sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Quando o velho Juncker avaria



Na casa dos meus avós em Odemira, onde ia de férias em criança, havia um majestoso esquentador Juncker que era o orgulho do meu avô. As casas de banho equipadas eram um bem raro nesses anos '50 e água quente corrente um privilégio no Alentejo litoral de então, antes da construção da barragem de Santa Clara. 

Uma maravilha da técnica! O problema era ou quando cortavam a água (o que era frequente), ou se o esquentador avariava (o que era raro, mas muito sério). Ficávamos a banho de água fria!... A avaria do velho Juncker era pior do que o corte de água: se era a água que faltava, logo voltava mais tarde no dia; se, porém, fosse avaria, chegávamos a ter de esperar vários dias até que o técnico desse com a falha ou viesse a peça de Lisboa. Um caso sério! E banho de água fria, dias seguidos.

Juncker ist ganz kaputt!

Agora, foi o que aconteceu com um outro Juncker, este, Jean Claude de sua graça, ex-presidente do eurogrupo, agora presidente da Comissão Europeia. O Juncker avariou... e pôs-nos a água fria.

Jean Claude Juncker fez as manchetes do dia, ao afirmar, em Bruxelas, perante o Comité Económico e Social, referindo-se à troika: «Pecámos contra a dignidade dos cidadãos na Grécia, Portugal e muitas vezes na Irlanda também.» [ver Diário Económico], com o que logo incendiou o debate público.

Bem vistas as coisas, estas declarações não têm nada de novo, nem de extraordinário, quer no que são crítica e denúncia, quer no que são patetice e inconsequência. Podem considerar-se mesmo uma banalidade, embora fora de tempo e de propósito.

Enquanto crítica e denúncia, foram várias vezes ouvidas em avaliações ou comentários de altos responsáveis ao longo destes anos, neste ou em outros tons semelhantes, igualmente incisivos. Por isso mesmo, aliás, o modelo da troika acabou. A troika foi um expediente de intervenção de emergência no início da crise das dívidas soberanas, a que houve de recorrer-se na falta de mecanismos próprios europeus, exclusivos das instituições europeias e inscritos nos seus tratados. Ora, agora, estes mecanismos já existem, estão a ser melhorados e afinados e não haverá mais troikas.

Enquanto patetice e inconsequência, também o inoportuno desabafo de Juncker nada traz de novo. Na verdade, não foram uma, nem duas, nem três as vezes que, ao longo das intervenções da troika, se ouviram reparos críticos de altos responsáveis (Lagarde, altos quadros, um ou outro comissário, economistas reputados, etc.), chegando mesmo, pasme-se!, a apontar "erros nas contas" - e, depois na prática... nada acontecia e tudo continuava na mesma. O único efeito desses comentários laterais era gerar perplexidade, criar confusão nas opiniões públicas e fragilizar as condições políticas de implementação dos programas que eram executados. Às vezes, pior era impossível...

O presidente da Comissão Europeia fez agora isto mesmo: pior era impossível!

Jean Claude Juncker só teve um lampejo de lucidez e momento de cândida franqueza ao confessar que as declarações podiam parecer estúpidas, uma vez que tinha sido o presidente do eurogrupo, precisamente no início das troika. Contam ipsis verbis as agências, citadas pelo Diário Económico: a «afirmação pode parecer estúpida dita pelo ex-presidente do Eurogrupo.» De facto, assim é. Não parece "estúpida". É. 

O que leva, na verdade, um Presidente da Comissão Europeia a dizer, com este estrondo, coisas que não são novas? O que o leva a dizê-las nesta precisa altura, num pico crítico de relacionamento entre o novo governo grego e as instituições europeias?

Schäuble deve ter comentado: «Juncker ist ganz kaputt!» [Juncker está completamente avariado.]

E, na verdade, pelas reacções e contra-reacções que logo desencadearam, das duas, uma: ou as declarações de Juncker não têm efeito, ou poderão ser contraproducentes, gerando, pela retórica, novos bloqueios onde os nós já estavam a desatar-se.

Se fosse para levar a sério, a condenação da troika feita por Juncker é tão "vigorosa" que deveria demitir-se já de Presidente da Comissão Europeia e exigir a demissão também de Lagarde e de Draghi, os líderes das três instituições que tanto "pecaram" e nos "ofenderam", o que certamente reforçaria a estabilidade da zona euro, a credibilidade da UE e a confiança dos cidadãos...

Podemos ter a chefes das instituições quem assim se entreteve a ofender «a dignidade dos gregos, portugueses e irlndeses»? No mínimo, no mínimo, têm que vir os três, de baraço ao pescoço, quais Egas Moniz contemporâneos, oferecer-se ao açoitamento popular na Praça Syntagma, no Terreiro do Paço e junto ao Trinity College. 

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