terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Passos Manuel (1805-1862)



Hoje, nas cerimónias parlamentares por ocasião dos 150 anos da morte de Passos Manuel, este o meu discurso de evocação e homenagem:


Manuel da Silva Passos é um dos políticos mais notáveis e mais brilhantes da história da política democrática portuguesa.
Conhecido e imortalizado como Passos Manuel – para melhor o distinguir de seu irmão mais velho e companheiro de lutas liberais, José da Silva Passos – foi uma presença meteórica, mas fecunda, na liderança do país, nos anos ’30 do século XIX. Homem de princípios, seria, mesmo depois de auto-afastado da liderança política, presença sempre influente e voz sempre respeitada, fosse a partir das bancadas parlamentares, para que foi eleito várias vezes, fosse do seu retiro em Santarém, até morrer em 1862.
Enquanto presidente da Comissão de Educação, Ciência e Cultura e também como deputado eleito pelo Porto como ele foi, é uma honra estar aqui a representar o Parlamento neste primeiro acto simbólico das cerimónias de hoje, em que a Assembleia da República lhe presta homenagem, 150 anos depois, e em que escolhemos fazê-lo nesta Escola Secundária que tem o seu nome: o LYCEV PASSOS MANVEL, escrito com y e, ao modo latino clássico, grafando vv no lugar dos uu, muito antes dos Acordos Ortográficos. Escolhemos fazê-lo aqui para assinalar uma das suas reformas inovadoras principais: a criação do ensino liceal, que saiu da sua pena em 17 de Novembro de 1836, ainda que concretizada somente mais de uma década depois. E escolhemos também fazê-lo por, digamos assim, um “roteiro Passos Manuel”, em que seguiremos, depois, até à Sala do Senado na Assembleia da República, para evocar, também pela rua, a entrada triunfal dos dois irmãos Silva Passos no Palácio de S. Bento, à cabeça dos deputados liberais vencedores das eleições no Douro, envoltos pelas manifestações populares entusiásticas com que a população de Lisboa os recebeu e que deram corpo à Revolução de Setembro de 1836.
Passos Manuel entrou de rompante na história política portuguesa, nesses tempos agitados das lutas liberais do primeiro quartel do século XIX, atravessados por várias guerras civis. Apoiante de D. Pedro IV contra os absolutistas de D. Miguel, dele se afastaria por não ser adepto da Carta Constitucional. Foi um vintista, fiel ao ideal radical da soberania popular da primeira Constituição portuguesa de 1822. Forte referência política do chamado “segundo liberalismo” português, foi o líder natural do Setembrismo, capitaneando o regresso aos ideais que aprofundara desde a juventude estudantil em Coimbra e no breve exílio por Inglaterra, França e Bélgica. Era de esquerda moderada – hoje, diríamos do centro-esquerda. Um lutador caloroso e apaixonado pela sua causa da soberania popular, mas um conciliador e um legalista intransigente e escrupuloso, que tantas vezes evitou a Portugal enfrentamentos mais dolorosos e sangrentos, o que lhe granjeou amplo respeito, mas também dissabores com os mais radicais, sobretudo os que ficaram conhecidos como os irracionais, a extrema-esquerda de então.
Seria esse espírito conciliador que, no rescaldo da Belenzada, levaria, em boa parte, ao espírito da Constituição de 1838: um cruzamento entre a pureza original da Constituição de 1822 e alguns traços da Carta Constitucional de 1826.
Passos Manuel fez tudo muito jovem e muito depressa. Eleito pela primeira vez deputado aos 29 anos, liderou o Setembrismo com apenas 31 e seria ministro com esta mesma idade: ministro do Reino, a seguir à Revolução de Setembro, e, depois da Belenzada em Novembro, acumulando com a Fazenda e também a Justiça.

Foi ministro apenas nove meses: demitir-se-ia, desapontado, em Junho de 1837, depois de uma derrota nas Cortes Constituintes, às mãos da esquerda radical, aliada àqueles que vencera. Conta MARIA DE FÁTIMA BONIFÁCIO: “No termo da «ditadura», quando as Cortes Constituintes abriram a 21 de Janeiro de 1837, Passos Manuel apresentou-se a pedir a ratificação parlamentar para a sua obra legislativa. Nela sobressaía a promulgação da nova Pauta Geral das Alfândegas que protegia a produção nacional com elevados direitos de importação, algo que o radicalismo sempre reclamara como a medida que em pouco tempo faria de Portugal uma segunda Bélgica. Destacavam-se também o novo Código Administrativo e a reforma do ensino. Os irracionais, sentados na bancada da extrema-esquerda, disseram-lhe que abusara de legislar e que violara a Constituição de 1822, e que por esse crime merecia «ser enforcado». Passos, que trabalhara «sem cessar pela felicidade do país», não compreendia a ingratidão.”

