Sobre a questão dos feriados, debate que se arrasta desde 2012 - em que bem parece confirmar-se que "o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita" -, também decidi apresentar, ontem, um projecto de lei pessoal na Assembleia da República, que pode consultar aqui [Projecto de Lei n.º 751/XII/4ª], e escrevo hoje, no jornal PÚBLICO, o artigo que transcrevo abaixo.
As três lendas do caso dos feriados
A primeira é a lenda fantástica da suspensão encantada.
Contaram-me um provérbio antigo: “a palavra é criação do diabo para o homem esconder aquilo que pensa.” Nunca li a existência do provérbio, mas já o tenho visto acontecer. Não podemos, porém, levá-lo a sério. Quando alguém diz ou escreve, diz ou escreve o que quer significar.
Há duas palavras bem distintas: uma é “suspensão”; outra é “eliminação”. Se eu quero suspender, escrevo “suspensão”; se quero eliminar, escrevo “eliminação”. Se se escreveu “eliminação”, é porque se quis eliminar; porque, caso se quisesse suspender, ter-se-ia escrito “suspensão”.
Custa compreender a persistente mistificação alimentada a respeito dos feriados banidos. Por exemplo, a frase “não houve eliminação de feriados, mas sim a suspensão de quatro dias feriados” resolve-se com três palavras apenas: não-é-verdade. Os quatro feriados foram eliminados. Ainda hoje, os feriados estão eliminados. Para os repor, no todo ou em parte, é preciso repô-los. Não há qualquer suspensão que viesse a esfumar-se assim, candidamente, sem nada ter de fazer. Vigora uma eliminação.
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Surpreende que a comunicação social embarque acriticamente na mistificação, contribuindo para a desinformação do público, quando os factos e os textos são claros.A lei votada em Maio de 2012, na Assembleia da República, não pode ser mais clara no seu texto: “A eliminação dos feriados de Corpo de Deus, de 5 de Outubro, de 1 de Novembro e de 1 de Dezembro, resultante da alteração efectuada pela presente lei ao n.º 1 do artigo 234.º do Código do Trabalho...” E quem consultar, hoje, este artigo 234º, que contém o catálogo legal dos feriados, verificará que aqueles quatro dias já lá não constam. Sumiram… Foram apagados.
A inicial proposta de lei do Governo, aprovada em Conselho de Ministros de Fevereiro de 2012, não escondia, aliás, o propósito, na Exposição de Motivos: “no domínio dos feriados, procede-se à redução do catálogo legal, mediante a eliminação de quatro feriados, correspondentes a dois feriados civis e a dois feriados religiosos.” As palavras são claras. E ficaram em letra de lei. Não houve suspensão. Porquê? Porque quem tinha o poder de determinar não o quis; quis eliminar.
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O que aconteceu foi reacção cívica contra isso, nomeadamente a que tenho animado no Movimento 1º de Dezembro. Assim se produziram mudanças.
A primeira teve a ver com uma trapalhada. Estando limitado pelo regime da Concordata, o Governo, de facto, teve de acordar com a Santa Sé o regime quanto aos feriados religiosos que fossem tocados. Fez um acordo, creio, a 7 de Maio de 2012. E, no dia seguinte, o acordo foi logo violado. O acordo nunca foi publicado – o que, neste contexto jurídico concreto, é extraordinário… – e, portanto, não se conhecem exactamente os seus termos. Apenas conhecemos o teor dos comunicados emitidos simultaneamente, no dia 8, pelo Governo (Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Economia) e pela Santa Sé (Nunciatura). É daí que vem a lenda da “suspensão”, embora os textos dados a público dela não falem. O comunicado do Governo, por exemplo, diz o seguinte: “entendimento excepcional (…), nos termos do qual não se observarão, durante um período de cinco anos, os feriados” tal e tal. Porém, tendo o Governo acordado nisto no dia 7, a proposta de lei alterada em consequência na especialidade, no dia 8, e aprovada em votação final global, no dia 11, estipulou a eliminação pura e simples, sem rebuço, sem ressalva, sem reservas.
