Não há muitas semanas, alguém me observou isto. Penso que foi a Margarida. Não tenho a certeza, mas acho que foi a Margarida Neto que me notou que não há um Dia do Irmão; e que tínhamos de fazer qualquer coisa para preencher esta lacuna.
É verdade: não há. Há tantos dias de tanta coisa e não existe um Dia dos Irmãos. Andei a ver na Internet – hoje, vê-se tudo na Internet. É exacto: não há mesmo, estabelecido, um Dia dos Irmãos e Irmãs. Depois de ter feito este comentário público, há dias, a seguir à morte do meu irmão, já recebi indicações de movimentos nesse sentido. Mas são notícias escassas e incertas, que já pus na Internet. Temos caminho para fazer.
O meu Dia do Irmão é 31 de Maio, o dia em que o Fernando nasceu. Já não resistiu para chegar ao 31 de Maio deste ano. Já não chegou aos 62 anos. Partiu com a mesma idade do nosso pai, aos 61 anos. Parece-nos cedo; parece-nos mesmo muito cedo.
Quando eu nasci, o Fernando já cá estava. Sempre conheci a vida com o meu irmão. Foi o meu primeiro companheiro: um grande companheiro, um verdadeiro camarada.
Das frases que mais gostava de ouvir ao Fernando, no seu labor pelas famílias e pelas famílias numerosas em especial, aquela de que eu mais gosto e mais cito é esta: “Se queres ver uma criança feliz, dá-lhe um irmão. Se queres ver uma criança muito feliz, dá-lhe muitos irmãos.” Repito: “Se queres ver uma criança feliz, dá-lhe um irmão. Se queres ver uma criança muito feliz, dá-lhe muitos irmãos.”
É verdade. É exactamente assim. Eu só posso falar – e falo – da felicidade que é ter um irmão: uma felicidade indescritível, um tesouro de cumplicidade. Os meus filhos e, sobretudo, os meus sobrinhos, que são desse departamento, podem confirmar, e confirmam, a muita felicidade que é ter muitos irmãos, muitos irmãos.
Quando éramos crianças, tinha eu 10, ele já 12 anos de idade, Setembro de 1964, demos uma volta pela Europa com os nossos pais. De carro: um velho Taunus 17M, matrícula CI-79-16. Ao chegarmos a Saló, em Itália, nas margens do Lago Di Garda, entrando no hotel, o Touring Hotel, a recepcionista exclamou para os pais, apontando para nós: “Belli bambini! Uno como mamma, altro como papa!” A coisa deu risota, claro. E ficou como anedota repetida de brincadeiras familiares: “Uno como mamma, altro como papa!” Um seria mais parecido com a minha mãe, o Fernando; outro com o meu pai, eu próprio.
À medida que os anos foram passando, e sobretudo os quilos pesando e a convergência grisalha fazendo a maquilhagem a partir dos nossos 40 anos, fomo-nos achando cada vez mais parecidos. E eu sempre sorri muito ao ver os meus filhos ou os meus sobrinhos, diante de um gesto, de um à parte, de um comentário, de um riso, de uma piada, de um trejeito, de um repente qualquer, exclamarem, apontando para nós: “Iguais! São iguais! Iguaizinhos…”
Isso é uma grande responsabilidade para mim. Oxalá essa parecença e semelhança possa atenuar a dor e o vazio da partida do Fernando, no coração e no olhar daqueles que lhe são mais próximos. Deus queira.
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Nos sessenta anos que vivemos em comum este tempo, o último ano foi, para a família, carregado de novas experiências e ensinamentos. Densos, muito densos.
Fez agora um ano e um mês que foi detectada a doença que lhe foi fatal, um cancro nos pulmões da pior espécie. Foi uma terrível notícia – prognóstico ruim, mau, muito mau.
Este tempo teve dois tempos: um tempo de luta e muita esperança, sobretudo até ao Verão passado e depois ainda até Dezembro; e outro tempo de luta ainda, de esperança sempre, mas já marcado pela fatalidade, de Dezembro para cá, mais estreito desde Janeiro.
Lembro-me de ter acompanhado, não há muito, a última estrada de uma grande amiga, a Maria José, que, nesses seus meses finais, me dizia: “Ó Zé, agora é que vamos ver se acreditamos mesmo naquilo em que andámos a dizer que acreditamos.” Ela mostrou não só acreditar, mas confiar: no Bom Pastor, de que nos deixou um testemunho formidável. O Fernando também.
