Nos idos de 2009, quando ainda era possível travar nos trilhos o então 1º Ministro José Sócrates e impedi-lo de espatifar o país, um ministro socialista, Augusto Santos Silva, publicou um artigo num jornal a atacar por canalhice quem ousasse pretender, contra a evidência, que Sócrates podia estar implicado no caso Freeport.
Decidi responder a esse artigo/panfleto e escrevi outro que enviei a vários jornais para publicação. De uns nem resposta recebi, de outros disseram-me que não era nada, mas mesmo nada oportuno.
Quando agora vejo tanta gente a dar por adquirido que Sócrates seja corrupto, lembro-me desse artigo que então escrevi e que ninguem quiz publicar.
Aqui vai, com seis anos de atraso:
Dois pontos permitem traçar uma recta...
Um ponto num
mapa não define nenhuma direcção. Dois pontos permitem traçar uma recta que os
una. Uma recta é uma linha que une dois pontos, mas pode ser uma elipse a ligar
os dois pontos e não uma recta. Se houver um terceiro ponto de permeio
confirma-se a existência da recta, e assim sucessivamente. Quando eramos
pequenos uma distracção muito usada era a de fazer desenhos unindo os pontos
pré-definidos numa folha de papel.
Podemos entreter-nos
com essa brincadeira. Suponhamos um ponto: um licenciamento de um outlet em
Alcochete feito em circunstâncias excepcionais de velocidade e facilidade
súbita.
Suponhamos um
segundo ponto: o promotor desse outlet é adquirido por outra empresa que
descobre um buraco nas contas.
O primeiro
ponto pode ser revelador de uma enorme capacidade de resposta da administração
pública portuguesa. O segundo, de uma fraude praticada nas contas do promotor
do outlet pelos seus então gestores.
São dois
pontos, mas em dois planos diferentes. À partida, nada permite uni-los.
Ocorre que os
então gestores do promotor do outlet declaram que o buraco que existe nas
contas se deve a saídas ilegais de dinheiro, para corromper os decisores
políticos que com tanta velocidade e súbita facilidade licenciaram o outlet em
causa.
Tornados
públicos, estes dois factos causam apreensão: será que os gestores do promotor
do outlet praticaram uma fraude, meteram o dinheiro ao bolso e estão a inventar
desculpas inverificáveis, ou a sua história tem alguma consistência e pode ser
verificada?
Esta é a
questão que a policia inglesa decidiu investigar, afim de determinar se os
gestores do promotor do outlet praticaram um crime de fraude (embezlement)
metendo milhões no próprio bolso, ou se praticaram um crime de corrupção activa
ao serviço da empresa de que eram gestores.
Para a
policia inglesa trata-se apenas de seguir o rastro do dinheiro para determinar
qual destes dois crimes ocorreu.
Começa por
indícios circunstanciais: uma conversa gravada entre administradores da empresa
e mandatários em que uns declaram a outros que usaram o dinheiro desaparecido
para corromper decisores políticos. O que é que esta gravação prova? Nada, a
não ser que a conversa ocorreu e que as declarações em questão foram feitas, se
puder ser verificada a autenticidade da gravação.
Seguidamente
os ingleses querem saber por quanto foi adquirido o terreno em causa, se foi
pelo valor declarado na escritura, se foi por outro, e se ficou algum montante
nas mãos dos Advogados e mandatários, para outros fins.
Depois, quais
são os movimentos bancários dos diversos intervenientes, à época do negócio. E
por aí fora...
São coisas
simples que permitiriam desde logo estabelecer com alguma razoabilidade a
consistência da explicação dos gestores e apontar na direcção de uma fraude nas
contas da empresa ou de saídas ilegais de dinheiros para decisores políticos.
Quem pode
investigar com objectividade e sem excessivas suposições estes factos, é a polícia
portuguesa. Ocorre que na gravação em causa foi citado o nome de um filósofo
grego, e perante uma questão filosófica de tal magnitude, a polícia portuguesa
gelou.
Entretanto,
na outra folha de papel, aquela onde existe um ponto que é o licenciamento
extraordinário do outlet de Alcochete, a opinião pública enlouqueceu com
questões filosóficas e, por uma vez, os jornais de referência, em vez de a
satisfazerem com relatos de assassínios de amantes à machadada, decidiram
servir-lhe teorias socráticas. Dá-se ao público o que ele quer ler, é a
primeira regra da imprensa.
Chegados
aqui, podíamos estar perplexos com as teorias inglesas sobre fraude ou
corrupção no grupo inglês Freeport, mas ocorre que os personagens envolvidos
são também portugueses e que que se houve corrupção activa (e não fraude), em
Portugal ocorreu corrupção passiva. É como na contabilidade com os balanços das
empresas: a um activo há-de sempre corresponder um passivo, porque no fim, os
dois valores têm de ser iguais.
É claro que
continuamos apenas com um ponto: um licenciamento muito rápido e subitamente fácil
do outlet. Quanto ao mais, o mais provável é os inglese estarem a mentir e
terem metido o dinheiro ao bolso.
Aparece no
entanto, outro ponto nesta linha: o tio de um sobrinho decisor político declara
que não tem nada a ver com o caso, que se limitou a apresentar um dos ingleses
mentirosos ao sobrinho decisor; Antes da súbita facilidade e da surpreendente
rapidez...
E descobrimos
mais: em 2004, dois anos decorridos sobre o licenciamento, houve nesta folha de
papel outro ponto. Uma denúncia do caso que foi configurado como corrupção.
Ficámos a saber que as autoridades portuguesas se recusaram a investigar. Ponto
surpreendente.
Ao Dr.
Augusto Santos Silva, cuja mente analítica quer factos, respondo: reflicta
nestes e diga-me se uma recta é ou não é uma linha que une dois pontos. Claro
que ao unir os acima descritos pode chegar a um quadrado, definir um triângulo
maçónico, ou traçar uma recta, lisa e direita como uma seta, apontada ao
coração da filosofia, objectiva como uma bala...»
Em francês: non, vous n'êtes pas Charlie, vous êtes des CONS.
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