quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O que será, que será?

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, hoje saído no jornal i.
Sem qualquer dúvida, o nosso sistema democrático necessita, e com urgência, de um reset.


O que será, que será?
Catorze anos depois do início de um período de estagnação económica que foi chamado de "a década perdida" e vai em década e meia, o povo português olha para o futuro com ansiedade e perplexidade.
As pessoas acham que não encontram no sistema político um rol de soluções limpas, decentes e eficientes para os problemas do país; desconfiam cada vez mais de uma classe política que consideram desonesta e incompetente e das instituições que parecem não servir o seu propósito. 
A ideia é que todos os políticos confluem na mesma sopa pragmática de soluções basicamente impostas por "Bruxelas", sem que os portugueses tenham realmente alguma coisa a dizer sobre isso. 
O fosso entre "eles", os políticos que mandam, os directórios partidários e os poderes "que são", e "nós", os que votamos por hábito e desfastio, os que pagamos impostos, os que cumprimos a miríade de regras em que o Estado ("eles") nos enreda, sempre existiu. Hoje, perante a falta de horizontes e alternativas reais, esse fosso é cada vez maior. 
Esta circunstância pode ter várias consequências: uma é a da progressiva anomia da sociedade, um divórcio crescente e desinteressado entre portugueses que obedecem ("nós") e portugueses que mandam ("eles"); outra é a do surgimento, a que até agora ficámos miraculosamente imunes, de movimentos populistas e radicais de direita ou de esquerda, ou pior, de aventuras personalistas. A verdade é que tudo tem um começo, e antes do começo era outra coisa... 
Não ajuda que a "classe política" seja vista como profundamente corrupta, mas também não ajuda que os partidos existentes, sobretudo os do tal "arco da governação", sejam hoje meras máquinas de poder, sem qualquer ideologia que os distinga nem ideias fortes para aplicar no governo. 
Por outras palavras, ninguém diz ao que vem e poucos saberão realmente ao que vêm. Também ninguém assume o custo real em impostos das exaltadas proclamações que faz antes das eleições. Tivessem-no feito e não estaríamos aqui. 
Mas, se a nossa democracia não é perfeita nem inteiramente transparente ou completamente funcional, e parece até bloqueada, há ainda muita coisa a fazer antes de pensarmos noutra coisa. 
Como na música de Chico Buarque, corre um rumor, um vozear, um vago alarido, um sentir difuso. "O que será, que será? Que anda nas cabeças, anda nas bocas; Que andam acendendo velas nos becos; Que estão falando alto pelos botecos; E gritam nos mercados que com certeza; Está na natureza. Será, que será?" 
O que este rumor nos traz é o eco confuso da vontade de mudar muita coisa no sistema político e, para começar, na forma de escolha dos nossos representantes. Não será o mais, mas não é o menos. 
Há anos que neste país em que acontece tudo e parece que não acontece nada se fala em mudar o sistema eleitoral de forma a aproximar os eleitores dos eleitos. 
Podemos do dia para a noite fazer uma revolução, chamar a troika para mandar em nós, mudar de moeda; não podemos, pelos vistos, é discutir de uma vez por todas e passar à prática uma reforma tão comezinha e simples como a que consistiria em criar, no sistema político e eleitoral, formas e mecanismos que permitam aos eleitores ter uma voz mais activa na escolha dos deputados à Assembleia da República. 
Muitos líderes políticos - aliás, todos, à vez - têm proclamado a necessidade de mudança; infelizmente, quando chega a sua vez de poder mudar, emudecem. 
A única coisa que a nossa Constituição não permite é o surgimento de candidatos independentes que se possam candidatar sem o beneplácito dos directórios partidários, claro. 
De resto, tudo é possível, incluindo a criação de círculos uninominais. 
Uma reforma sensata e bem feita deste sistema será um enorme balão de oxigénio para a democracia. Chegou a altura de a fazer.


JOÃO LUÍS MOTA CAMPOS
Advogado
Ex-secretário de Estado da Justiça

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