sábado, 21 de janeiro de 2012

O projecto que nunca existiu

[NOTA: este post enferma de um erro de informação e de pressupostos errados. Não está actualizado. Leia os comentários por favor. JRC - correcção às 20:42 de 22-jan-2012] 


Entre as várias manobras que rodearam o processo legislativo sobre a revisão da lei da Procriação Medicamente Assistida (PMA), uma há que merece ser aprofundada. Tratou-se de um truque quanto ao Projecto de Lei nº 137/XII/1ª, da autoria de alguns deputados do PS, encabeçados por Pedro Delgado Alves e Isabel Moreira - o texto conhecido como "projecto da JS", para o distinguir do projecto oficial do PS.

Mesmo em cima da votação, a Presidente da Assembleia da República anunciou que iria votar-se o projecto, mas, segundo tinha sido informada, amputado de uma sua parte. Deu a palavra ao primeiro subscritor para esclarecer e confirmar. E o deputado Pedro Delgado Alves informou o plenário de que, efectivamente, os autores retiravam do projecto a parte relativa à maternidade de substituição. [Será importante, logo que possível, ler as palavras exactas proferidas na altura. E obter outros pormenores processuais.]

Espantoso! Absolutamente espantoso. Não me lembro de ter assistido - e menos ainda, participado - em coisa assim. O facto é que, talvez surpreendidos pelo insólito da situação, ninguém reagiu. E a presidente pôs à votação o projecto, que seria reprovado, nos termos que a Lusa/EXPRESSO relata:
Já no que respeita ao projeto da JS, tendo como primeiro subscritor o deputado Pedro Alves - e que, tal como o do Bloco de Esquerda, visava alargar o universo dos beneficiários de técnicas de PMA -, a rejeição aconteceu por menor margem em termos de números e a votação até teve a originalidade de colocar ao lado de bloquistas e da generalidade da bancada do PS o deputado do CDS João Rebelo.
O projeto da JS foi rejeitado pela direção da bancada do PS, por todos os deputados do PCP e pela maioria dos deputados do PSD e do CDS. 
Este diploma contou com o apoio de todos os deputados do Bloco de Esquerda e do Partido Ecologista "Os Verdes", de 37 deputados do PS, para além do democrata-cristão João Rebelo.
O projeto da JS mereceu a abstenção de oito deputados do PSD (Teresa Leal Coelho, Emídio Guerreiro, Paula Cardoso, Joana Barata Lopes, Leitão Amaro, Sérgio Azevedo, Mónica Ferro e Cristóvão Norte), de três do CDS (João Viegas, Mesquita Nunes e Michael Seufert) e de 17 do PS (Laurentino Dias, Miguel Freitas, Vieira da Silva, Fernando Medina, Pedro Marques, Pedro Farmhouse, José Lello, Alberto Martins, Vitalino Canas, Filipe Neto Brandão, Hortense Martins, Acácio Pinto, Eurídice Pereira, Sónia Fertuzinhos, Luís Salgueiro, António Serrano e Jorge Fão).
A questão, porém, é outra. Esta votação foi válida? Ou a votação tem que ser considerada nula, senão mesmo inexistente?

Não se sabe sequer se o requerimento para "modificação" do projecto de lei em cima da votação foi escrito ou meramente oral, nem quais os respectivos termos e fundamentação. Mas a Assembleia da República não podia votar um texto diferente daquele que dera entrada, bem diverso do que estivera em discussão na véspera e cujo teor final não foi distribuído, nem estava na posse de ninguém no momento de votar. 

O artigo 122º do Regimento prevê o cancelamento de uma iniciativa, isto é, que, até ao momento da votação da generalidade, os autores podem retirar um projecto. Mas não prevê - nem, digo eu, poderia prever - este tipo de improvisação, este tipo de manobra em cima do joelho. Ou seja, deverá entender-se que o projecto foi retirado pelos autores - o que podiam fazer. Mas não pode entender-se que, totalmente fora de prazo e com grave atropelo processual, foi apresentado outro com teor diferente, o que o Regimento não consente naquele tempo e naqueles termos. E, se assim for, a votação feita sobre um projecto que nunca existiu deve ser declarada nula ou, mais que isso, considerada inexistente.

Os experientes e qualificados juristas Pedro Delgado Alves e Isabel Moreira deverão ser, aliás, os primeiros a reconhecê-lo espontaneamente. Se não, que dirão os seus alunos?

Pode o Parlamento em Portugal votar improvisos? Não pode! "Penso eu de que...".

3 comentários:

José Ribeiro e Castro disse...

Tenho que corrigir esta informação.
Estive em contacto com a Mesa da Assembleia da República e concluo que eu é que não estava a par do que se tinha passado.
Sou informado de que, ainda na 5.ª feira, dia do debate na generalidade e véspera das votações, os autores deram entrada de um texto de substituição do projecto de lei, expurgado da parte relativa à maternidade de substituição.
Esse texto, segundo me asseguram, foi logo colocado na intranet e distribuído às direcções dos grupos parlamentares.
Fui ver à internet, agora mesmo, e, de facto, consta lá esse texto de substituição:
http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=36675
Eu - e outros colegas - é que não tínhamos essa informação.
O que se passou na votação e que relatei no post, não teve, assim, ao que me esclarecem, a ver com o texto do projecto de lei, mas apenas com a epígrafe que o identificava no guião das votações e que, por erro, ainda era a antiga.
Não houve, assim, qualquer nulidade. A votação foi válida.
O caso seria inútil, aliás, pois o projecto foi chumbado.
Os juristas Pedro Delgado Alves/Isabel Moreira trataram bem do processo. Mea culpa.

