões? Nos centros de interesse. Decidem, influenciam, comandam: comunicam com selectos nós de poder, que irradiam o facto consumado de cima para baixo. Assim estamos. 
O regime é top-down como as embalagens de ketchup nas mesas dos fast food. O regime é comida rápida de cima para baixo. Impera a consumadocracia: quando podemos discutir, é normalmente perante o facto consumado. Não contribuímos para as decisões a tomar; alinhamos ou desalinhamos perante decisões já tomadas. Nos vários patamares da representação política, nos diferentes degraus de construção da vontade colectiva, a participação foi sendo furtada. O regime é uma matrioska decorativa: bonitinha, mas vazia. 
O modelo ketchup contaminou, aliás, toda a vida colectiva. As histórias recentes do BES e da PT mostram como a completa quebra de institucionalidade viciou a vida empresarial, que se recheou de gente a assinar de cruz, administradores que se confessam verbos de encher. O regime é ketchup e nós pagamos o preço. A comida rápida sai cara - porque, é sabido, os centros de interesse são gananciosos. 
Às vezes, perante tanto disparate acumulado, ouve-se perguntar: como foi possível termos decidido estas loucuras? É que, na verdade, não decidimos quase nada. Ninguém verdadeiramente nos perguntou; e quase nada realmente pudemos deliberar. Quando muito, consentimos. Ora, hoje, a questão urgente é essa: deixarmos de consentir. 
É urgente devolver cidadania aos deputados, dar-lhes senhorio, escolhê-los directamente, vesti-los de responsabilidade, apetrechá-los para serem exigentes. Só deputados cidadãos, em vez de caudatários, podem representar a cidadania.
Cresceu o sentimento de crise da democracia. Nem é bem verdade: o que está em crise é a farsa em que a transformámos. Pondo termo à farsa, a democracia salva-se.

JOSÉ RIBEIRO E CASTRO



segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

"Portugal não quer e não precisa de estender a mão à caridade"

Na mão direita tenho um pólo negativo, na mão esquerda tenho outro.
Se juntar os deditos, dá um curto-circuito e um estouro igual ao que este «coiso» vai dar, não tarda nada...

Que lindo! 

Diz que a Ministra das Finanças tem muitas reservas aos 'eurobonds' e a uma maior intervenção de BCE na gestão da dívida. "A solidariedade exige contrapartidas", disse no Parlamento.

"Eu não sei se é bom ter 'eurobonds' ou o BCE comprar a dívida sem saber quais são as condições que vêm associadas. Não sejamos ingénuos: nós não vamos pedir aos outros contribuintes dos outros países europeus a solidariedade sem nada em troca, porque não está certo. Isso era caridade, e eu já tive ocasião de dizer mais do que uma vez: Portugal não quer e não precisa de caridade e de estender a mão à caridade. A solidariedade exige contrapartidas", reforçou.

Há 14 anos que Portugal dá contrapartidas por pertencer á zona Euro. Nunca ouvi ninguém chamar a isso «caridade». Foram os desequilíbrios estruturais do Euro que permitiram aos países do norte reforçar as suas posições e aos países do sul perder terreno competitivo e entrar em deficit permanente. 

A Alemanha, para citar um, ganhou tudo o que tinha a ganhar com o euro. Portugal, para citar outro, perdeu tudo o que tinha a perder. Nunca ninguém falou em caridade. Agora de repente, quando se fala em corrigir estes desequilíbrios inerentes ao sistema, vem esta «patriota», com proclamações gongóricas, proclamar que "Portugal não quer e não precisa de estender a mão à caridade"? Oh meu Deus! Que patriotas da treta que nos saíram na rifa…

Talvez não fosse pior que esta burocrata que com a mesma acefalia serviu vários governos que fizeram tudo e o seu contrário, reflectisse um pouco e decidisse que achava bom ou mau o que está em discussão. 

"Eu não sei se é bom ter 'eurobonds' ou o BCE comprar a dívida sem saber quais são as condições que vêm associadas” não é a resposta de que estávamos à espera da ministra das Finanças de Portugal. Mas seria a resposta que eu esperaria da directora-geral que andou com o Zé Sócrates a vender títulos do Tesouro aos Emiratos…

Já não há paciência

TAP, TAP, TAP, quem te viu e quem te vê

Os membros do nosso governo devem ter bebido de alguma poção especial que os torna especialmente obtusos.