Naqueles nove meses de Governo Setembrista, Passos Manuel foi de um reformismo visionário, incansável e fulgurante: criou os Conservatórios de Artes e Ofícios, embrião do ensino técnico; fundou a Academia de Belas Artes; criou a Casa Pia de Évora; fundou e organizou o Teatro Nacional, bem como o Conservatório Geral de Arte Dramática; definiu em lei a criação de liceus em todas as capitais de distrito; reformou as Escolas Médicas; criou a Academia Politécnica do Porto; fez a reforma do ensino universitário e também da instrução primária – todo um programa que o faz um emblema ilustre da nossa Comissão parlamentar a que presido. Mas fez ainda mais: publicou a reforma eleitoral que ampliou o sufrágio; reduziu para menos de metade o número de concelhos; lançou a criação de associações agrícolas, fabris e industriais; adoptou uma reforma judiciária; proibiu o tráfico de escravos; reformou o sistema tributário, publicando uma nova Pauta Geral Aduaneira, que libertou a economia nacional dos privilégios britânicos de importação; adoptou um novo Código Administrativo, de pendor claramente democrático e descentralizador.
Com tanta intensidade legislativa e reformadora, compreende-se o comentário, algo irónico, de RUI RAMOS, na sua “História de Portugal”: “A fundação por Passos Manuel, entre 1836 e 1837, de liceus, conservatórias de artes e ofícios, e escolas politécnicas foi sobretudo literatura para o Diário do Governo, tal como tinha sido o ensino primário obrigatório decretado em 1835.”

A verdade é outra: a verdade é que Passos Manuel, quando saiu do Governo, com apenas 32 anos de idade, deixou ao Portugal moderno um legado ímpar, verdadeiramente invejável, que levaria anos, décadas, a frutificar e a amadurecer por completo, num quadro de enorme instabilidade política que se arrastaria até ao início do período conhecido como a Regeneração.
Tinha uma ideia clara da modernidade e uma grande ambição para as classes médias e a burguesia urbana emergente. Di-lo o mesmo historiador RUI RAMOS: “A uma escala mais elevada na sociedade, os liberais tinham o país em grande conta. Passos Manuel, em 1834, garantia que «a nossa classe média pode afoitamente competir com as mais ilustradas da Europa». O objectivo dos governos foi, a esse respeito, criar o ambiente certo para multiplicar o tipo de ser humano que convinha ao Estado liberal: o cavalheiro ilustrado, amador de ciências e de literatura, frequentador de clubes, conferências, recitais de poesia e música, e gabinetes de curiosidades. Para isso, fundaram ou ajudaram a fundar as instituições presumivelmente adequadas: academias, museus, escolas, bibliotecas, e um Teatro Nacional, em Lisboa.”

Retirando-se da linha da frente das batalhas políticas e mais dedicado à vida privada e familiar, centrada em Santarém, Passos Manuel nunca mais deixou de ser figura preponderante e tribuno prestigiado na política portuguesa do seu tempo, marcando com grandes peças de oratória momentos fortes da vida parlamentar. Em 1846, ainda estaria na Junta da Estremadura, na sequência da Maria da Fonte, e logo na Patuleia e na Junta do Porto, com o seu irmão, que presidia o município nortenho, mas seria sobretudo uma forte presença conciliadora, evitando ou pondo termo a enfrentamentos de guerra civil.

Foi um grande e dedicado idealista. E é sabido como a experiência, sobretudo depois dos fortes desapontamentos de 1837, o foi tornando mais sábio e algo desiludido com as dinâmicas concretas da política, quando os ideais são atropelados por interesses, dichotes e invejas. Conta VERÍSSIMO SERRÃO: “Que voz mais pungente que a do antigo chefe do Setembrismo, agora consagrado aos labores da vida agrícola? Na abertura da sessão parlamentar de 1845, assim se exprimia Passos Manuel: «Há uns poucos de anos que o dia da abertura dos nossos parlamentos se pode considerar um dia nefasto, seguido de muitos dias nefastíssimos.» Mais um exemplo a juntar a tantos outros em que não se escondia a desilusão pelos rumos da vida política na fase de 1834 a 1850.”


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Nos 150 anos que agora celebramos, para confirmarmos como dá tantas vezes a ideia de que a História se repete, podemos lembrar que Passos Manuel, ministro do Reino, também teve que haver-se com a sua troika: os embaixadores de Inglaterra, de França e da Bélgica que, desconfiados dos vintistas, empurraram a jovem rainha D. Maria II à aventura da Belenzada, de que Passos Manuel se sairia com mão de mestre, levando a monarca a recuar com honra e triunfando ele em toda a linha.
E, investido também na pasta da Fazenda, logo teve que enfrentar um problema nosso velho conhecido: o défice!

Ouçamos o relato de VERÍSSIMO SERRÃO: “Em meados de Abril [de 1837], foi possível a Passos Manuel apresentar o Orçamento Geral do Estado, que diminuía o défice de 3.585.792$243 réis [a fabulosa quantia de 17.885,86 €, na moeda de hoje] para 1.923.233$613 réis. O ministro explicava os esforços feitos para equilibrar as finanças públicas, não se escusando a dar as explicações pedidas pelos deputados da ala cartista: «as circunstâncias actuaes são arduas, o presente é terrível, mas o futuro pode ser esperançoso e feliz, mormente se o sistema da fazenda pública receber os melhoramentos necessários e que se devem esperar da vossa sabedoria».”

Na moeda de hoje, cortou um “défice colossal” de 17.900 euros para quase metade: 9.593,05 €!

O ministro Vitor Gaspar não tem, assim, razões para desesperar. Valha-nos Passos Manuel!

2 comentários:

swordswing disse...

belíssimo artigo... Por curiosidade, que fonte utiliza nos seus títulos, que é tão bonita...

José Ribeiro e Castro disse...

Obrigado.
A fonte dos títulos é Gruppo.