Eu não sou de muitas palavras; e, nestas coisas, o Fernando também não. Entendíamo-nos sem palavras. Nestas coisas, que são difíceis e dolorosas, há como que uma “no talk rule” (uma regra de não falar) por que achamos fazer assim mais suaves estas travessias e viagens, afastando as más notícias.
De Dezembro para cá, desde antes do Natal, o caminho tornou-se mais duro e apertado. E, nas nossas conversas, com o Fernando e, às vezes, também com a Leonor, os véus foram caindo a pouco e pouco. Do que sabíamos e desconfiávamos; ou temíamos. Foi-se passando do “sei que tu sabes” ou “tu sabes que eu sei”, para “tu sabes que eu sei que tu sabes” e, mais à frente, para “tu sabes que eu sei que tu sabes que eu sei”.
A cada um destes véus que caía, era preciso, interiormente, fazer um luto – o outro, afinal, também sabia – e, ao mesmo tempo, recuperar o fôlego, manter e alimentar a esperança para seguir o caminho. Em frente. O Fernando foi exemplar nessa estrada de fé e testemunho. E a Leonor também. E os meus sobrinhos.
Na penúltima vez que almoçámos juntos, perto do seu trabalho, o Fernando contou-me como, aquando de uma das suas últimas crises, a meio de Fevereiro, morreu uma senhora na cama ao seu lado, no 6º andar do I.P.O., onde era assistido e socorrido nos sobressaltos que lhe aconteciam, cada vez mais frequentes. E pela forma como me contou, com pormenor, as conversas da Leonor e dele com a senhora, e com a sua filha, como a senhora voltara a rezar, a sua breve agitação final e o repentino momento sereno da partida, eu percebi que o Fernando, nesse almoço, desse dia, me estava a querer dizer que pedia a Deus que, na sua terrível doença, lhe desse uma morte assim: que, chegada a hora, o chamasse de uma vez só.
Acredito que Deus lhe correspondeu. Ainda na terça-feira da semana passada, ao fim do dia, em sua casa em S. Domingos, rimos e planeámos coisas como se não houvesse fronteira. Na quarta-feira, faz hoje uma semana, teve o seu último Dia do Pai – merecia-o: Pai foi sempre o seu posto principal – e foi trabalhar, fora de casa; foi também à missa por S. José na Igreja de S. José. Na quinta-feira, o seu último dia, todos contam que esteve muito bem e activo de manhã, a trabalhar em casa; e, depois, à tarde, passou mal, voltou de urgência ao I.P.O., onde nos juntámos todos – e Deus chamou-o. Não sofreu muito. Graças a Deus.
Por curiosidade, nesse mesmo último dia, quinta-feira, à noite, na Internet (hoje, vê-se tudo na Internet), fui ler o Salmo da missa do dia da partida do meu irmão. Diz assim, o Salmo do dia 20 de Março:
«Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios,
nem se detém no caminho dos pecadores,
antes põe o seu enlevo na lei do Senhor
e nela medita dia e noite.»
Pelo Fernando, não tenho dúvida alguma: estava preparado. Assim Deus o receba na Sua graça – e o Fernando possa já estar na companhia da nossa mãe e do nosso pai, que também partiram cedo.
Imagino até que, neste reencontro, uma vez que o Fernando foi sepultado de novo fardado como Capitão-de-Fragata, o nosso pai tenha ido logo verificar se trazia as meias bem calçadas. Há uma história, na verdade, que ilustra bem uma das facetas do temperamento do meu irmão.
Um dia, aluno ainda da Escola Naval, já depois da Páscoa, foi a casa trajando a farda de Verão, a farda branca da Marinha. Ao sentar-se e cruzar a perna, o pai, que era bom observador, notou que o Fernando trazia calçadas meias diferentes: uma curta e outra de cano alto. E disse-lhe: «Ó Fernando, tens que ter cuidado. Estás com meias diferentes.» Resposta pronta do Fernando: «Ó Pai, o Regulamento diz que as meias têm que ser brancas, não diz que têm que ser iguais.»
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O Fernando foi um grande homem. O melhor irmão que eu tive – não houve igual. Foi bom marido e um grande pai e avô. Um tio querido dos meus filhos. Um óptimo companheiro de toda a gente, um camaradão. Um bom carácter, um homem simples. Um aluno brilhante e um profissional distinto. Um excelente professor da Escola Naval. Um militar dedicado e marinheiro de eleição, a sua grande vocação. Nas curvas, e contracurvas, e percalços da vida, agradeço que o Fernando possa ter morrido de novo ao serviço do mar, embora agora em capacidade civil, regressando ao seu território, no Fórum que dirigia – o Fernando era verdadeiramente um homem do mar. Foi o “penico” do seu curso de Marinha (para quem não saiba, “penico” é o primeiro do Curso) e o primeiro também no exigente M.I.T., em Boston, Massachusetts. Foi um grande engenheiro – desde garoto que o conheci como um “engenhocas” de grande capacidade inventiva e de solução de problemas. Fizemos inesquecíveis brincadeiras de engenharia. E era ainda um mais competente e brilhante profissional.
