Não chegámos a ter o TGV cavalgado por Sócrates, que nem no Poceirão encalhou. Em contrapartida, temos o Parlamento acelerado, o Parlamento TGV, o Parlamento que carimba as coisas a correr: o PGV - "Parlement à Grande Vitesse".
Hoje, foi uma evidência disso.
Discutiam-se quatro projectos de revisão da lei da Procriação Medicamente Assistida (PMA), da autoria do BE, do PS (dois projectos: um oficial, outro da JS e mais alguns deputados) e do PSD. São várias as questões complexas que, no seu conjunto, esses projectos provocam: ampliação da PMA a mulheres sós; ampliação da PMA a uniões homossexuais; possibilidade de recurso à PMA sem diagnóstico de infertilidade; introdução da possibilidade de recurso à maternidade de substituição, vulgo "barriga de aluguer"; liberalização ainda maior do uso dos embriões "excedentários" para investigação científica.
Pois bem. No plenário, o debate não chegou a demorar mais do que uma hora mal medida! Os partidos deste debate - PSD, PS e BE - passaram por este debate como cão por vinha vindimada. Sinal de embaraço geral? Sintoma de desconforto? Má consciência por uma clara fífia de agenda político-legislativa?
A coisa não se compreende, a começar pelo Bloco, que abrira a romaria e marcou a agenda. Mas fica também muito mal aos outros envolvidos (os dois PS e o PSD) e, sobretudo, deixa mal a Assembleia da República. Apenas se compreende a actuação de CDS e PCP, que marcaram as posições próprias.
O Parlamento tem uma função política e social de sintonia com a sociedade. Se os debates parlamentares são obscuros e fugazes, a sociedade não entende. Em matérias tão carregadas de significado, de valores e de consequências, o debate legislativo deveria durar dois ou três dias, para que todos os pontos de vista pudessem ser ouvidos e ponderados, as opiniões fossem integralmente confrontadas, todos os argumentos se percebessem, a voz da sociedade fizesse ouvir-se nas diferentes incidências, a opinião pública pudesse entender e assimilar a discussão e, fosse qual fosse o resultado, o país pudesse entender o regime que viesse a ficar estabelecido. Hoje... nada disso!
No princípio da Assembleia da República, era assim. Lembro-me de grandes, extensos e profundos debates sobre a Reforma Agrária, o Arrendamento Rural, a reforma do Ministério Público, o Serviço Nacional de Saúde, etc. Depois as coisas foram evoluindo e sendo sucessivamente formatadas, até chegarmos a este extremo do debate legislativo "tipo-bitoque". Isso é muito mau. Não o digo apenas para as leis de hoje, mas para outras. Pode discutir-se a nova Lei do Arrendamento assim? Podem rever-se leis de combate à corrupção assim? Pode reformar-se o quadro das leis laborais assim?
É preciso deixar respirar os grandes debates legislativos. Alguém aceita, por exemplo, que as "barrigas de aluguer" possam vir a ser introduzidas em Portugal, no quadro de um debate tão pobre, tão fraquinho, tão clandestino, tão fugidio, tão PGV, como tivemos hoje? Podemos aceitar processos que enfraquecem, senão destroem mesmo, a própria legitimidade social das leis?
Nem de propósito, o jornal "Público" destacou, hoje, em primeira página, que «o primeiro grande estudo sobre a percepção da democracia em Portugal aponta para a existência de uma "desconsolidação" do sistema democrático», acrescentando que «apenas 56% dos portugueses consideram que "a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo".» - estudo "A Qualidade da Democracia em Portugal: a Perspectiva dos Cidadãos", da autoria de António Costa Pinto, Pedro Magalhães, Luís de Sousa e Ekaterina Gorbunova.
O debate parlamentar do dia de hoje é uma das explicações para esse fenómeno preocupante: o afastamento da sociedade relativamente ao Parlamento, e vice-versa, só servem para alienar a população da democracia.
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