terça-feira, 23 de julho de 2013

Pai e mãe e a “co-adopção” homossexual

Ainda no âmbito do debate aberto pelo projecto de lei n.º 278/XII, da autoria de deputados do PS, querendo consagrar a chamada "co-adopção homossexual", escrevi este artigo para o jornal PÚBLICO e a cujo recorte pode aceder também aqui.



Pai e mãe e a “co-adopção” homossexual
                   - por José Ribeiro e Castro

Houve quem falasse inapropriadamente de “totalitarismo” a respeito das críticas à “co-adopção” homossexual. Mas já que se falou nisso, convém ter presente que a convicção de que todo o poder está na ponta da caneta do legislador é, essa sim, em si mesma, uma convicção de matriz totalitária. 
A ideia de que o Estado pode criar a realidade através do poder da lei é um delírio perigoso, que nos coloca no cimo da rampa de todas as derivas totalitárias. O Direito é fonte de justiça quando limitado pela Humanidade ou subordinado ao Direito Natural, mas fonte de abusos e violências quando se arvora ilimitada omnipotência. As maiores violências começaram sempre, aliás, na própria lei e seu abuso: a pena de morte, a prisão perpétua, a escravatura, tortura, perseguição, expulsões arbitrárias. 
As leis de Direito Privado são leis matricialmente narrativas: não conformam a natureza, conformam-se a ela. Não foi sequer um legislador qualquer que inventou os contratos, quanto mais o resto. Os contratos existem, são como são; a lei regula-os. Num Estado de Direito, as leis privadas não criam a realidade, aderem a ela. Regulam, ordenam, mas não criam, nem inventam, muito menos contra a realidade. Se o fizessem, atropelariam a realidade; e seriam de deriva totalitária. 

Se todos nascemos de pai e de mãe, é violência extrema privar alguém do direito a ter pai ou do direito a ter mãe. A dupla referência masculina e feminina que é parte da nossa natureza integra a nossa própria identidade pessoal. É o que somos, é o nosso ser. 
Por isso mesmo, a generalidade das declarações de direitos humanos e das Constituições modernas (como a portuguesa) inclui o direito à identidade pessoal no elenco dos direitos fundamentais da pessoa humana – sem isso, não somos. E esse direito à identidade é componente principal da dignidade da pessoa humana. 
É desse direito fundamental à identidade pessoal que decorre, por exemplo, o dever de o Estado apoiar e promover a investigação da paternidade ou maternidade nos filhos do incógnito. E é desse direito à identidade pessoal que decorre também a noção de adopção do nosso Código Civil (art.º 1598º) como «o vínculo que [se estabelece legalmente entre duas pessoas] à semelhança da filiação natural, mas independentemente dos laços do sangue.»

O projecto da co-adopção homossexual é uma fraude intelectual e uma manipulação jurídica. É uma esperteza: não-saloia, mas sofisticada. Nem tanto sequer pelo que já foi dito – ser a gazua que abre a porta à adopção homossexual em geral – mas pelo resto. 
A adopção tem um lado generoso, que é atribuir pai e/ou mãe; mas outro violento, que é tirar pai e/ou mãe. É isso que faz da adopção um instituto tão difícil e tão delicado; e da sua decisão um processo sério, melindroso e complexo. 
Quando atribuímos juridicamente uma criança a um pai e/ou uma mãe, estamos a retirá-la definitivamente, de forma irrevogável, a outro pai e/ou outra mãe naturais – a estes e, simultaneamente, a retirá-los também da sua família respectiva, de pertença natural: irmãos, primos, tios, avós que fossem. A geração natural é apagada e substituída, para todos os efeitos, pela filiação jurídica. A genealogia dessa criança é reescrita por inteiro. Para sempre. 
Só é possível diminuir levianamente a seriedade e delicadeza real ou potencial dos problemas a considerar, se imaginarmos as crianças de que se trate como res nullius, coisa de nada e de ninguém. Mas nenhuma criança, mesmo a mais só e abandonada, é assim tão nullius: tem uma história e uma realidade. Que lhe pertence e a que pertence.

