Não é a única prova do crime que matou Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa, em 4 de Dezembro de 1980, junto com os que os acompanhavam: Snu Abecasis e Manuela Vaz Pires Amaro da Costa, o chefe de gabinete do Primeiro-Ministro, António Patrício Gouveia, o piloto Jorge Albuquerque e o co-piloto Alfredo de Sousa. Mas é a prova que mais cedo me impressionou de forma peremptória e irreversível; e que comprova, a meu ver em termos irrefutáveis, o atentado cometido.
Também é aquela prova que deixa em piores lençóis as autoridades aeronáuticas e judiciárias que conduziram de modo deplorável as investigações; e a prova que mais enterra no embaraço o Ministério Público, que bloqueava e continuou sempre a bloquear o inquérito judicial sério e o julgamento do crime.
A prova corresponde a parte do registo documental do "rasto" deixado pelo avião CESSNA 451A, YV-314P, na sua rota fatídica final, naquela noite de 4 de Dezembro de 1980, em que, depois de ter descolado da pista do aeroporto da Portela, logo se despenhou no bairro de Camarate, um pouco à sua frente.
A importância deste "rasto", como ficou designado e conhecido no "caso Camarate", é determinante. O "rasto" compunha-se de vários resíduos procedentes da aeronave e encontrados no solo, no aeroporto e junto às casas do embate final: pedaços em fibra, fragmentos vários, folhas de papel, sendo muitas procedentes do manual do avião que se guarda ao lado do piloto, etc. Estes materiais encontravam-se chamuscados ou queimados e foram, depois de recolhidos, analisados no Laboratório de Polícia Científica, que certificou a sua origem e natureza.
Se os pedaços de papel e outros fragmentos tivessem procedido da aeronave em voo, ficava claro e inequívoco o atentado: ao terem sido expelidos pelo avião em voo, isso provava que o avião tinha um buraco por onde saíam; e, ao estarem queimados, isso provava que o avião já estava a arder (com um fogo intenso interior) ainda a voar - ou seja, tinha explodido um engenho localizado, que abrira o buraco e desencadeara o incêndio a bordo.
Se tivessem, porém, resultado somente do grande incêndio e combustão final do avião depois de embater nas casas e se imobilizar no solo, os factos não provavam nada: o "rasto" não era rasto e os resíduos teriam decorrido da sua projecção na atmosfera pelo ar quente do incêndio final e seu depósito posterior no solo, "soprados" pelo vento ou, não havendo vento, depositados de modo anárquico e desordenado.
Estes materiais não foram encontrados no solo nos mesmos locais, nem foram achados e recolhidos pelas mesmas pessoas e mesmas equipas investigatórias, na madrugada e no dia seguinte ao da noite em que ocorreu o sinistro. Uma brigada da Polícia Judiciária, chefiada pelo inspector Pedro Amaral, trabalhou nos terrenos do aeroporto, que percorreu, numa extensão de cerca de 500m, desde o topo da pista de que o avião descolara até à cerca de arame que delimita os terrenos do aeroporto já na proximidade do bairro de Camarate. E a equipa do inquérito técnico-aeronáutico ("comissão Viçoso"), no âmbito da DGAC, recolheu, por seu turno, os vestígios encontrados nas cercanias das casas onde o avião acabou por embater até ao exterior da cerca que delimita o aeroporto, numa extensão de cerca de 100m. O diálogo entre as duas equipas não foi grande e também ninguém se esforçou em articular os achados de uma e de outra... Mas ambas souberam, ao longo do tempo, dos achados relatados pela outra.
A brigada da Judiciária relata consistentemente que, nas buscas feitas a 5 de Dezembro, encontrou restos de materiais procedentes da aeronave dispersos pelo solo ao longo de toda a extensão em que trabalhou, no que identifica como um "corredor" com uma largura de 10m a 30m e um comprimento de 500m a 550m, desde o topo da pista de descolagem até ao local do embate final. Esta brigada não teve, porém, nem meios, nem condições e tempo para aprofundar o seu achado. Depois de o haver relatado internamente, esta equipa da Judiciária, do sector dos homicídios, seria totalmente afastada do processo, que ficaria confiado unicamente a uma equipa do sector do combate ao banditismo. Antes de ser afastado, cerca de uma semana depois do sinistro, o inspector Pedro Amaral teve, porém, o escrúpulo e o cuidado de relatar por escrito para o processo aquilo que a sua equipa havia encontrado nos terrenos do aeroporto, bem como a leitura empírica que fazia do achado - e foi graças a este cuidado que o "rasto" não desapareceu totalmente do processo sem deixar rasto.
Esta equipa da Judiciária manteve sempre, ao longo dos anos, o relato substancial do que haviam encontrado, mas de que não ficou mais registo material do que os vestígios enviados para o Laboratório de Polícia Científica (e por este analisados) e um esboço improvisado feito por um desenhador, de nome Carichas. Não tiveram tempo, nem condições para tirar medidas exactas no solo, nem para articular com os técnicos da DGAC os respectivos achados e o seu significado ou para elaborarem um levantamento topográfico rigoroso de todo o encontrado.
Por seu turno, a equipa da DGAC (que foi a grande responsável pela construção precipitada da tese do "acidente", que dominou e viciou o processo praticamente desde o início) cedo formou a opinião de que todos esses resíduos queimados teriam resultado unicamente do incêndio final do avião no solo. E, para isto, adiantou uma conjugação de dois alegados "efeitos": o "efeito de chaminé", pelo qual o avião, em combustão final entre duas casas, teria projectado para o ar esses resíduos que teriam sido arrastados pelo vento, depositando-se depois no solo segundo a direcção deste; e ainda um famoso "efeito de túnel", explicação avançada quando os técnicos eram confrontados com relatos de que os vestígios teriam sido encontrado no solo numa extensão prolongada e ordenada em linha com o percurso de queda final do avião. Este fantasmático "efeito de túnel" corresponderia a que o avião teria deixado na atmosfera, com a sua deslocação final a cerca de 180 km/h, um vazio de pressões atmosféricas que teria sugado esses vestígios leves no sentido contrário ao da sua deslocação - uma imaginosa tese verdadeiramente extraordinária!
Todas estas teses surgiram no confronto de factos e posições ocorrido logo nas II e III CEIAC, os inquéritos parlamentares realizados nos anos de 1984 a 1987 e em que também participei como representante dos familiares das vítimas - não era deputado na altura.
Foram inúmeras as diligências efectuadas em torno do "rasto", quer com o inspector Pedro Amaral e outros agentes da sua equipa, quer com outros elementos da Judiciária e os técnicos da "comissão Viçoso" da DGAC. Os deputados deslocaram-se, com polícias e técnicos, várias vezes, aos terrenos do aeroporto e ao bairro de Camarate, reconstituindo com pormenor e rigor o achado dos vestígios e tirando medidas exactas do solo, em largura e em comprimento. E debateram longamente, em contraditório, toda a matéria, em inúmeras sessões dos inquéritos parlamentares e no próprio local do sinistro. Foi encomendado, ainda, um estudo pericial ao Instituto Superior Técnico, pelos Profs. Brederode e Mário Nino, cujas conclusões apontaram claramente para o atentado.
O confronto de visão dos factos (e sua interpretação e conclusões materiais) persistia, porém: de um lado, aqueles que insistiam na extensão do achado e na sua distribuição uniforme pelo solo; do outro, aqueles que afirmavam não ser assim e que tudo tinha sido efeito do vento e do "túnel". Frise-se, aliás, que na noite do sinistro não havia vento: os registos meteorológicos da noite de 4 de Dezembro de 1980 indicavam no aeroporto uma ligeiríssima e irregular brisa de 4 a 5 nós, isto é, nada.
Numa destas maratonas parlamentares, na comissão de inquérito, já em 1986, quando se analisava a extensão do "rasto" achado pela brigada Pedro Amaral e os relatos diferentes da DGAC, um técnico desta revela, para surpresa geral, que a DGAC tinha feito um levantamento topográfico rigoroso e o correspondente registo documental do que achara, na zona onde trabalhara: o tal espaço entre as casas do despenhamento e a cerca exterior dos terrenos do aeroporto.
A comissão de inquérito quis, então, saber onde estava esse levantamento topográfico, pois nunca tinha sido visto e não constava do processo, nem o da PJ, nem o da DGAC. E os técnicos prometeram que iam procurar encontrar e que o facultariam à comissão.
É aí que acontece
esta correspondência oficial, absolutamente espantosa e reveladora, em que se produz, afinal,
a prova do "rasto".
A comissão de inquérito começa por questionar a ANA, que informa nada ter em sua posse. E, em 4 de Julho de 1986, dirige-se à DGAC, pedindo
«o levantamento topográfico do local onde foram detectados os vestígios provenientes da aeronave sinistrada na noite de 4/12/80, bem como todos os elementos anexos (fotografias, fragmentos, listagens, etc).» -
ofício nº 35/CEI/CAMARATE/86.
