quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Uma democracia capturada pelos partidos

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Henrique Neto, saído hoje no jornal i.
Vivemos numa democracia capturada pelos partidos e pelo seu domínio sobre o Estado e a sociedade, o que limita por todas as formas a participação dos cidadãos na vida política. Tal não mudará até que os portugueses possam escolher os seus representantes e enviar para casa uma parte substancial daqueles que pouco ou nada fizeram para tornar Portugal uma verdadeira democracia.


Uma democracia capturada pelos partidos 
Apesar de os partidos políticos portugueses terem feito há 20 anos uma revisão da Constituição da República para permitir a reforma das leis eleitorais, no sentido da democratização do nosso regime político, nenhum dos partidos com assento na Assembleia da República se mostrou até hoje disposto a permitir essa reforma, para que os candidatos a deputados possam ser escolhidos pelos cidadãos eleitores em vez de, como agora acontece, serem escolhidos pelos diretórios dos partidos. Com efeito, o sistema atual força os cidadãos eleitores a terem de escolher entre dois males: ou a abstenção ou o voto em listas fechadas, com nomes de candidatos que os eleitores não conhecem ou que, nalguns casos, conhecem demasiado bem, mas cuja proposta de eleição não podem evitar.
Não se trata de um mero acaso da política portuguesa, mas da vontade firme dos partidos políticos com assento na Assembleia da República de deterem o monopólio da participação política, o que lhes permite reforçar o controlo do Estado e, através do Estado, controlar muitas das instituições da sociedade. Também não por acaso, todos os anos o Orçamento do Estado destina muitas centenas de milhões de euros às mais variadas instituições, com o resultado de criar as mais diversas dependências relativamente ao poder político.

Este modelo institucionalizou em Portugal o centralismo democrático da ex-União Soviética e com as mesmas consequências: permitir a impunidade das classes dirigentes e o domínio do Estado e das instituições da sociedade. Trata-se de um modelo bastante simples: o chefe escolhe os índios e os índios, agradecidos, elegem o chefe.

Há todavia uma diferença: em Portugal não há uma mas duas oligarquias que se revezam no poder e com os mesmos custos para a democracia, um dos quais é a opacidade do poder, central e autárquico. Desta ausência de transparência democrática resulta a naturalidade com que os governantes e os dirigentes partidários se recusam a esclarecer ou sequer a responder aos sucessivos casos de alegadas ilegalidades, ou mesmo de corrupção, divulgados pelos meios de comunicação social. Ter a “consciência tranquila” tornou-se numa vulgata válida para governantes, autarcas e dirigentes de futebol, além de uma demonstração clara da impunidade do poder.

Dois exemplos recentes: a senhora ministra do Mar foi acusada de ter nomeado uma amiga e sócia para um cargo público, o que foi considerado ilegal por vários juristas, mas em vez de procurar fazer a sua defesa e dar a sua versão sobre o caso, como seria natural, permitiu-se dizer que estava demasiado ocupada e não tinha tempo de responder às perguntas dos jornalistas que publicaram a notícia.

Num outro caso, a autarquia de Lisboa foi visada por acusações de um ex-autarca e por um minucioso trabalho de investigação jornalística acerca de diversos casos de favorecimento em rendosas autorizações de construção, sem que o presidente da autarquia ou qualquer outro dos restantes autarcas se tenha incomodado a explicar, ou a documentar, as razões para tão estranhas decisões, que envolvem interesses conhecidos e têm contribuído ao longo dos anos para a má imagem da gestão autárquica.

Ou seja, num qualquer regime político verdadeiramente democrático, onde a opinião pública e a opinião publicada são respeitadas, estas atitudes de arrogância e de falta de transparência nunca seriam toleradas. Em Portugal são a normalidade, como ainda recentemente aconteceu na Assembleia Municipal de Lisboa, quando o Partido Socialista, com a ajuda dos seus aliados, inviabilizou que o poder excessivo do autarca Manuel Salgado pudesse ser democraticamente avaliado.

Aliás, durante muitos anos, nem mesmo o sistema judicial se preocupou com as questões da transparência, ou mesmo com a corrupção mais evidente, até que uma nova procuradora-geral da República colocou alguma ordem na investigação da corrupção, com os resultados conhecidos. O que provocou um visível incómodo na generalidade da classe política, tendo mesmo começado a surgir as mais variadas criticas à Procuradoria-Geral da República, o que antes não acontecia, nem mesmo quando o anterior procurador-geral protegia ostensivamente um primeiro-ministro que acabou preso.

Nenhuma destas minudências parece preocupar demasiado os deputados na Assembleia da República, que, escolhidos pelas cúpulas dos partidos para a função de proteção do seu sistema de poder, o fazem sem atender à degradação dos serviços do Estado ou aos fenómenos de corrupção, por mais evidentes que se tenham tornado, ou à defesa da transparência, da ética e do bom nome da atividade política.

Ainda sobre corrupção, é significativo que a maioria dos partidos políticos não aparentaram sentir qualquer incómodo com a recente substituição da procuradora Joana Marques Vidal, ou com o facto de o governo ter pedido a opinião dos partidos um dia antes de a decisão ser anunciada e, obviamente, depois de assumida pelo Presidente da República – o que deveria ser considerado um caso limite de falta de decoro institucional, que afeta o próprio Presidente, mas que para os partidos se trata de uma não questão. Suponho, por isso, que toda a encenação feita pelo governo, que durou quase um ano, teve como consequência dar alguma esperança aos acusados pela justiça e acalmar algum nervosismo latente no Partido Socialista. Digo-o com a convicção de saber o que a casa gasta, mas sem qualquer juízo negativo sobre a nova procuradora, que apenas espero e desejo tenha o maior sucesso na sua missão. Preferiria apenas que, como acontece noutros países, antes da sua confirmação tivesse de defender publicamente ser a pessoa certa para o lugar.

Em resumo, vivemos numa democracia capturada pelos partidos e pelo seu domínio sobre o Estado e a sociedade, o que limita por todas as formas a participação dos cidadãos na vida política. O que, como parece evidente, não mudará até que os portugueses possam escolher os seus representantes e enviar para casa uma parte substancial daqueles que, ao longo dos últimos anos, pouco ou nada fizeram para tornar Portugal uma verdadeira democracia, com as consequências que todos conhecemos.

A primeira e principal consequência tem sido a falta de ação fiscalizadora dos governos pelo parlamento, o que permitiu uma longa lista de erros de governação, como os investimentos feitos sem retorno económico, a criação desmiolada de uma enorme dívida pública, a destruição de uma parte do sistema financeiro, a generalização da corrupção e o empobrecimento do país relativamente a quase todos os outros países da União Europeia. São estas as razões que estão na origem da longa batalha cívica travada há anos pelos subscritores do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”, com o objetivo de que sejam os eleitores portugueses a escolher os seus representantes, um a um, como acontece na generalidade dos países mais avançados da União Europeia. Trata-se de um ato de fé nas virtudes da democracia.

Henrique NETO
Empresário
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA: artigo publicado no jornal i.

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