quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O canto do cisne do socialismo, ou o canto do cisne da União Europeia?


Anda tudo nestes dias preocupado com a «esquerda», depois da rendição ao projecto europeu anunciada por François Hollande.

De repente, a «esquerda» ficou sem bússola, sem road map, como quem diz "o que andamos nós aqui a fazer?".

Nada que não fosse previsível: em 2012, escrevi o artigo que abaixo transcrevo e em que estes dilemas da «esquerda» eram analisados. Sem falsas modéstias, parece-me que acertei na mouche, mesmo sem saber da Dª Gayet...

Aqui vai:
Vai haver eleições presidenciais em França no próximo mês de Abril, 22. Todas as sondagens conhecidas dão a vitória a François Hollande, o candidato socialista. No mundo que nos rodeia há verdadeiramente duas ameaças a temer: uma localizada, o colapso da Espanha, cuja situação é bem pior do que se pensava e que é o nosso principal mercado exportador; a outra, sistémica, a ruptura entre a França e a lógica da zona Euro. Qualquer das duas há-de evoluir independentemente do que possamos fazer, mas uma ou outra podem ser fatais à evolução em Portugal.
Ao contrário do que se possa pensar, os socialistas franceses são mesmo socialistas, no pior sentido da palavra: acreditam nas virtudes do Estado e desconfiam patologicamente da iniciativa privada. Quando em 1981 Mitterand e Giscard fizeram o último debate televisivo antes das eleições desse ano, Mitterand anunciou que se ganhasse procederia à nacionalização da banca, das seguradoras e dos «sommets de l’industrie», ou seja, as grandes empresas industriais, como o grupo Dassault ou a siderurgia. Giscard manifestou o seu profundo espanto com essa posição e apelidou-a de loucura. Mitterand replicou que não era loucura e que tinha sido feito em Portugal em 1975, sem tragédias. Disse e fez: chegado à presidência fez exactamente o que tinha prometido e avançou com as nacionalizações e um reforço absurdo do sector público. A França apesar de duas desvalorizações perdeu competitividade em relação á Alemanha e nunca mais a recuperou. Em 1983-4, Mitterand teria de fazer marcha a trás, mas era tarde de mais: o gap com a Alemanha nunca mais foi tapado.
Entretanto, o desenvolvimento do projecto europeu levou à criação do Euro, no qual nos lançamos decisivamente em 1999. Esse projecto teve desde o início uma evidente fragilidade: a política monetária passou a ser comum, mas não as politicas económica e fiscal. A prazo e perante choques exógenos e assimétricos, cada um dos países da zona euro teriam um evoluir diferente mas uma única politica monetária.
Na verdade, a criação da zona euro foi assente em premissas macro-económicas e fiscais muito claras, regras de ouro, se se quiser: o deficit das contas públicas não poderia exceder 3% do PIB e a divida pública não poderia exceder 60% do PIB; por sua vez a inflação deveria ficar contida numa fasquia estreita não excedendo 1,5% em relação à média dos países da zona.
As crises de 2000-2001 e de 2008 até ao presente encarregaram-se de pôr termo a estes pressupostos e todos os países da zona excederam qualquer um dos dois ratios, alegremente.
O resultado foi que quando em 2008 estourou a crise internacional, os estados da zona euro estavam particularmente mal preparados para fazer face à necessidade de reforçar os amortecedores sociais e o investimento público. Nos mais frágeis assistimos desde então a uma subida permanente e assombrosa dos impostos, a um aumento fulminante da divida pública e a um respeito cada vez menor pela riqueza gerada pelos contribuintes, quer na forma como lhes é colectada, quer na forma como é gasta.
Portugal foi um desses países: gerido pelos socialistas fingiu acreditar que o investimento público, o reforço das prestações sociais e o aumento dos impostos poderiam dar bons resultados ao nível do crescimento económico, esquecendo que o crescimento económico é feito pelos agentes económicos privados e que o Estado só gasta, não cria riqueza.
A realidade triste em que vivemos encarregou-se de desmentir esses pressupostos falsos.
Mas a crise das dividas soberanas que engoliu Portugal, a Grécia, a Irlanda e ameaça a Espanha e a Itália, para citar apenas os mais notórios, tinha como contrapeso a gravitas do centro da Europa e a ideia de que para salvar a zona euro essa Europa aceitaria ser mais redistributiva (assumindo uma parte das dividas excessivas dos “periféricos”) e mais activa (criando os chamados “fire walls”). O eixo Franco-Alemão, mais germânico que francês é certo, parecia constituir no oceano em fúria da crise das dívidas soberanas a amarra sólida do navio europeu.
Alemães e Franceses, é certo, exigiam em troca, maior disciplina financeira e orçamental, maior reforço da coordenação de politicas económicas dos 17 estados da zona, uma melhor governance comum. Houve quem visse nisso o prenúncio do federalismo económico. Em contrapartida - e graças a esse novo ambiente - da maior disciplina comum, o Banco Central Europeu avançou em Março com o maior processo de quantitative easing de que há memória na Europa, ou seja, injectou na economia europeia cerca de 1.000 milhares de milhões de euros, seis a sete PIB’s portugueses.
As ameaças que já existiam mantêm-se, mas a solução para a crise parecia finalmente à vista, se não houvesse males maiores pelo caminho.
Só que agora vêm os socialistas franceses complicar, para não dizer, destruir a equação: aquilo que Hollande propõe é mais um reforço do papel do Estado, por exemplo através da admissão de 60.000 mil novos professores, repor a idade da reforma nos 60 anos, destruindo a reforma de Sarkozi que a impôs aos 62, a tributação dos rendimentos mais elevados à taxa de 75%...
Se for sincero, e parece ser, Hollande, que já ameaçou que em sendo eleito renegociará o tratado sobre os limites orçamentais, prepara-se para relançar a França no caminho de Mitterand, o seu mentor politico, de 1981.
Ora a França não tem equilíbrio orçamental desde 1974, a despesa pública é a mais alta da zona euro, a 56% do PIB, tem uma dívida pública de 90% e apesar disso - ou por causa disso - perde alegremente competitividade económica, tem uma taxa de desemprego endémico elevada (uma média de 7% nos últimos 30 anos) e portanto está já em crise.[1]
A nova prescrição socialista arrisca-se a precipitar essa crise, alienando definitivamente a Alemanha.
Os resultados serão dramáticos para a Europa: isolada no seu crescimento económico e na solidez da sua gestão pública, a Alemanha não lutará mais tempo para manter a zona euro e vai cortar as amarras. As consequências de tudo isso serão trágicas para Portugal que apostou tudo nesta Europa e não saberá tão cedo viver noutra.
Mas, e os socialistas? Se se sentirem inclinados a seguir o exemplo dos seus camaradas franceses, os socialistas europeus poderão dentro em breve gabar-se de terem sido os coveiros do projecto europeu, ou então terão de reconhecer de uma vez por todas que o seu projecto perdeu qualquer razão de ser.
Ou as duas coisas ao mesmo tempo…





[1] The Economist, 2012: the fundamentals are much grimmer. France has not balanced its books since 1974. Public debt stands at 90% of GDP and rising. Public spending, at 56% of GDP, gobbles up a bigger chunk of output than in any other euro-zone country—more even than in Sweden. The banks are undercapitalised. Unemployment is higher than at any time since the late 1990s and has not fallen below 7% in nearly 30 years, creating chronic joblessness in the crime-ridden banlieues that ring France’s big cities. Exports are stagnating while they roar ahead in Germany. France now has the euro zone’s largest current-account deficit in nominal terms.

Sem comentários: