Cada vez
estou mais preocupado com o caso Sócrates.
Muito
simplesmente, o ex-primeiro ministro está preso há mais de dois meses, não há
nenhuma acusação, as noticias que vêm na imprensa falam de uma vida privada financeiramente
desregrada, mas não indiciam qualquer crime (pedir dinheiro emprestado, ou
obter doações da Mãe, até ver não é crime), sabe-se que o «caso» estaria a ser
investigado há ano e meio e ainda assim, o Ministério Público não parece ter
nada de sustentado nas mãos; só suspeitas.
Não conheço,
por culpa da Ordem dos Advogados, que proibiu a sua divulgação, o texto do
recurso interposto pelo Advogado de José Sócrates. Do pouco que veio a público,
ficamos a saber que a única acusação concreta – e que configuraria tráfico de
influência – feita a Sócrates, é a de ter telefonado de Paris, fora do governo
há um ano, a Manuel Vicente, Primeiro Ministro de Angola, a pedir-lhe que
recebesse os responsáveis da empresa Lena, a quem deveria «várias
amabilidades». Se é tudo, vou ali e já venho…
Lamento
dizê-lo, mas para quem prende um ex-primeiro ministro, ou há de facto coisas sólidas
que sustentem uma acusação, ou então há outras motivações. É assim! Prender alguém
com base em meras suspeitas, é ilegal e inconstitucional. A Constituição exige
como pressuposto da prisão preventiva a existência de fortes indícios da
prática do crime (art.º 27º, 3, b), mas também exige que 0 juiz dê a conhecer
ao acusado as causas que a determinam (art.º 28º, 1).
Ora, a ser
verdade que não há fortes indícios, e não os pode haver ocultos, todo este
processo está inquinado da mais grosseira e baixa ilegalidade. A ser verdade.
Por esta
razão, seria da maior utilidade que os documentos processuais fossem tornados
públicos, como José Sócrates pretende. Seria muito mais claro e limpo.
A manter-se
esta situação, com o homem preso e a acusação na gaveta, corremos o risco sério
de ter a maior desilusão que é possível com este caso. E aí, de facto, Carlos
Alexandre que se cuide, porque ninguém deixará de o culpar a ele por esse
fiasco da Justiça, e de questionar as causas de tudo isto.
Agora uma
coisa é verdade: tudo isto me recorda dois casos do passado recente que
motivaram um artigo meu, que por nunca ter sido publicado, aqui “posto”
«O colapso do
Estado de Direito
Num dia muito
quente do inicio de verão de 2003, ia eu a meio da manhã, já passado Amarante a
caminho de Mirandela para celebrar com o
Presidente da Câmara local um protocolo quanto à instalação do Tribunal
Administrativo e Fiscal, entretido na leitura dos jornais, quando tocou o
telemóvel: era o meu chefe de Gabinete.
Perguntava-me
se tinha ouvido as noticias na rádio. Não tinha, estava a ler os jornais; então
que ouvisse, o Paulo Pedroso tinha acabado de ser preso, no âmbito do processo
da «Casa Pia».
Arredada
ficava a possibilidade de ver nessa noite o Porto jogar contra o Celtic em
Sevilha a final da taça UEFA.
Dizer que
fiquei de boca aberta ou especado de espanto, é pouco. O Dr. Paulo Pedroso
tinha sido Secretário de Estado e pouco mais de um ano antes era Ministro da
Segurança Social. Nesse momento era Deputado e porta-voz do Partido Socialista.
Dizia-se que era o nº 2 de Ferro Rodrigues. Preso? Nem era um caso de «sic
transit gloria mundi». Era um caso de queda a pique, tão trágica e chocante que
não havia palavras para explicar.
Nos dias
seguintes a imprensa não falava de outra coisa. No Público, Augusto Santos
Silva insinuava uma cabala, uma maquinação contra o PS, e se havia maquinação
contra o PS que envolvesse a polícia judiciária e o sistema de investigação
penal, o Ministério da Justiça estava na berlinda, claro.
Ninguém de
entre os responsáveis do Ministério revelou saber mais do que as noticias
saídas nos jornais e nas televisões: a prisão em directo, a invasão da
Assembleia da República com as câmaras de televisão atrás, acusações vagas...
Senti um calafrio:
que diabo, pode-se ser preso com base «nisso»? em directo? Na TV? Um deputado
da República? Desde esse momento mantenho uma opinião: se a acusação contra Paulo
Pedroso se viesse a revelar insubsistente, estávamos a assistir ao colapso do
Estado de Direito.
Muitos meses
depois Paulo Pedroso seria libertado após o Tribunal Constitucional ter
declarado que o processo não se tinha revestido do mínimo de garantias de
direitos e liberdades, e nem chegou a ser acusado porque a Relação de Lisboa revogou
o despacho de acusação por entender que não continha o mínimo de indícios que
permitissem formular uma acusação.
Para mim já
não foi surpresa: sabia há meses que aquela acusação não podia dar em nada
porque a prova era exclusivamente testemunhal e as testemunhas não pareciam ser
fiáveis.
Surpresa foi
não ter acontecido nada: nem aos investigadores do Ministério Público que com
ligeireza deduziram uma acusação insubsistente, nem ao Mmº Juiz de Instrução, o
célebre «justiceiro» da T-shirt, que depois de ter escaqueirado o crédito da
Justiça Portuguesa foi à vida dele.
A Justiça
interiorizou mais um fiasco, absorveu-o e esqueceu-o. Portugal ficou mais, mas
muito mais pobre.
Em Maio de
2007 uma menina inglesa desapareceu no Algarve. Meses depois, os órgãos de
investigação criminal chegavam à conclusão habitual: a culpa era de certeza dos
Pais. Provas? Indícios? Motivos? Para quê, se há a imprensa? Os Pais foram
constituídos arguidos.
Um ano depois
o processo foi arquivado, por absoluta falta de provas, pistas ou indícios.
Entretanto os Pais da menina ficaram amarrados ao pelourinho da opinião pública
habituada e sedenta do sangue de crapulosos culpados que o «sistema» lhe serve,
já confessados e até arrependidos do que possam ter feito, sobretudo depois de
uma boa tareia pedagógica...
Mais uma vez,
a Justiça interiorizou o fiasco e nada aconteceu.
São casos
conhecidos que nos podem dar uma noção dos casos desconhecidos que todos os
dias acontecem.
Num sistema
onde o erro grosseiro, o abuso dos direitos liberdades e garantias, a ofensa da
rectidão processual não têm consequências, não há qualquer estímulo para
melhorar o que está visivelmente estragado, conduzindo a um sistema de
investigação desleixado, permeável à influência política, corporativo, irresponsável,
inamovível, incapaz de se regenerar e pior do que tudo, convencido da sua
infalibilidade. Já nem os Papas...
É este o
Estado de direito que queremos?»
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