De repente, vem um secretário de Estado dos Transportes, de seu nome Monteiro, que declara que a privatização da TAP não é discutível. Como é que alguém pode dizer uma coisa dessas sobre uma matéria que interessa intensamente o país pensante, que tem suscitado questões infindas e que tem realmente de ser discutida?

Se o dito Monteiro não quer discutir a privatização da TAP, é um problema dele, só não se entende é a razão pela qual um homem tão desinteressado da discussão de questões fundamentais do pais há-de ser membro do governo. Eu pessoalmente discordo inteiramente da ideia de privatização da TAP, e mais nas condições actuais.

A empresa parece que está a passar por um processo intenso de sabotagem, cujo único objectivo é o de a desvalorizar. 

Nas melhores condições a TAP é uma empresa mediocremente gerida, sem a menor inovação ou imaginação, ou sentido de oportunidade comercial. Desde há dois anos, parece que alguém fez uma aposta que conseguia afundar uma empresa que tem tudo para vencer.

Seja como for, talvez antes de exprimir opiniões definitivas, conviesse esclarecer questões básicas: quanto deve a TAP e porquê? Quanto é o seu capital e quais são os seus activos e passivos? Qual é a dimensão da massa salarial e está em linha com as melhores práticas da indústria?

Vem o Primeiro Ministro e declara que a opção é privatizar a companhia ou reestruturá-la. Porquê? Se for privatizada não é reestruturada? Porque é que a TAP precisa de repente, com enorme urgência, de um vultuoso aumento de capital, se há dois anos a ideia era investir fortemente em reforço da frota?

Tudo dito, alguém que explique ao senhor Monteiro, que há pessoas no País que têm instrução e curiosidade e pretendem discutir a TAP. Ele que fique com as certezas que tem, que já se viu que não é feito para grandes voos. Por falar em TAP...

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

O Défice Gasoso e as Contrapartidas Militares

Por indicação do seu autor, republicamos um artigo recente do Eng.º Mira Amaral, publicado na última edição do semanário EXPRESSO, caderno de "Economia".

Um alerta bem importante. E oportuno.


O DÉFICE GASOSO E AS CONTRAPARTIDAS MILITARES

Por causa das centrais eólicas e fotovoltaicas, as térmicas estão quase inactivas apenas a apoiar as eólicas quando não há vento. Com a revolução do shale gas, os americanos deixaram de consumir carvão, este tornou-se mais barato e os europeus, Portugal inclusive, utilizam crescentemente as centrais a carvão e as de gás natural ficam paradas. Isto está a gerar sérios prejuízos nas utilities europeias, com excepção para a EDP, que tem as suas centrais cobertas pelos famosos CMEC que asseguram a estes activos uma rendibilidade garantida de cerca de 15%, funcionem ou não. Não admira pois que a EDP não tenha o problema dessas utilities. Como diria Pires de Lima, os seus gestores têm, assim, uma máquina para ganhar prémios internacionais!

As tarifas de acesso às redes de electricidade desde 1995 têm tido os seguintes e impressionantes aumentos médios anuais: Muito Alta Tensão, 10,3%; Alta Tensão, 9,5%; Média Tensão, 5,7%; Baixa Tensão Especial, 6,4%; Baixa Tensão Normal, 5,6%! O consumo de electricidade é o mesmo de há dez anos, mas os famosos Custos de Interesse Económico Geral (CIEG) aumentaram de 500 para 2.500 Milhões de euros, devido ao monstro eléctrico. Entretanto, a dívida tarifária está descontrolada e já ultrapassa os cinco mil milhões de euros!

Quando introduzimos o gás natural, foi necessário ter centrais a gás, criando consumos que viabilizassem o pesado investimento nos gasodutos, pois os consumidores domésticos e industriais não chegavam para tal. Como agora as centrais a gás estão paradas, elas não asseguram esse consumo às redes de gás e, então, a rendibilidade das concessionárias tem de ser assegurada pelos consumidores domésticos e industriais, o que está a gerar terríveis pressões de aumento do preço do gás natural para estes. Começa-se, aqui no gás, a falar agora eufemisticamente em desvio tarifário. Repete-se, pois, a cena; e o monstro eléctrico começa a ficar gasoso!

Também neste contexto, não faz qualquer sentido o reforço das interligações gasistas entre Portugal e Espanha. Tal só poderá fazer sentido se se reforçarem as interligações entre Espanha e França e isso se e quando a Península Ibérica, através dos seus terminais de regaseificação, se tornar um hub de fornecimento de gás natural à Europa Central, combatendo a hegemonia do fornecimento pela Rússia. Se isso acontecer, é evidente que o nosso terminal de Sines também seria utilizado para abastecimentos, através de Espanha, à Europa.

