quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O infiel defunto


Tenho de voltar, hoje, ao tema dos feriados.

Celebra-se, pela última vez, em Portugal, o feriado do 1 de Novembro, Dia de Todos os Santos. É um dia de fortíssima tradição, não só no calendário católico, mas também nas tradições populares, em que é amalgamado com o Dia dos Fiéis Defuntos ou Dia de Finados (2 de Novembro). Este é, por isso, em Portugal como noutros lugares da Europa e do mundo, o dia em que milhões de pessoas recordam os seus mortos (pais, filhos, cônjuges, avós, netos, irmãos, amigos chegados), visitando cemitérios e celebrando o seu luto e a sua memória, a pertença, o tronco e ancestralidade de cada um: às vezes, a dor, uma dor tremenda, outras apenas a lembrança, a saudade, a ligação. Um dia particularmente sagrado, portanto. E, a seguir ao Natal e às solenidades da Paixão e da Páscoa, aquele dos dias do calendário católico que os povos mais seguem e observam, independentemente da prática religiosa.

Todavia, na voragem da revisão do Código do Trabalho e na vertigem surda e febril de "legislar à paulada", este dia também foi um dos quatro feriados que foi sumariamente morto e enterrado sem sério diálogo social ou político de qualquer espécie. Lamentavelmente, no segredo escondido dos corredores diplomáticos, a Igreja e o Vaticano também escolheram colaborar com o Governo neste acto deplorável.

Por isso, indigna-me particularmente ver como a mentira da "suspensão" dos feriados continua a ser repetida, ludibriando a opinião pública. 

Foi dito que estes feriados (os dois religiosos: Corpo de Deus e Todos os Santos) teriam sido apenas suspensos por cinco anos e que, para 2018, tudo seria reavaliado. E foi também insinuado que o mesmo se passaria com os dois feriados civis alvejados (5 de Outubro e 1º de Dezembro). 

É tudo mentira! Os feriados foram eliminados, ponto final. 

E indigna-me, como cidadão e como católico, que, além do disparate político e da violência legislativa do Governo e da maioria, a Igreja e o Vaticano também colaborem, por acção e omissão, nesta fraude, neste logro e nesta mentira que tem sido repetidamente vendida aos portugueses, para amolecer o seu inconformismo e resistência.

A mentira abriu, hoje de manhã, de novo, as notícias do dia, com fonte num despacho da LUSA:
«O Dia de Todos os Santos, assinalado com romaria aos cemitérios, celebra-se nesta quinta-feira como feriado, pela última vez, até 2018, altura em que o Governo avaliará se mantém a suspensão.»
Ora, não houve suspensão nenhuma, mas eliminação pura e simples do dia feriado, como repetidamente tenho esclarecido e chamado a atenção.

O artigo 10º, nº 1 da Lei nº 23/2012, de 25 de Junho, não podia, infelizmente, ser mais claro: 
«Artigo 10.º - Produção de efeitos
1 - A eliminação dos feriados de Corpo de Deus, de 5 de Outubro, de 1 de Novembro e de 1 de Dezembro, resultante da alteração efectuada pela presente lei ao n.º 1 do artigo 234.º do Código do Trabalho, produz efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2013.»
Foi por isso mesmo, aliás, que votei contra esta lei, explicando-o detalhadamente em duas explicações de voto e em correspondência que, sem sucesso, dirigi à Presidente da Assembleia da República. 

É facto que é invocado um famigerado "acordo" celebrado, à última hora, entre o Governo e o Vaticano, abrindo as portas à dita "suspensão". Mas não só esse tal acordo nunca foi publicado - e era indispensável que o fosse, a fim de produzir efeitos legais -, como o seu teor não é sequer conhecido. Já o pedi várias vezes, mas o Governo esconde-o e... o Vaticano também. Lamentável!

Em qualquer caso, a lei podia ter declarado a mera suspensão, se o quisesse. E podia ter estipulado a obrigação legal de tudo reavaliar dentro de cinco anos. Mas a lei não o quis e não o fez, porque o Governo o não quis e porque a maioria parlamentar e o Vaticano anuíram, docilmente, ao facto da inexorável eliminação dos quatro feriados, sem excepção, sem ressalva, sem distinção, sem a menor reserva.

Tenho sustentado, por isso, que a lei é inconstitucional nesta parte e viola o direito internacional aplicável: por um lado, porque viola norma expressa da Concordata de 2003, que não foi alterada por qualquer outra disposição escrita, válida, conhecida e publicada; por outro lado, porque, a haver o tal acordo de suspensão, a lei aprovada contraria e viola frontalmente, absolutamente sem rebuço e sem vergonha, esse dito "acordo" na própria hora de o ter assinado. Mas, quanto a isto, nem a Presidente da Assembleia da República se importou ou a Assembleia da República se impôs, nem o Presidente da República quis saber... Quanto ao Tribunal Constitucional, se vier a apreciar a questão, também não sei. Há coisas em que, em Portugal, parece reinarem os três macacos: não vemos, não ouvimos, não falamos.

Como se sabe, luto pela restauração do feriado do 1º de Dezembro. E creio que o mesmo deverá acontecer, imperativamente, com este 1 de Novembro, Dia de Todos os Santos. Idem quanto ao 5 de Outubro, noutro plano. Acredito que isso irá acontecer e que acabaremos por ganhar. Mas isso só acontecerá porque os portugueses, inconformados, lutarão pelas datas que nos são queridas e pela sua guarda no calendário oficial português. Se não, passam a dias defuntos, como o Govermo, a maioria e o Vaticano os entregaram. 

Em 2018, esses feriados poderão estar, de facto, de volta. Mas porque terá mudado o ciclo político e a vontade dos portugueses o imporá. A lei, para já, abandonou-nos.

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