quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Orçamento em modo de Péradon

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, saído hoje no jornal i.
Ademais, nunca se pode chamar do Estado a um Orçamento que não inclui nenhuma ideia de fundo, qualquer projeto motivador ou política pública relevante.
 
Orçamento em modo de Péradon 
Eu explico o título. A discussão do Orçamento do Estado para 2019 lembrou-me um episódio insólito, mas verdadeiro, ocorrido por volta dos idos de maio de 1970. À época, um grupo de quatro ou cinco bons malandros de Lisboa, vistos como gente de cultura, mas longe da clássica comunidade cultural, anunciaram por vários meios e também num prestigiado vespertino a vinda a Portugal de um brilhante filósofo francês, de seu nome A. Péradon, para uma conferência sobre a sua obra. A conferência, apresentada sob o título “A revolução teórica de A. Péradon”, realizou-se numa sala com nobreza, à imagem do ilustre orador. Presentes, vultos da cultura, académicos, deputados, profissionais liberais.

Feita a apresentação por um dos promotores da iniciativa, jurista e, mais tarde, administrador de um grande banco português (tenho uma cópia da apresentação), que considerou o pensamento de Péradon como uma poderosa e coerente síntese de diversas escolas filosóficas, o convidado discorreu em francês sobre a sua obra. No período de debate, convenientemente limitado porque o professor tinha de antecipar inesperadamente o seu regresso, alguns dos presentes ainda puderam expressar o seu apreço pela obra do filósofo, lamentando o relativo desconhecimento da mesma e atribuindo-o às debilidades do ensino e a uma menor atenção das editoras nacionais. A conferência terminou em beleza.

Eis senão quando, num rápido cocktail final, um amigo dos promotores segreda a alguém que tudo não passara de uma pantomina: o prof. Péradon nunca fora nem francês nem filósofo, era um português radicado em França desde pequeno, desconhecido em Portugal, e que se prontificou a participar na brincadeira. Num fósforo, a informação espalhou-se e os promotores só não passaram um mau bocado porque já tinham saído com o palestrante. E o vespertino, que tinha caído na esparrela de divulgar a conferência, não mais falou no assunto. Aliás, não seria admissível divulgar que personalidades importantes da cultura tinham caído no logro de conhecer e comentar um autor e uma obra inexistentes…

O episódio saltou-me à memória ao ouvir os comentários sobre o Orçamento do Estado, uma ficção não menor que a obra de Péradon. É que, a avaliar pelo passado, o Orçamento que tantos solenemente debatem não durará mais do que o tempo da sua aprovação. Depois será rapidamente golpeado, ferido, cortado, cativado, transferido de rubrica para rubrica, aliviado de despesas de investimento e incrementado por vistosa despesa corrente.

Para não ir mais longe no passado, basta atentar na abissal diferença entre os valores que o OE de 2018 apresentava e as estimativas da sua execução referidas no OE para 2019: se as despesas com pessoal aumentam 377 milhões de euros em relação ao orçamentado, valor compensado por uma diminuição em 381 milhões de euros no investimento na formação bruta de capital fixo (trocando-se investimento por despesa corrente, e siga a roda…), também os consumos intermédios e as outras despesas correntes sofrem cortes de 456 milhões e de 408 milhões de euros, respetivamente. Diferenças que adulteram por completo o Orçamento aprovado, tirando-lhe todo o significado, para além de explicarem muitas das dificuldades sentidas pelos serviços, nomeadamente de saúde.

Mostram ainda os números constantes do OE para 2019 que, em 2018, o governo estima extorquir à economia mais 1320 milhões de euros de receitas fiscais que o orçamentado, além de lhe retirar mais outro tanto em investimento não realizado, consumos intermédios e outras despesas correntes, desmentindo assim por completo a propaganda de que o crescimento económico se deve à política económica e orçamental.

Ademais, nunca se pode chamar do Estado a um Orçamento que não inclui nenhuma ideia de fundo, qualquer projeto motivador ou política pública relevante. Um Orçamento cheio de medidas avulsas eleitoralistas, proclamando benesses nos livros escolares, na gratuitidade dos passes ou na redução de propinas, traficando novos impostos sobre sacos de plástico por um adiamento de declaração de outros e culminando numa descentralização sem verbas que a suportem, ou num aumento das despesas com pessoal em 1,1 mil milhões de euros em relação ao OE de 2018. Um Orçamento que rigidifica a despesa servindo alvos clientelares, em detrimento dos cidadãos.

Para coroar a ficção, o colossal embuste de inscrever despesa de 590 milhões nos mapas orçamentais e eliminá-la para cálculo do défice!

Se o OE de 2018 foi um mero derivativo exótico e enganador, o Orçamento de 2019 é um produto tóxico, sem qualquer realidade subjacente.

E quem analisa tal ficção como se realidade fosse faz mais triste papel ainda que os académicos que comentaram a ficção de Péradon. Esses procuraram esconder a vergonha, enquanto estes desavergonhadamente se prestam a divulgar o logro. Porque o OE de 2019 é tão vazio como a obra de Péradon.

António PINHO CARDÃO
Economista e gestor
Subscritor do Manifesto por Uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i

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