O mais elementar bom senso recomendaria então que não se continuasse a aumentar o monstro eléctrico (potência renovável intermitente em excesso). Mas qual não é o meu espanto e indignação quando vejo que, como contrapartida dos submarinos, vão ser instaladas mais 172Mw de potência eólica na rede! Os alemães vão conseguir fazer os portugueses pagar, através das rendas e sobre-custos da energia eólica, as contrapartidas que, no negócio dos submarinos, não deram! Em vez de contrapartidas úteis para as nossas empresas, oferecem-nos uma coisa que já tínhamos em excesso!

Quando, como ministro da Indústria, assinei com o então ministro da Defesa Nacional Figueiredo Lopes, um despacho conjunto no sentido de se obterem contrapartidas em prol de empresas portuguesas aos fornecedores de material às Forças Armadas Portuguesas, estava longe de supor que tal espírito fosse subvertido, as empresas portuguesas nada beneficiassem e, pelo contrário, a economia portuguesa até fosse prejudicada através de contrapartidas inúteis e prejudiciais por via duma decisão deste governo! 

LUÍS MIRA AMARAL
Engenheiro (IST) e Economista (NOVASBE)

Portugal, os cidadãos e a política

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Clemente Pedro Nunes, hoje saído no jornal i.
A desvirtuação do “escrutínio democrático personalizado dos deputados” afasta muitos dos melhores da política

Portugal, os cidadãos e a política 
A Terceira República encontrou a respectiva estabilização política e económica no seio da Comunidade Económica Europeia, hoje União Europeia. 
Mas o sistema eleitoral português não se tem revelado capaz de contribuir para resolver os desafios económicos e financeiros criados pela introdução da moeda única, que exactamente a União Europeia decidiu criar para reforçar a sua própria coesão dinâmica. 
E as razões pelas quais a participação de Portugal no euro se saldaram num fracasso têm uma base mais política que económica. 
De facto, o sistema eleitoral vigente veio a revelar fragilidades graves, de que a falta de um escrutínio democrático directo na escolha dos deputados da Assembleia da República é a componente mais patente. 
Ao pertencer a uma união monetária, no contexto de uma união económico-financeira claramente ainda incompleta, Portugal tem de assumir uma exigência de muito maior rigor da gestão económico-financeira tanto ao nível das políticas públicas como ao nível da gestão empresarial. 
Ora na primeira década da integração de Portugal no euro os dirigentes políticos não mostraram a qualidade, a isenção e a independência capaz de assegurar a competitividade da economia portuguesa, tendo antes optado por um despesismo populista, utilizando as vantagens da inclusão no euro quase exclusivamente para fomentar o consumo interno e os bens não transaccionáveis, e não para assegurar a produtividade e competitividade económica. 
E é o regime eleitoral para a Assembleia da República que é o calcanhar de Aquiles do actual sistema político, e por consequência da nossa sustentabilidade económica e financeira. 
Ao poder votar apenas em "listas fechadas de deputados", ordenadas exclusivamente pelos directórios partidários para cada distrito, os eleitores apenas elegem "pacotes de deputados", e não têm intervenção rigorosamente nenhuma na escolha ou na avaliação personalizada dos deputados. 
Ou seja, a sobrevivência política, e muitas vezes económica, dos deputados da Assembleia da República depende em exclusivo dos humores dos directórios partidários que em cada momento dominam a máquina dos partidos. 
É esta desvirtuação do "escrutínio democrático personalizado dos deputados" que afasta muitos dos melhores da política, e voltou a recolocar na agenda deste início do século xxi os mesmos fantasmas que liquidaram a monarquia constitucional e a Primeira República, debaixo do estigma da "porca da política". 
Há vários matizes na forma concreta como uma nova lei eleitoral para a Assembleia da República poderá ser feita em detalhe. Por mim considero apenas que deverá obrigatoriamente permitir um elemento de avaliação personalizada dos deputados. 
Considero que só uma participação dos eleitores na escolha dos deputados e na consequente avaliação de competências e rigor de actuação, obviamente dentro do quadro de uma disciplina que assegure a governabilidade do país, pode assegurar a regeneração política e a sustentabilidade económica e social do país. 
Mas é evidente que isso exigirá também uma intervenção mais dinâmica da parte da sociedade civil na avaliação da qualidade e da seriedade dos deputados eleitos. Pode parecer fácil para grande parte da sociedade civil criticar os políticos em abstracto e à distância, mas o que se pretende é que os eleitores tenham uma parcela de intervenção responsável na avaliação dos deputados eleitos. É exactamente isso que terá de acontecer de acordo com as linhas mestras de uma nova lei eleitoral. 
De outra forma a degeneração da qualidade do sistema político e o progressivo definhamento económico e financeiro acabarão por pôr em causa o actual regime político e a participação economicamente sustentável de Portugal na zona euro, e por extensão a sua manutenção na própria União Europeia.
CLEMENTE PEDRO NUNES
Professor do Instituto Superior Técnico


quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O que será, que será?