Adoptar a co-adopção é consagrar que, pela potente força imperial da lei, uma criança pode passar a ser “filha” de pai e pai, sem mãe; ou “filha” de mãe e mãe, sem pai – e, ipso facto, negar-lhe em definitivo o direito a ter uma mãe ou o direito a ter um pai, proibindo-o para todo o sempre. 
Não se trata de saber quem cuida de quem, mas de alterar radicalmente a genealogia de uma pessoa, truncando para sempre a sua identidade pessoal. Escusa de buscar, mais tarde, mãe ou família materna, se a não conhecia; ou de procurar pai ou família paterna, que não soubera – essas relações ter-lhe-iam sido apagadas e proibidas para todo o sempre pelo “Direito”. Essa criança teria passado a ter, sem apelo, nem agravo, duas mães e duas famílias maternas e nenhuma paterna, ou dois pais e duas famílias paternas e nenhuma materna. 
Mesmo o projecto de co-adopção do PS reconhece – e bem – que aquilo que designa de “parentalidade” é dual, isto é, que somos filhos de dois. Está certo. 
Mas quem é que disse que são dois? Quem foi esse ominoso criador que determinou que sejam dois, e não quatro, ou cinco, ou ? Garanto que não fui eu. E, não tendo sido eu, essa dualidade parental também não resultou da autoridade da caneta da Dr.ª Isabel Moreira, ou da pena entusiástica do Dr. Pedro Delgado Alves ou do arrobo igualitário da escrita da Dr.ª Elza Pais. Isso resulta de modo inteiramente prosaico da natureza, da biologia, vá lá… do Criador. 
A realidade é, de facto, a da dualidade parental; não uma parentalidade qualquer ou indiferente, mas uma dualidade de maternidade e paternidade. Somos filhos de dois, mas não de quaisquer dois – somos filhos de dois, porque somos filhos de mãe e de pai. Será isto homofobia? Não. É a biologia, a natureza. A natureza, não das coisas, mas a natureza das pessoas.
in PÚBLICO, de 23-jul-2013


[NOTA: com votação final global marcada para 24 de Julho, a 1ª Comissão Parlamentar votou, no dia 23 de Julho, o adiamento da matéria para o início da 3ª sessão legislativa em Setembro.]

3 comentários:

Unknown disse...

O pior é que os hoosexuais são metidos nesta palhaçada sem apelo e sem agravo. Tal como no aborto não são as mulheres. Mas grupos com orientação politica que toma para si neo-novos-movimentos-sociais. Quem são esses rosto? Salta à vista é a directiva a nível europeu, ocidental e por vezes mesmo mundial isso sim. Salta à vista que isto aparece por todo o mundo quase ao mesmo tempo e consegue passar nos parlamentos, de forma muito estranha... Maçonaria? Só este grupo de oranizações em rede teria o poder transversal de espectros políticos e transfronteiriços... Ou o G8/G20 é bem mais deliberativo do que todos julgamos

Anónimo disse...

Em relação ao proprio texto em si e não ao comentário- mas se este direito fundamental a um pai e a uma mãe é tão absoluto, então não derivaria daí que caso um parente morresse e se a criança tivesse uma idade precoce então seria necessário que o Estado designasse uma "mãe" ou um "pai" a essa criança, criando uma relação de parentesco forçada? Parece-me que isso também seria uma imposição "totalitária" da lei. Poder-me-á afirmar que importa que exista uma relação de sangue entre o parente e a criança, afastando esta possibilidade, mas então concluiríamos que não seria possível um casal heterosexual estável adoptar uma criança devido à inexistência desse mesmo laço de sangue. E como é óbvio em nenhum caso seria possível a um solteiro adoptar, mesmo que fosse heterosexual. Gostava que me respondesse a esta questão, até porque é o primeiro referendo que vou poder votar (fiz 18 à pouco tempo) e estou indeciso.

José Ribeiro e Castro disse...

O facto de o pai ou a mãe morrerem não quer dizer que se os não tenha. Eu já não tenho pais vivos, mas continuam a ser os meus pais e as minhas referências ascendentes.

O mesmo se diga para quem nunca os tenha conhecido, por qualquer razão ou circunstância. O facto de alguém não conhecer pai ou mãe não quer dizer que não tenha a sua representação ideal - ou que não mantenha a esperança de, um dia, os descobrir ou saber quem são ou quem eram.

A filiação não é o mesmo de "cuidar de". Em variadíssimas circunstâncias e quadros pessoais diversos, crianças há e haverá que são criados (transitoriamente ou duradouramente) por avós, tios, irmãos mais velhos, amigos ou vizinhos dos pais, padrinhos, etc. E nenhum destes os adopta ou co-adopta como filhos.

Filiação é descendência. E é também família alargada: isto é, cada um tem uma família paterna e uma família materna, que são definidos com referência ao pai e/ou à mãe.

Além disso, apesar de já terem morrido, são ainda os meus pai e mãe que definem as famílias paterna e materna em que me integro.

Não existe filiação sem uma referência dual de pai/mãe. Uma criança pode só conhecer mãe e não conhecer pai. Ou pode só conhecer pai e não conhecer mãe. Mas não pode ser filho de mãe e mãe (com exclusão de alguma vez vir a conhecer pai) ou filho de pai e pai (com exclusão de alguma vez vir a conhecer mãe).

A adopção é sempre esse apagamento da filiação natural em favor de uma filiação jurídica. Ora, esta filiação jurídica que atribuímos não pode atentar contra a identidade pessoal de cada um, a qual integra ser-se filho de pai e de mãe, descender-se sempre de homem e de mulher.