Está claro que esta coisa do referendo sobre a adopção e a co-adopção estendidas às uniões homossexuais não passou de um expediente parlamentar para superar as dificuldades da bancada do PSD. Um expediente que, como está a ver-se, veio criar muitas outras dificuldades (incluindo internas), sem resolver propriamente nenhuma.
No plano do Estado, esta decisão é ainda mais deplorável.
O referendo poderia ter resultado de um movimento em que a sociedade portuguesa pedisse para ser ouvida ou de uma iniciativa política séria em que se explicasse a essencialidade de querer ouvi-la e porquê. Nada disso.
E, todavia, é bem longa a fila de referendos em que a sociedade portuguesa gostaria de ser ouvida directamente e não o foi. Ou em que seria da maior importância e utilidade política e social fazê-lo. São matérias da maior seriedade e importância.
Primeiro, o referendo constitucional. É a ideia mais antiga de todas: remonta a 1980 e foi lançada pela AD - Aliança Democrática. Ficou pelo caminho pelo efeito conjugado do desastre de Camarate e da não eleição presidencial de Soares Carneiro. Hoje, poderia ganhar actualidade pelo impasse em que caiu a revisão constitucional e os choques frequentes entre Governo e Tribunal Constitucional. Para o fazer, haveria ainda que remover obstáculos jurídicos. Porém... nada.
Segundo, o referendo europeu. Nunca foi feito: nem na adesão à CEE, nem aquando do Tratado de Maastricht que tudo mudou e criou a União Europeia. Os movimentos para o fazer esbarraram sempre em grandes resistências de quem manda. Aquando do Tratado de Amesterdão, a consulta chegou a ser aprovada na Assembleia da República, mas tropeçou no Tribunal Constitucional. Mais tarde, foi feita, em 2005, uma revisão constitucional unicamente para permitir a realização de referendos directamente sobre tratados europeus. Mas, chegada a hora, quer quanto à chamada Constituição Europeia (2005/06), quer quanto ao seu sucedâneo Tratado de Lisboa (2007/08), os líderes e direcções políticas assobiaram para o lado... e nada se fez. Uma vez mais, o povo ficou à porta. A falta desse referendo está entre os factores que mais contribuem para o desconhecimento e alheamento geral dos portugueses e do país quanto à Europa - o mal que chamo de a nossa "periferia mental". A actual crise geral europeia recomendaria até que o fizéssemos para saber para onde vamos e queremos ir. Nada disso. É assunto tabu e continua matéria proibida.
Terceiro, um referendo sobre a estrutura territorial da Administração. Tivemos um referendo sobre a Regionalização, que, em 1998, deu com os "burrinhos na água". E há quase quarenta anos que temos este vazio - ou mesmo um caos - no patamar intermédio da nossa Administração Pública, tanto desconcentrada, como autárquica: por um lado, na Constituição de 1976, temos distritos extintos que continuaram a existir; e, por outro, Regiões constituídas que nunca foram criadas. Ao mesmo tempo, desenvolvemos as CCR ou CCDR e as NUT II e NUT III, a par das CIM e outras coisa que houve, no entretanto. As Áreas Metropolitanas também andam por aí, à espera de melhor clima para respirarem e medrarem como é indispensável. E, agora, abate-se uma pressão fortíssima, dita financeira, sobre as freguesias e até já sobre os municípios, ouvindo-se mesmo vozes que tudo querem definir a regra e esquadro ou pela simples aritmética, reduzindo-os pela metade!... Impõe-se parar para pensar. E, sendo necessário, convocar um referendo para sancionar grandes orientações ou as principais linhas de reforma, preservando a matriz municipalista do país. Mas, aí, também não.
Quarto, um referendo sobre a estrutura da família. Quando avançou a legalização dos casamentos homossexuais, houve um forte impulso da sociedade portuguesa exigindo ser ouvida previamente. Uma iniciativa popular de referendo recolheu cerca de 100 mil assinaturas e deu entrada na Assembleia da República, que veio a bater com a porta na cara do povo. O Parlamento inviabilizou o referendo e pôs o povo na rua. Ora, a agenda que agora se discute é uma decorrência disso mesmo; o que está em causa é a questão e o problema da relevância, sim ou não, das uniões homossexuais para a estrutura e o direito da família. Poderia (e deveria) organizar-se uma consulta popular séria para auscultar a consciência social sobre a matéria e definir caminhos e limites legislativos. Nada disso também.
Todos esses referendos - queridos e porventura necessários, para nos esclarecer e andar - continuam a ficar à porta, ou no tinteiro, senão no caixote do lixo. E, em vez disso, avança um referendinho de ocasião, trôpego e oportunista, sobre a parte menor de uma agenda mais ampla, apenas porque o PSD não quer dizer-nos o que pensa sobre a co-adopção.
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