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, hoje saído no jornal i.
Sem qualquer dúvida, o nosso sistema democrático necessita, e com urgência, de um reset.


O que será, que será?
Catorze anos depois do início de um período de estagnação económica que foi chamado de "a década perdida" e vai em década e meia, o povo português olha para o futuro com ansiedade e perplexidade.
As pessoas acham que não encontram no sistema político um rol de soluções limpas, decentes e eficientes para os problemas do país; desconfiam cada vez mais de uma classe política que consideram desonesta e incompetente e das instituições que parecem não servir o seu propósito. 
A ideia é que todos os políticos confluem na mesma sopa pragmática de soluções basicamente impostas por "Bruxelas", sem que os portugueses tenham realmente alguma coisa a dizer sobre isso. 
O fosso entre "eles", os políticos que mandam, os directórios partidários e os poderes "que são", e "nós", os que votamos por hábito e desfastio, os que pagamos impostos, os que cumprimos a miríade de regras em que o Estado ("eles") nos enreda, sempre existiu. Hoje, perante a falta de horizontes e alternativas reais, esse fosso é cada vez maior. 
Esta circunstância pode ter várias consequências: uma é a da progressiva anomia da sociedade, um divórcio crescente e desinteressado entre portugueses que obedecem ("nós") e portugueses que mandam ("eles"); outra é a do surgimento, a que até agora ficámos miraculosamente imunes, de movimentos populistas e radicais de direita ou de esquerda, ou pior, de aventuras personalistas. A verdade é que tudo tem um começo, e antes do começo era outra coisa... 
Não ajuda que a "classe política" seja vista como profundamente corrupta, mas também não ajuda que os partidos existentes, sobretudo os do tal "arco da governação", sejam hoje meras máquinas de poder, sem qualquer ideologia que os distinga nem ideias fortes para aplicar no governo. 
Por outras palavras, ninguém diz ao que vem e poucos saberão realmente ao que vêm. Também ninguém assume o custo real em impostos das exaltadas proclamações que faz antes das eleições. Tivessem-no feito e não estaríamos aqui. 
Mas, se a nossa democracia não é perfeita nem inteiramente transparente ou completamente funcional, e parece até bloqueada, há ainda muita coisa a fazer antes de pensarmos noutra coisa. 
Como na música de Chico Buarque, corre um rumor, um vozear, um vago alarido, um sentir difuso. "O que será, que será? Que anda nas cabeças, anda nas bocas; Que andam acendendo velas nos becos; Que estão falando alto pelos botecos; E gritam nos mercados que com certeza; Está na natureza. Será, que será?" 
O que este rumor nos traz é o eco confuso da vontade de mudar muita coisa no sistema político e, para começar, na forma de escolha dos nossos representantes. Não será o mais, mas não é o menos. 
Há anos que neste país em que acontece tudo e parece que não acontece nada se fala em mudar o sistema eleitoral de forma a aproximar os eleitores dos eleitos. 
Podemos do dia para a noite fazer uma revolução, chamar a troika para mandar em nós, mudar de moeda; não podemos, pelos vistos, é discutir de uma vez por todas e passar à prática uma reforma tão comezinha e simples como a que consistiria em criar, no sistema político e eleitoral, formas e mecanismos que permitam aos eleitores ter uma voz mais activa na escolha dos deputados à Assembleia da República. 
Muitos líderes políticos - aliás, todos, à vez - têm proclamado a necessidade de mudança; infelizmente, quando chega a sua vez de poder mudar, emudecem. 
A única coisa que a nossa Constituição não permite é o surgimento de candidatos independentes que se possam candidatar sem o beneplácito dos directórios partidários, claro. 
De resto, tudo é possível, incluindo a criação de círculos uninominais. 
Uma reforma sensata e bem feita deste sistema será um enorme balão de oxigénio para a democracia. Chegou a altura de a fazer.


JOÃO LUÍS MOTA CAMPOS
Advogado
Ex-secretário de Estado da Justiça