Pedro Delgado Alves disse...

Caro José Ribeiro e Castro,
Uma vez que me encontro órfão da blogosfera (apesar de estar a tratar de reactivar uma presença mais assídua), aproveito a oportunidade que o seu post oferece para esclarecer as dúvidas apresentadas e demonstrar que não houve qualquer irregularidade na votação de sexta-feira. Li agora a rectificação e agradeço a nota complementar que acabou de acrescentar, e deixo só algumas notas adicionais no mesmo sentido.
Sendo ainda caloiro nas lides parlamentares, apesar de acompanhar como observador externo a realidade regimental há vários anos, procurei apurar qual a praxe parlamentar no que respeitava a alterações aos textos apresentados. Consultados vários e mais experimentados parlamentares, pude concluir que tem sido amplamente aceite e praticada a substituição do texto de projecto, desde que ocorra antes do inicio da discussão na generalidade. Consultada a base de dados das iniciativas legislativas, aliás, vários são os casos de textos que foram objecto de substituição pelos autores respectivos.
Ainda que a praxe parlamentar neste sentido não fosse essa e nos cingíssemos à letra do preceito do regimento citado no post, a resposta continuaria a ser a mesma, confirmando a validade do sucedido na 5.ª e 6.ª. Ora, se o artigo 122.º admite a retirada integral de iniciativas legislativas pelo proponente até ao inicio da sua discussão na generalidade, a retirada parcial tem de ter-se por igualmente admissível, como foi o caso, na medida em que a versão submetida na véspera apenas eliminou do projecto de lei inicial as alterações aos artigos 8.º e 39.º (e uma disposição transitória a estes associada), o que determinou a necessidade de actualizar o título da iniciativa. O âmbito reduziu-se, é certo, mas nenhuma nova solução foi introduzida para as matérias que continuaram a constar do projecto.
Efectivamente, antes do debate na generalidade ter sido iniciado, na tarde do dia 19, os proponentes da iniciativa procederam à rectificação do texto, remetendo por correio electrónico para a Divisão de Apoio ao Plenário um novo texto. Na sequência da recepção da mesma, na intervenção que realizei no plenário na 5.ª feira sobre esta matéria (ainda antes do início da discussão na generalidade, uma vez que o uso da palavra me foi concedido, ao abrigo do artigo 76.º do Regimento, no ponto anterior da ordem do dia) anunciei expressamente (como também se comprova da audição da intervenção no canal parlamento ou no youtube) que os autores retiravam a matéria da maternidade de substituição da iniciativa, uma vez que esta já constava dos restantes 3 projectos. Assim sendo, não só a alteração deu entrada no serviços atempadamente, como foi por mim expressamente anunciada no plenário antes do início da discussão.
Consequentemente, na reunião plenária de 6.ª feira, aquando da votação, apenas se tratou de rectificar o titulo da iniciativa no Guião de Votações, uma vez que este (preparado antes da alteração operada na véspera) ainda aludia ao titulo da iniciativa anterior ao seu emagrecimento. A Presidente da AR concedeu-me o uso da palavra para explicitar isso mesmo, que o título deveria ser reduzido de forma a corresponder à redução de âmbito operada na véspera, antes da discussão, e que apenas não estava reflectiva no guião de votações. Mais uma vez, a audição do que disse dissipará quaisquer dúvidas.
Espero ter contribuído para o esclarecimento das dúvidas que ainda pudessem restar, e penso que seria muito interessante a dinamização de um fórum online em torno da prática parlamentar, que lanço em jeito de desafio ao Deputado Ribeiro e Castro e a todos os que possam achar interessante aderir.
Saudações democráticas (e regimentais),
Pedro Delgado Alves

José Ribeiro e Castro disse...

Agradeço o seu comentário online, Pedro Delgado Alves, que confirma o que eu próprio tinha apurado e que já tinha posto acima.
Já me penitenciei, aliás, da minha precipitação no post acima.
De facto, é como você diz. E, no meu entender, sem examinar mais profundamente o Regimento, considero que o que determina a validade do procedimento é a substituição do texto antes do debate na generalidade - como a Mesa me confirmou que sucedeu - e, portanto, não só antes da votação. Ou seja, foi já a debate o texto que efectivamente votámos.
Não creio, porém, que se aplique o seu argumento de que "se o artigo 122.º admite a retirada integral de iniciativas legislativas pelo proponente até ao inicio da sua discussão na generalidade, a retirada parcial tem de ter-se por igualmente admissível". Desde logo, a retirada integral do texto é possível a todo o tempo, sem prejuízo de outro(s) deputado(s) o poder retomar e manter. Mas, sobretudo, um caso de substituição de texto não é de todo equiparável à retirada pura e simples. Não se trataria, aí, de um argumento de "quem pode o mais, pode o menos". Mas, precisamente ao contrário, o de que "quem pode o menos, pode o mais"... Ora, isso não pode ser…
Uma coisa é retirar - ponto final. Coisa diferente é pôr a votos outro texto – o qual, mesmo sendo parte do anterior, não deixa de ter conteúdo e equilíbrio políticos diversos. Retirar é “o menos”. Substituir é “o mais”.
Em resumo, o que determinou a validade do procedimento seguido foi o de que os autores (Pedro Delgado Alves, Isabel Moreira et allia) substituíram, correcta e atempadamente, o seu texto antes do debate na generalidade. E o novo texto assim foi logo publicado e distribuído. Eu é que não fui informado e não me dei conta da mudança, senão em cima da votação.
Quanto ao fórum que sugere, é capaz de ser uma ideia gira. Tanta coisa a discutir.