sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O Colapso Do Estado de Direito?



Cada vez estou mais preocupado com o caso Sócrates.
Muito simplesmente, o ex-primeiro ministro está preso há mais de dois meses, não há nenhuma acusação, as noticias que vêm na imprensa falam de uma vida privada financeiramente desregrada, mas não indiciam qualquer crime (pedir dinheiro emprestado, ou obter doações da Mãe, até ver não é crime), sabe-se que o «caso» estaria a ser investigado há ano e meio e ainda assim, o Ministério Público não parece ter nada de sustentado nas mãos; só suspeitas.
Não conheço, por culpa da Ordem dos Advogados, que proibiu a sua divulgação, o texto do recurso interposto pelo Advogado de José Sócrates. Do pouco que veio a público, ficamos a saber que a única acusação concreta – e que configuraria tráfico de influência – feita a Sócrates, é a de ter telefonado de Paris, fora do governo há um ano, a Manuel Vicente, Primeiro Ministro de Angola, a pedir-lhe que recebesse os responsáveis da empresa Lena, a quem deveria «várias amabilidades». Se é tudo, vou ali e já venho…
Lamento dizê-lo, mas para quem prende um ex-primeiro ministro, ou há de facto coisas sólidas que sustentem uma acusação, ou então há outras motivações. É assim! Prender alguém com base em meras suspeitas, é ilegal e inconstitucional. A Constituição exige como pressuposto da prisão preventiva a existência de fortes indícios da prática do crime (art.º 27º, 3, b), mas também exige que 0 juiz dê a conhecer ao acusado as causas que a determinam (art.º 28º, 1).
Ora, a ser verdade que não há fortes indícios, e não os pode haver ocultos, todo este processo está inquinado da mais grosseira e baixa ilegalidade. A ser verdade.
Por esta razão, seria da maior utilidade que os documentos processuais fossem tornados públicos, como José Sócrates pretende. Seria muito mais claro e limpo.
A manter-se esta situação, com o homem preso e a acusação na gaveta, corremos o risco sério de ter a maior desilusão que é possível com este caso. E aí, de facto, Carlos Alexandre que se cuide, porque ninguém deixará de o culpar a ele por esse fiasco da Justiça, e de questionar as causas de tudo isto.
Agora uma coisa é verdade: tudo isto me recorda dois casos do passado recente que motivaram um artigo meu, que por nunca ter sido publicado, aqui “posto”

«O colapso do Estado de Direito
Num dia muito quente do inicio de verão de 2003, ia eu a meio da manhã, já passado Amarante a caminho de Mirandela para  celebrar com o Presidente da Câmara local um protocolo quanto à instalação do Tribunal Administrativo e Fiscal, entretido na leitura dos jornais, quando tocou o telemóvel: era o meu chefe de Gabinete.
Perguntava-me se tinha ouvido as noticias na rádio. Não tinha, estava a ler os jornais; então que ouvisse, o Paulo Pedroso tinha acabado de ser preso, no âmbito do processo da «Casa Pia».
Arredada ficava a possibilidade de ver nessa noite o Porto jogar contra o Celtic em Sevilha a final da taça UEFA.
Dizer que fiquei de boca aberta ou especado de espanto, é pouco. O Dr. Paulo Pedroso tinha sido Secretário de Estado e pouco mais de um ano antes era Ministro da Segurança Social. Nesse momento era Deputado e porta-voz do Partido Socialista. Dizia-se que era o nº 2 de Ferro Rodrigues. Preso? Nem era um caso de «sic transit gloria mundi». Era um caso de queda a pique, tão trágica e chocante que não havia palavras para explicar.
Nos dias seguintes a imprensa não falava de outra coisa. No Público, Augusto Santos Silva insinuava uma cabala, uma maquinação contra o PS, e se havia maquinação contra o PS que envolvesse a polícia judiciária e o sistema de investigação penal, o Ministério da Justiça estava na berlinda, claro.
Ninguém de entre os responsáveis do Ministério revelou saber mais do que as noticias saídas nos jornais e nas televisões: a prisão em directo, a invasão da Assembleia da República com as câmaras de televisão atrás, acusações vagas...
Senti um calafrio: que diabo, pode-se ser preso com base «nisso»? em directo? Na TV? Um deputado da República? Desde esse momento mantenho uma opinião: se a acusação contra Paulo Pedroso se viesse a revelar insubsistente, estávamos a assistir ao colapso do Estado de Direito.
Muitos meses depois Paulo Pedroso seria libertado após o Tribunal Constitucional ter declarado que o processo não se tinha revestido do mínimo de garantias de direitos e liberdades, e nem chegou a ser acusado porque a Relação de Lisboa revogou o despacho de acusação por entender que não continha o mínimo de indícios que permitissem formular uma acusação.
Para mim já não foi surpresa: sabia há meses que aquela acusação não podia dar em nada porque a prova era exclusivamente testemunhal e as testemunhas não pareciam ser fiáveis.
Surpresa foi não ter acontecido nada: nem aos investigadores do Ministério Público que com ligeireza deduziram uma acusação insubsistente, nem ao Mmº Juiz de Instrução, o célebre «justiceiro» da T-shirt, que depois de ter escaqueirado o crédito da Justiça Portuguesa foi à vida dele.
A Justiça interiorizou mais um fiasco, absorveu-o e esqueceu-o. Portugal ficou mais, mas muito mais pobre.
Em Maio de 2007 uma menina inglesa desapareceu no Algarve. Meses depois, os órgãos de investigação criminal chegavam à conclusão habitual: a culpa era de certeza dos Pais. Provas? Indícios? Motivos? Para quê, se há a imprensa? Os Pais foram constituídos arguidos.
Um ano depois o processo foi arquivado, por absoluta falta de provas, pistas ou indícios. Entretanto os Pais da menina ficaram amarrados ao pelourinho da opinião pública habituada e sedenta do sangue de crapulosos culpados que o «sistema» lhe serve, já confessados e até arrependidos do que possam ter feito, sobretudo depois de uma boa tareia pedagógica...
Mais uma vez, a Justiça interiorizou o fiasco e nada aconteceu.
São casos conhecidos que nos podem dar uma noção dos casos desconhecidos que todos os dias acontecem.
Num sistema onde o erro grosseiro, o abuso dos direitos liberdades e garantias, a ofensa da rectidão processual não têm consequências, não há qualquer estímulo para melhorar o que está visivelmente estragado, conduzindo a um sistema de investigação desleixado, permeável à influência política, corporativo, irresponsável, inamovível, incapaz de se regenerar e pior do que tudo, convencido da sua infalibilidade. Já nem os Papas...
É este o Estado de direito que queremos?»


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