Foi um lutador, um lutador incansável. Uma fonte inesgotável de alegria, de optimismo e de confiança. Um homem de grandes capacidades cívicas, que pôs ao serviço da sociedade e do país, com grande generosidade e capacidade de entrega.
Na quinta-feira à noite também, na Internet (hoje, vê-se tudo na Internet), li este título: «Morreu o “pai” das Famílias Numerosas» – era o título da notícia da Rádio Renascença online. É verdade. Todos sabemos a obra ímpar que imaginou e concretizou, concebendo, lançando e fortalecendo a APFN em Portugal. E eu pude ver (e ter o privilégio de, às vezes, acompanhar) o trabalho extraordinário que desenvolveu e edificou por toda a Europa, na ELFAC – European Large Families Confederation, e a forma como era tão estimado e tão admirado em muitos países europeus.
Fosse na temática familiar, na causa da Vida, na militância católica – De Colores! –, na visão do Mar como grande desígnio do país, ou noutras causas calorosas que abraçou na sua vida, o Fernando povoou o terreno de sinais: fez muitos amigos, incontáveis amigos, e deixou muitas sementes, inumeráveis sementes. Deixou muito por fazer. São coisas que temos de continuar.
Ainda bem que é assim. Ainda bem que nos deixou muito para fazer. É sempre bom sabermos o que temos para fazer; e para onde.
Graças a Deus.
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Umas palavras finais com alguns agradecimentos.
Na missa de encomendação, exprimi os agradecimentos da família ao município de Cascais – que foi o município do meu irmão -, à Marinha – que foi sempre o seu povo – e à Igreja, que somos todos os cristãos – Igreja que sempre acolheu o Fernando e onde ele sempre se sentiu cada vez melhor.
Junto mais alguns agradecimentos. À freguesia de S. Domingos de Rana, que era a sua Sesame Street familiar (a sua Rua Sésamo, de à vontade, pertença e confiança), onde passámos férias da nossa juventude, onde conheceria a Leonor, onde sempre viveram com todos os filhos quando por cá – e ficou, em definitivo, a ser a sua terra. Um agradecimento também ao Sistema Nacional de Saúde, em especial aos médicos, enfermeiras e auxiliares que o trataram e socorreram, sobretudo neste último ano tão exigente, a todos os que puseram o sistema de pé, o desenvolvem e mantêm, apesar das dificuldades – sem o sistema de Saúde, nós não teríamos como.
Enfim, uma palavra para a Leonor. Os meus pais foram padrinhos de casamento da Leonor e do Fernando, em 2 de Junho de 1973. Em representação da mãe e do pai, que já não estão cá para o fazerem directamente, eu quero agradecer à Leonor a felicidade que deu e partilhou com o Fernando, o amor e a coragem incondicionais de vida inteira e total, desde aquele primeiro dia adolescente junto ao nicho de Santo António, nos Gafanhotos, até ao leito da morte propriamente dito, no cubículo discreto da urgência do I.P.O. Eu sou testemunha. Alguns de nós, amigos e familiares aqui presentes, estivemos em S. Domingos de Rana nas Bodas de Prata do Fernando e da Leonor, em 1998. No passado dia 20 de Março deste ano, 2014, a Leonor e o Fernando celebraram também as suas Bodas de Diamante: de diamante, porque são rijas, porque são eternas e porque brilham. Hoje, é também o 7º dia dessa festa.
Graças a Deus.
José Ribeiro e Castro
Lisboa, Santa Maria de Belém, quarta-feira, 26 de Março de 2014
2 comentários:
Tive o previlegio de trabalhar com o Fernando quando estive no Arsenal do Alfeite ,apesar de algumas divergencias profissionais,sempre o respeitei e admirei ,o passado foi posto para tras numa conversa que tivemos num encerramento de um Cursilho onde a sua esposa foi uma das oradoras ,ai ficou enterrado o passado e nos ultimos anos quando nos encontrava-mos por ai la ficava-mos um pouco a conversa e a falar sempre no presente.
Perdemos um grande homem do mar , e um grande pai de familia ,onde ele estiver de certo que estara a olhar por todos e a interceder pela sua familia.
Ate um dia Fernando
Comovente este seu texto...gostei muito e emociona.
Bem haja
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