Daqui resultou um imbróglio sério, para que logo chamei a atenção e em que insisti. Ocorreram peripécias que me poupo de contar. E é no rescaldo disto que, quase um ano depois, em nova alteração ao Código do Trabalho publicada em Agosto de 2013, é feita uma primeira correcção, ficando a norma assim: “A eliminação dos feriados de Corpo de Deus, de 5 de Outubro, de 1 de Novembro e de 1 de Dezembro, resultante da alteração efectuada pela presente lei ao n.º 1 do artigo 234.º do Código do Trabalho (…) será obrigatoriamente objecto de reavaliação num período não superior a cinco anos.”
Foi um acrescento metido a martelo, quase clandestinamente, com técnica jurídica original (uma lei preambular que altera outra lei preambular), enxertado em revisão do Código de Trabalho em matéria bem diversa (as indemnizações por despedimento) e que nem figurava na proposta inicial, nem no texto de substituição que subiu a debate no plenário. Entrou apenas à última da hora em votação na especialidade, nas sessões finais de Julho, antes das férias de Verão.
Porém, mesmo após esta correcção cirúrgica, nem aí pode ler-se “suspensão”: a lei continua a dispor “eliminação” e comina apenas uma vaga obrigação de “reavaliação”, seja o que for.
Se houve erro na expressão da vontade política e, nomeadamente, na tradução do acordado com a Santa Sé, há que rever novamente a lei, por forma a fazê-la corresponder ao efectivo pensamento do legislador: se se quis suspensão, é suspensão que tem de ficar escrito. As palavras falam. E vinculam.
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Outra lenda é a de que acordos internacionais impedem, agora, de mexer no assunto. Suponho que a lenda se refira ao diálogo com a Santa Sé e ao tal acordo que tudo permitiria deslindar, mas que mora no segredo dos deuses – e de alguns homens também.
É a suave lenda dos acordos misteriosos.
Todavia, nada nos impede de eliminar a eliminação de feriados – amanhã mesmo, se o quiséssemos. Ou de levantar a suspensão, se de suspensão se tratasse.
O Estado Português estava impedido de cancelar feriados contra a Concordata – mas foi o que fez. Daí o tal acordo secreto, que não se conhece. Face à situação criada, eu sustento que, diga esse acordo o que disser, a nossa lei ficou ilegal à luz do Direito Internacional, por violar um catálogo de feriados religiosos que consta da Concordata e que, nos termos da Constituição, entrou directamente em vigor – e está, portanto, em vigor. Esse processo jurídico seria, porém, tão complexo que o melhor é resolver as coisas politicamente. E com bom senso.
A posição jurídica do Estado Português diante da Santa Sé é, hoje, frágil. E tornar-se-á absolutamente insustentável ao expirar dos cinco anos de que falam os dois comunicados trocados a 8 de Maio de 2012.
Porém, se, hoje mesmo, o Estado Português quisesse de novo realinhar a lei com o catálogo expresso da Concordata, não haveria obviamente problema algum. Antes pelo contrário: estaria reconstituído o Direito.
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A última lenda tem a ver com a troika. Que se saiba, objectivamente, a troika não meteu aqui prego, nem estopa.
Não há no Memorando de Entendimento de Maio de 2011 uma só referência à eliminação ou suspensão de feriados. Pior: o que foi legislado contraria o próprio Programa de Governo. Nas versões posteriores do Memorando, que várias foram, tão-pouco consta o assunto. Não recordo um só dos doze relatórios de avaliação que o referisse, erigindo-o como uma condicionalidade satisfeita. E não tenho ideia de alguma vez ter sido valorizado nas inúmeras reuniões da Comissão de Acompanhamento com a troika.
A troika tem as costas largas.
É a terrível lenda do dragão da troika.
Por isso, depois de o Governo – e bem – ter enfrentado a troika na questão do salário mínimo, menos compreendo que não se reponha já o feriado incomparável: o 1º de Dezembro. Que não volte já o feriado que celebra o valor único da independência nacional de Portugal e, por isso, é o feriado dos feriados, o mais alto dos feriados nacionais. E que, a partir daí, se esclarecesse também com a Igreja a festividade religiosa que deveria ser já reposta (em minha opinião, o 1 de Novembro) e se abrisse um diálogo institucional sério para resolução concertada e duradoura desta matéria.
José RIBEIRO E CASTRO
Deputado do CDS-PP
in jornal PÚBLICO, 14-jan-2015
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