A DGAC responde a 10 de Outubro de 1986, pelo
ofício refª 55821/DMA-A71/AV-17/86, a que junta cópia do tal levantamento topográfico, mas procurando ainda influenciar a leitura e interpretação dos dados objectivos no sentido da tese que sempre sustentara e em que viciara o processo desde o início: apenas incêndio final no solo, a seguir ao despenhamento.
Escreve a DGAC:
«Junto se envia (...) uma planta topográfica do local onde se despenhou a aeronave CESSNA 451A, YV-314P, na qual se encontra assinalada a faixa de terreno onde foram encontrados vestígios provenientes do fogo que destruiu aquela aeronave (tracejado vermelho). Esta Direcção-Geral não possui quaisquer outros elementos (fotografias, fragmentos, listagens, etc.) relativos aos referidos vestígios, por terem sido oportunamente remetidos à Polícia Judiciária.» [Nota: o negrito e sublinhado são meus.]
Olhemos, agora, a planta com atenção, como consta da imagem publicada no início deste
post e
conforme o anexo do ofício da DGAC.
Vê-se, empiricamente, impressivamente, à vista desarmada, que: primeiro, é efectivamente um rasto e não uma deposição anárquica e desordenada de detritos voando de uma chaminé ou de uma fogueira; segundo, esse rasto corresponde exactamente, metro a metro, ao percurso de queda final do avião como se fosse uma sua impressão digital, em traçado subjacente ao seu voo.
O avião embateu - e imobilizou-se - contra as casas que estão representadas imediatamente adiante, em linha recta, do topo superior da área representada a tracejado. Esta área tracejada contém, ainda, um "cotovelo", bem representado no levantamento topográfico e claramente observável. Ora, por maior que seja a imaginação de alguém, o "vento" não faz curvas assim, nem há fantásticos "túneis" atmosféricos que pudessem explicar esta ocorrência.
O que explica, então, este bem impressivo "cotovelo"?
Na vertical desse lugar, junto à estrada representada no mapa, havia um traçado de linha de energia eléctrica (por onde era abastecido o bairro de Camarate). O avião, que se despenhou, voando ligeiramente flectido sobre a sua esquerda, cortou esse traçado de energia eléctrica com a asa esquerda, nesse exacto local; e, ao fazê-lo, flectiu um pouco mais sobre a esquerda, nesse mesmo local, indo embater logo a seguir nas casas em frente. Tudo isto consta da reconstituição dos embates e queda do avião, no processo do "caso Camarate".
Dizendo de outro modo: o "cotovelo" bem representado no levantamento topográfico rigoroso da DGAC é
a assinatura bem legível do "rasto" e de que este procedera do avião em pleno voo. O que é prova, inequívoca, insofismável, irrecusável, de que: primeiro, o avião tinha um buraco por onde expelia resíduos em voo; e, segundo o avião, já vinha a arder no seu interior, pois os resíduos expelidos estavam queimados ou chamuscados.
Foi a partir deste mês de Outubro de 1986 que, perante esta prova, me convenci irreversivelmente do atentado e da chocante incompetência do inquérito da DGAC, da PJ e do Ministério Público - ou pior ainda.
Numa extensão de apenas cerca de 100m de terreno analisado, a DGAC confirmou, afinal, e documentou aquilo que a brigada policial de Pedro Amaral encontrara também noutros 500m adentro dos terrenos do aeroporto e fora sempre, oficialmente, desmerecido, desvalorizado e ignorado. E, para quem andou nas diligências várias de investigação no local, não ficou a mais pequena dúvida de que, se tivesse sido logo ordenado um levantamento topográfico completo, esta representação do rasto a "tracejado vermelho" iria terminar, para lá da cerca do aeroporto, bem adentro dos seus terrenos, em cima do topo da pista de onde o avião descolara e numa extensão total de 500m a 600m.
Como foi possível esconder do processo durante quase seis anos este levantamento topográfico da DGAC e o seu inequívoco significado?
Como foi possível a DGAC fazer de conta de que não tinha este achado, nem este levantamento topográfico e continuar a confabular sobre "efeito chaminé" e "efeito túnel", intoxicando o processo?
Como foi possível que os responsáveis da PJ, se alguma vez o viram ou conheceram, não terem logo notado que isto coincidia com o que o inspector Pedro Amaral e os seus homens sempre relataram e era o seu prolongamento já no exterior dos terrenos do aeroporto?
Como foi possível não apurar responsabilidades disciplinares na DGAC, quando tudo isto se tornou incontestável em finais de 1986?
Como foi possível o Ministério Público, a partir destes factos objectivos documentados e desta data, 10 de Outubro de 1986, continuar a persistir no erro original?