quarta-feira, 30 de março de 2016

A arte da mistificação

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, ontem saído no jornal i.
Após a aprovação do OE, um proeminente político da esquerda portuguesa comparava, satisfeito, o trabalho da construção e da coordenação do Orçamento e do programa do governo PS com a filigrana de uma excelsa obra de arte, como o Partenon.

A arte da mistificação

Ignorando o absurdo do dislate, e embora por razões perversas nas quais nunca teria pensado, o político acaba por ter alguma razão. É que, se foram propósitos mistificadores que estiveram na origem do Partenon, segundo muitos historiadores, também, embora com diferente natureza, a mistificação está embebida no programa do governo e no OE.

O Partenon foi apresentado oficialmente aos atenienses como objetivo religioso de culto e homenagem à deusa Atena, mas o verdadeiro objetivo de Péricles era político: erguer um monumento cuja imponência mostrasse o poder de Atenas e, com ele, a sua glória pessoal, e que intimidasse quem das cidades rivais demandasse o porto do Pireu. Mas, simultaneamente, cuja grandiosidade aparecesse apoucada aos olhos dos atenienses que o viam de perto, pois, embora com a promessa de ser financiado pelo tesouro de Delos, logo sem custos para a cidade, Péricles sabia bem que eles seriam também chamados a pagar a obra. E esse efeito de ilusão foi conseguido através de criações arquiteturais, num jogo de convexidades e concavidades, grossura ou adelgaçamento das colunas e refinamentos escultóricos que tornaram o monumento muito mais grandioso ao longe, com contornos simétricos, do que visto de perto, nas suas linhas retangulares.

Mas se o Partenon permanece como obra-prima prodígio de criatividade e beleza, símbolo da arte universal, o programa do governo PS e o OE não passam, no seu todo, da absoluta e total mistificação que os originou.

O objetivo proclamado de acabar com a austeridade iludia e escondia o verdadeiro objetivo de sustentar um governo saído de um partido que perdeu as eleições e de tornar o líder vencido num primeiro-ministro aparentemente vencedor. Concebido como monumento glorificador do consumo para gerar crescimento e autofinanciar mais despesa, contraditoriamente, logo aumentou os impostos sobre o consumo para produzir a receita inicialmente atribuída ao crescimento. Tal como, em Atenas, o tesouro de Delos não chegou para erguer o Partenon, tendo de se recorrer aos atenienses.

E se o Partenon era visto ao longe como obra grandiosa e, de perto, como algo menos imponente, o programa do PS, ao contrário, visto de perto pelos seus sequazes, é obra-prima e a alternativa segura, mas visto a maior distância apresenta desconformidades reconfirmadas por entidades independentes como a UTAO, o Conselho das Finanças Públicas, o Conselho da Concertação Social e as entidades europeias competentes.

Visto de perto, atualiza o salário mínimo, contrariando uma política de salários baixos, mas numa visão mais larga estimula o salário mínimo ao premiar com uma redução da TSU os empregadores que o praticam.

Visto de perto, promete mais emprego, mas em visão aberta aumenta a tributação das empresas, restritiva do investimento e do emprego.

Visto de perto, promete maior igualdade, mas visto do horizonte promove desigualdade nos horários de trabalho entre funcionários públicos e restantes trabalhadores

Visto de perto, afirma cumprir promessas e a Constituição, mas em visão abrangente mantém uma sobretaxa que condenava em absoluto e uma CES inconstitucional.

Um tal programa, que encerra tão densa filigrana de sofismas, nega em absoluto uma democracia de qualidade.

Porque democracia de qualidade exige, acima de tudo, verdade, e abjura em absoluto a arte da mistificação. 

António PINHO CARDÃO
Economista e gestor - Subscritor do Manifesto por Uma Democracia de Qualidade


1 comentário:

Augusto Küttner de Magalhães disse...

Público de hoje

Bom dia

Muito oprtuno.
Um bom fim-de-semana,
Um abraço
Augusto.
E:

Aquele dia triste em São Bento

Não devemos embarcar em campanhas hostis; mas também não podemos ser cúmplices do inaceitável.

E, em boa verdade, também vergonha.
Não podemos ser indiferentes.