Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, hoje saído no jornal i.
O embaixador de Corcira foi breve e singelo no discurso. Esquecendo contenciosos antigos, limitou-se a justificar o pedido com um projecto de futuro.
Ágora de Atenas, na Antiguidade |
Olhar o futuro – uma lição da Grécia antiga
Algures no século V a.C., as cidades gregas de Corinto e de Corcira, actual Corfu, enviaram embaixadas a Atenas a fim de obterem o apoio ateniense para a guerra que travavam entre si.
Atenas e Corcira eram cidades rivais, mantinham um longo historial de lutas e possuíam as duas mais poderosas armadas da Grécia antiga. Ao contrário, Atenas e Corinto eram, por essa altura, cidades amigas, e muitas vezes Corinto veio em apoio de Atenas nas batalhas com as cidades do Peloponeso ou da Grécia central.
Foram os embaixadores admitidos à ágora soberana de Atenas para expor os seus argumentos. O embaixador de Corcira foi breve e singelo no discurso. Esquecendo contenciosos antigos, limitou-se a justificar o pedido com um projecto de futuro: uma aliança entre as duas cidades tornava-as invencíveis. As duas poderosas frotas de guerra unidas dariam uma vantagem única a Atenas nas disputas, nomeadamente com Esparta, algo que Corinto nunca lhe poderia assegurar.
Por sua vez, o embaixador de Corinto fez um longo e solene discurso em que enfatizou a rivalidade entre Atenas e Corcira, enumerou os anos de guerra, e descreveu as batalhas e os sacrifícios que Corcira tinha infligido aos atenienses.
No fim, lembrando a generosidade da sua cidade no auxílio nunca negado a Atenas, apelou ao sentido de justiça e de gratidão dos atenienses e, assim, ao apoio a Corinto na guerra com Corcira.
Deixando os cidadãos na ágora de Atenas a deliberar sobre as propostas, passemos, 25 séculos depois, à ágora eleitoral portuguesa, em que os embaixadores dos diversos partidos políticos apresentam as suas propostas ao povo.
E o que se sente e vê e ouve são embaixadores de Corinto a várias vozes que, em vez de projectos de futuro, insistem nas guerras do passado. Apontam uns o caos que encontraram e outros a crise que os primeiros acentuaram; pedem uns a gratidão do povo pela obra feita na economia e no emprego, na preservação do Estado social e desestatização da economia, e outros pedem castigo pelos malefícios da governação, o definhamento dos serviços públicos, a emigração que empobrece o país.
Como se cada cidadão não sentisse e compreendesse o que foi e o que é, e não sentisse à sua maneira o passado e o presente, sem precisar de explicador que o convença.
Vinte e cinco séculos atrás, a assembleia ateniense votou a favor da proposta de Corcira. Esquecendo agravos dos inimigos e a generosidade dos aliados, a assembleia pragmaticamente escolheu a proposta que, de modo simples, lhes falava do futuro, não de promessas vãs, mas de um projecto de vitória bem alicerçado na força de uma aliança comum.
Também agora os cidadãos não votam e escolhem governos por se sentirem devedores pelo bem que estes lhes trouxeram ou por se sentirem credores, face aos agravos recebidos, que até são propensos a esquecer, como os atenienses não se sentiram gratos a Corinto pelo apoio prestado, nem vingativos em relação a Corcira pelos danos que suportaram, e o que pretendem é propostas sérias de futuro, justas e compreensíveis.
Como não as têm, os cidadãos participam cada vez menos na grande ágora eleitoral, cansados das sempre renovadas lutas do passado, de propostas demagógicas tantas vezes embrulhadas em brilhantes mas vazios power-points, revisíveis a cada semana, das reacções pueris a cada frase do rival. E ou os partidos olham em frente e trazem novas e consistentes propostas, simples e entendíveis, ou ficam condenados a arengar sozinhos sobre o passado e, enfim, a desaparecer.
Só olhando o futuro se pode avançar para uma democracia de qualidade.
António PINHO CARDÃO
Economista e gestor - Subscritor do Manifesto por Uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.
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